Três ideias força no pensamento político de Leon Trotsky
O revolucionário em todas suas facetas.
Trotsky é um personagem histórico complexo. Militante revolucionário, orador destacado, escritor hábil, mas também um pensador que deu uma contribuição original para o marxismo, enquanto corpo de ideias. Assim, mesmo que as diversas facetas que possuiu tenham constituído um único personagem histórico, é possível para fins analíticos recortar a faceta de suas ideias, para que possamos melhor aquilatá-las e discutir a originalidade de sua contribuição. Não caminhamos sozinhos nesta trilha, já que muitos intérpretes, no próprio campo do trotskismo ou fora dele, assim como em menor medida também nas universidades, já se dispuseram a esta tarefa. Uma das maneiras de percorrer este caminho é investigar os diversos conteúdos que o termo trotskismo assumiu durante a própria vida de Trotsky. Quem percorreu esse trajeto foi Marie (1990), que identificou um trotskismo anterior à revolução de 1917, marcado pelas diferenças entre Lenin e Trotsky, em especial no que se refere ao formato do partido, e um trotskismo construído a partir da luta contra o stalinismo. O fio de continuidade desses dois trotskismos foi, para o autor, a teoria da revolução permanente.
Já Deutscher (1984a, 1984b e 1968), o biografo mais famoso de Trotsky, divide sua trajetória em três momentos: a ascensão (1879 a 1921), a queda (1921-1929) e finalmente os anos de exílio (1929-1940). Sua proposta de periodização da vida do revolucionário russo apresenta grandes marcos divisórios: 1921, com o início do endurecimento interno no Partido Comunista, 1929, com a derrota de Trotsky na disputa política com Stálin e o início de seu exílio. A essas distintas fases corresponderiam momentos diferentes na produção do marxismo de Trotsky.
Por outro caminho, que não o biográfico, encontramos Bianchi (2007) fazendo um balanço do trotskismo e de sua contribuição ao marxismo, onde aponta “o internacionalismo metodológico e a centralidade da política nos processos revolucionários” (BIANCHI, 2007, p. 62) como grandes traços distintivos de Trotsky. Me parece que o destaque de sua análise é justamente perceber a centralidade da política como um traço distintivo do pensamento de Trotsky, o que mostra o revolucionário russo afastado das concepções economicistas que reduziam o movimento histórico ao desenvolvimento das forças produtivas. Bianchi (2007) demonstra que Trotsky defendia a importância dos atores políticos como capazes ou não de agirem sobre determinada situação. Portanto, para Trotsky o socialismo não seria o sucessor automático do capitalismo, mesmo que o capitalismo estivesse em crise terminal. Seria necessária a luta política para trazer um outro sistema à tona.
Pasquino (2008) é outro autor que enumera e discute as temáticas centrais do trotskismo em sentido lato, e dele tomamos três temáticas, ou ideias força, que nos parecem as mais significativas e que menos variaram durante a própria trajetória de Trotsky, constituindo assim, um núcleo mais ou menos estável de seu pensamento. Neste sentido, as ideias força que sedimentaram o que ficou conhecido como o trotskismo são: (a) a teoria da revolução permanente, (b) a crítica à degeneração do Estado soviético e em particular à sua burocratização, (c) o internacionalismo.
Segundo Pasquino (2008, p. 1261), “Não existe nenhuma dúvida de que o nome de Trotsky e o trotskismo ficarão para sempre identificados, no bem e no mal, com a teoria da revolução permanente”. Para o próprio Trotsky, essa teoria pode ser assim resumida:
Ela demonstrava que, em nossa época, o cumprimento das tarefas democráticas, proposto pelos países burgueses atrasados, conduziria diretamente à ditadura do proletariado, que coloca as tarefas socialistas em primeiro lugar. (TROTSKY, 1979, p. 24).
Trata-se aqui de um posicionamento crítico de Trotsky a respeito da ideia, em voga na época entre parte dos marxistas, de que um país atrasado, ou seja, que ainda guarda grandes quantidades de relações sociais pré-capitalistas, teria que passar necessariamente por uma revolução burguesa, e liderada pela burguesia, que implantasse o capitalismo definitivamente, para só então ter início a luta pelo socialismo, agora liderada pela classe operária. Mencheviques e bolcheviques russos tinham visões relativamente distintas dessa problemática, como explica Bianchi (2013, p. 70). No entanto, o que distinguia Trotsky dessas duas visões é que, para ele, a dinâmica do capitalismo mundial e a situação de dependência política e econômica das burguesias dos países atrasados em relação aos desenvolvidos, deixava para a classe operária a dupla (e árdua) tarefa de – em um mesmo movimento – eliminar as relações sociais pré-capitalistas (a chamada tarefa democrática) e iniciar a transição ao socialismo.
É no contexto da Revolução Russa de 1905 que Trotsky formula esta teoria que ficaria conhecida como da revolução permanente. Segundo seu próprio autor,
Foi precisamente durante o intervalo transcorrido entre 9 de janeiro e a greve de outubro de 1905 que esses pontos de vista – posteriormente conhecidos como teoria da “revolução permanente” – amadureceram na mente do autor. Esta expressão, um tanto presunçosa, revolução permanente, pretende indicar que a revolução russa, embora diretamente relacionada com propósitos burgueses, não poderia deter-se em tais objetivos: a revolução não resolveria suas tarefas burguesas imediatas sem o acesso do proletariado ao poder. E o proletariado, uma vez que tivesse o poder em suas mãos, não poderia permanecer confinado dentro do modelo burguês da revolução. Pelo contrário, precisamente com o objetivo de garantir sua vitória, a vanguarda proletária – nos primeiros estágios de seu governo – teria que fazer incursões extremamente profundas não apenas nas relações da propriedade feudal, como também nas da propriedade burguesa. (…) Uma vez superadas as estreitas fronteiras democráticas burguesas da revolução russa – em virtude da necessidade histórica – o proletariado vitorioso também se veria obrigado a superar suas finalidades nacionais, de maneira tal que teria que lutar conscientemente para que a revolução russa se transformasse em prólogo da revolução mundial. (TROTSKY, 19–: 14).
Esta teoria partia do pressuposto de que a burguesia russa, diferentemente da dos países da Europa ocidental, estava sufocada pelo Estado onipresente e pelo capital europeu, e mostrava-se, por isso, impotente para cumprir as tarefas do momento.
Desta forma constituía-se o pensamento político de Trotsky e sua principal contribuição ao marxismo, em especial no que se refere ao debate contemporâneo a Trotsky acerca das possibilidades da vitória de uma revolução socialista em um país cujas forças produtivas, e mesmo as relações sociais, não haviam alcançado um amadurecimento comparável aos países desenvolvidos da Europa ocidental, onde se acreditou por muito tempo que a revolução rebentaria primeiro.
Conexa a teoria da revolução permanente encontramos a Lei do desenvolvimento desigual e combinado, que também marca o pensamento político de Trotsky. Trata-se da possibilidade de entender os países da periferia do capitalismo como portadores, em um mesmo tempo, de formações sociais que combinam o moderno e o arcaico, o capitalismo e formas pré-capitalistas, e não um espelho do passado dos países centrais, mesmo que os países de capitalismo desenvolvido possam ser o espelho do futuro dos países atrasados.
Já o internacionalismo, a segunda ideia força do pensamento de Trotsky, era antes de mais nada um método, com o qual, segundo Bianchi (2007), o revolucionário colocava os nexos entre o nacional e o internacional no centro da explicação da formação social russa e de seu capitalismo, bem como na base de todas as explicações marxistas que empreendia.
O internacionalismo é a ideia força que destaca a existência de uma unidade mundial do capitalismo. Portanto, o socialismo só poderia se realizar em escala internacional, não podendo ficar restrito a uma ou algumas nações. Nas palavras do próprio Trotsky
O marxismo procede da economia mundial, considerada não como a simples soma das suas unidades nacionais, mas como uma poderosa realidade independente, criada pela divisão internacional do trabalho e pelo mercado mundial, que na nossa época, domina todos os mercados nacionais. As forças produtivas da sociedade capitalista ultrapassaram a muito as fronteiras nacionais. (TROTSKY, 1977, 9).
E ainda,
Os traços específicos da economia nacional, por muito específicos que sejam, constituem, em grau crescente, os elementos de uma mais elevada unidade que se chama economia mundial, e sobre a qual, no fim das contas, repousa o internacionalismo dos partidos comunistas. (TROTSKY, 1977, 9).
Desta forma, a revolução socialista só seria definitivamente vitoriosa quando transformasse o socialismo em um sistema mundial, e quando fosse vitoriosa, em especial, nos países desenvolvidos.
Para o revolucionário russo, a atrasada Rússia tinha poucas chances de sucesso se as principais nações industrializadas do mundo não tomassem também o caminho da revolução socialista. O preço a pagar por este isolamento foi o desenvolvimento na estrutura do Partido Comunista, e no Estado soviético, de uma pesada burocracia, que começa a apresentar interesses diferenciados do conjunto daqueles que ela dizia representar, o proletariado (TROTSKY, 1977, p. 9). E aqui apresenta-se a terceira ideia força do pensamento político de Trotsky, a crítica da burocracia e da burocratização.
Boa parte da geração que realizou a Revolução Russa havia tombado na guerra civil. O proletariado urbano das grandes cidades, como Moscou e Petrogrado, praticamente não existia mais, fruto da desorganização econômica. Ao mesmo tempo o Partido Comunista e a máquina estatal inchavam com adesistas de última hora. Estas condições sociais e políticas propiciaram o surgimento da burocracia, um conjunto de pessoas que, alçadas a papéis dirigentes na economia, no conjunto do Estado e no partido, desenvolveram interesses próprios, diferentes do restante da sociedade. Para Trotsky, não se tratava de uma nova classe social, mas de uma casta parasitária que tinha Stálin como líder.
A origem do domínio político da burocracia estaria nas mudanças pelas quais o partido bolchevique passara, com a fusão entre os órgãos do partido e do Estado, que teria gerado “um certo prejuízo à liberdade e à elasticidade do regime interno do partido” (TROTSKY, 1980, p. 69). Medidas excepcionais tomadas durante o período de estabilização do regime, como a proibição de frações e tendência no partido, alçadas à condição de regras permanentes, também cobrariam seu preço e criariam o caldo autoritário que foi funcional para a estabilização do poder da burocracia.
Das três ideias força aqui brevemente catalogadas, obviamente o internacionalismo não é invenção de Trotsky, já que o próprio Marx o considerava com destaque em suas análises. Mas Trotsky o elevou a categoria de uma ideia força de tamanha centralidade, como poucos seguidores do velho alemão o fizeram. Já a Revolução Permanente é certamente o contributo de maior originalidade do pensamento político de Trotsky, tendo propiciado que diversos grupos trotskistas empreendessem análises originais e criativas, mas também influenciando pensadores e intelectuais fora do próprio trotskismo. E a crítica da burocracia, por sua vez, ao mesmo tempo que deu margem à perseguição e morte do próprio Trotsky, é também uma ideia força que não permite que seu legado seja esquecido, já que a bancarrota do stalinismo e das ditaduras que engendrou, a partir de 1989, demonstraram que sua crítica estava coberta de razão.
Referências
BIANCHI, A. Arqueomarxismo: comentários sobre o pensamento socialista. São Paulo: Alameda, 2013.
BIANCHI, Álvaro. O marxismo de Leon Trotski. Notas para uma reconstrução teórica. Ideias, Campinas, n. 14. p. 57-99, 2007.
DEUTSCHER, I. Trotski: o profeta armado. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1984a.
DEUTSCHER, I. Trotski: o profeta banido. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1984b.
DEUTSCHER, I. Trotski: o profeta desarmado. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968.
MARIE, J. J. O Trotskismo. Editora Perspectiva. São Paulo: 1990.
PASQUINO, G. Trotskismo. In.: BOBBIO, N. Dicionário de Política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1ª ed., 1998. p. 1260-1267
TROTSKI, Leon. A revolução de 1905. São Paulo: Global, [19–].
TROTSKI, Leon. A revolução permanente. Lisboa: Antídoto, 1977.
TROTSKI, Leon. O testamento. In.: TROTSKI, Leon. Diário do exílio. São Paulo: Edições Populares. 1980. pp. 123-125.