A Ômicron não é filho sem pai: o apartheid vacinal da África tem culpados

O papel do imperialismo no avanço da nova variante é incontestável

Isabelle Ottoni 30 nov 2021, 20:42

Pouco mais de um ano após o começo da vacinação contra Covid-19 pelo mundo, o vírus segue entre nós. Mas se já foi incontestavelmente comprovado que as medidas de uso de máscaras e vacinação completa funcionam, o que explicaria o novo boom de infectados no mundo e o surgimento da Ômicron, a nova variante?

Faz sentido que se busque uma resposta rápida no alto número de pessoas que escolheu não se vacinar. Os “anti-vacina” são adeptos de todo tipo de teoria da conspiração sem cabimento lógico para evitar o programa vacinal, e estão presentes em todos os países. E merecem, de fato, carregar sua parcela de culpa. Agora, a variante Ômicron foi descoberta na África do Sul. Faz sentido dizer que isso é resultado de quem não cumpre o programa vacinal, quando a realidade é um continente que não teve acesso à doses da vacina?

A mesma xenofobia que no começo da pandemia chamava a Covid de “o vírus chinês” agora chama a nova variante de “a variante africana”. E, quando o faz, se blinda de atestar a realidade: não foi o imperialismo o capaz de detectar uma nova variante, mas sim uma equipe de cientistas da África do Sul. Tulio de Oliveira, o brasileiro que é diretor do Centro para Respostas à Epidemias e Inovação da África do Sul, foi parte da equipe. Também foram os responsáveis pelo descobrimento da variante Delta. Hoje a maior parte dos casos é reportada na África do Sul, mas por uma razão objetiva: foram os pioneiros em testar para a nova variante, enquanto a maioria dos países ainda não o faz. Além disso já foram capazes de provar: a variante não surgiu na África, mas sim na Europa, no reduto dos não-vacinados por vontade própria.

O papel do imperialismo no avanço da nova variante é incontestável. Enquanto os Estados Unidos comprava um número muito maior que o necessário de doses – e ainda assim era incapaz de promover uma campanha de vacinação de toda a população – parte do mundo ficou à deriva. Setores de esquerda de todo o mundo exigiam a quebra das patentes da vacina e biomédicos avisavam: a vacina é um pacto coletivo, que necessita do mundo inteiro vacinado, não só alguns países. Joe Biden ignorou os apelos, fazendo doações simbólicas de números irrelevantes de doses. Agora, repete que a única saída é a vacina. As mesmas que o país mais rico do mundo foi contra a quebra das patentes.

A Ômicron não acontece do nada. É resultado do descaso político das potências do Norte Global com a vacinação do resto do mundo. No continente africano, apenas 3 a cada 100 pessoas tomaram alguma dose da vacina. Com um dos maiores números de vacinados da África, a África do Sul tem apenas 23% de vacinados no país. Em março de 2021, o virologista de Camarões John Nkengasong deu uma entrevista para o jornal El Pais e atestou: “A Europa está tentando vacinar 80% dos seus cidadãos. Os Estados Unidos querem vacinar toda a sua população. Acabarão a vacinação, imporão restrições às viagens e então a África se tornará o continente da Covid-19”. John não poderia estar mais correto. Sem nenhuma comprovação científica da necessidade, os Estados Unidos e parte da Europa fecham suas fronteiras para o continente africano.

O número total de vacinados da África é 7%. Países como Burundi vacinaram inacreditáveis 0,0025% da população. A República Democrática do Congo e o Chade também não atingiram 1% da população do país vacinada. Há semanas Tedros Adhanom, diretor da OMS, se coloca contra a terceira dose em adultos saudáveis e crianças dos Estados Unidos e Europa, enquanto profissionais da saúde e idosos de países de todo mundo ainda esperam pela primeira dose. Foi extremamente questionado, e agora vê o mundo em desespero com a nova variante. Os Estados Unidos entregou apenas 25% das doses que prometeu doar. A União Europeia entregou apenas 19%. A Austrália 18%, o Reino Unido 11%, o Canadá 5%

Agora, as fronteiras do mundo se fecham para a África. A decisão não é só à revelia da ciência, mas também é incapaz de explicar o porquê mantém as fronteiras abertas com Israel, Bélgica, França, entre outros que também registram casos. Dos oito países da África que receberam restrições de viagem pelos Estados Unidos, apenas dois registraram casos de ômicron, a África do Sul e Botsuana. E assim a África segue sendo penalizada pela incompetência do imperialismo de gerir a crise criada por eles próprios.

O mundo sabe pouco sobre a nova variante. É mais contagiosa que a Delta? As vacinas que temos são eficazes? Deveríamos voltar ao isolamento? Todas as perguntas são importantes. Mas, enquanto não temos respostas, a medida responsável deve ser vacinar o maior número possível de pessoas com a primeira dose da vacina e incentivar o uso de máscaras. Enquanto 80% das vacinas foram compradas por países do G20, países de baixa renda, a maioria no continente africano, receberam apenas 0,6% de todas as vacinas disponíveis no mundo. É preciso pressionar para que as nações imperialistas entreguem as doses que prometeram, num comprometimento global à vacinação, ao invés do isolacionismo irreal em bolhas vacinadas. Diferente do que escreve o jornalista da Folha Mathias Alencastro , culpar os países desenvolvidos não é “colorir a ciência com lições de moralismo”. Ignorar o papel que os Estados Unidos e a Europa tem no empobrecimento via exploração do continente africano não é ingenuidade, é coadunação com políticas racistas de apartheid moderno.

No Brasil, muito se debate sobre o cancelamento das festas de carnaval e ano-novo. É preciso fugir do debate elitista daqueles que rejeitam festas populares e democráticas, mas há muito pressionam pela reabertura de casas de show e eventos inacessíveis à maior parte da sociedade. Antes de “colocar o carro na frente dos bois”, ouvir os especialistas, debater estratégias e não promover um apartheid cultural entre quem pode pagar por festivais que custam um salário mínimo e aqueles que tem das festas uma fonte de renda.


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