Goiás: o epicentro do conservadorismo no Brasil e as alternativas políticas

Os desafios de formar uma esquerda anticapitalista, resistente e organizada em Goiás

Por estar geograficamente no meio do mapa brasileiro, o estado de Goiás apresenta forte influência sobre demais regiões do país. Até mesmo, por isso, a capital federal fora instalada aqui na década de 1950. Buscamos, a partir deste texto – e outros que virão – e de nossa decisão pela entrada no Movimento Esquerda Socialista, compartilhar com o conjunto da militância o que se sucede por essas bandas de cá a fim de que possamos inserir, de uma vez por todas, Goiás no mapa não só do conservadorismo, mas também da esquerda resistente e organizada. 

Caiado não é governador por acaso

O estado de Goiás, na historiografia hegemônica, começou a ser ocupado por colonizadores a partir do século XVII na busca pelo ouro. Esse modo de exploração não vigorou por muito tempo, visto que o que fora encontrado aqui era o chamado “ouro de aluvião”, no leito de rios e não em montanhas como em Minas Gerais e outros estados. Após cerca de um século de extrativismo que rendeu o genocídio recorde de diversas etnias de povos originários, o estado foi abandonado por portugueses, bandeirantes e outros setores da classe dominante que haviam migrado pela promessa de riqueza fácil pelo ouro. No século XVIII é comum que encontremos relatos de um longo período de “esquecimento” do estado de Goiás. Esse alheamento só se justifica se tomarmos como ponto de referência a visão do capitalismo extrativista e colonizador pois, o que temos é que já neste século, apesar de reduzida atividade econômica, a pecuária começava a ganhar força nessas paragens. Também, mais uma vez, pela localização geográfica, o escoamento de outras produções e extrações em estados do norte passavam por aqui. 

Em todo esse período, politicamente, o estado foi caracterizado por disputas das frações do bloco no poder entre oligarquias, sendo as mais conhecidas Bulhões e Caiado, que se alternavam na governança e intervencionismo à mando do Coroa e, posteriormente, em disputas eleitorais coronelistas. Eram também, como deve-se prever, donos de grandes latifúndios, conseguidos na base de grilagens e violência no campo. A história goiana, sendo estudada a fundo, é marcada por todos esses elementos basilares. 

Ronaldo Caiado, hoje governador do estado, não está neste posto por acaso. Há, inclusive, em sua família, a preparação de quais filhos (todos homens) assumirão a tarefa de concorrerem a eleições e se organizarem politicamente. Aos demais, são permitidas outras ocupações, podendo ser, sim, ainda na política, mas também nas artes e, principalmente, na manutenção das terras. Às mulheres, nunca. Uma delas, inclusive, deve ter como objetivo de vida não se casar para que tome conta da educação dos sobrinho e cuidados com os pais na velhice. 

Seguindo esse prognóstico familiar, Ronaldo Caiado, ainda na década de 1970, começou a organizar a UDR – União Democrática Ruralista -, entidade responsável por barrar a Reforma Agrária na Constituição de 1988 e promotora de verdadeiro terrorismo no campo. Naquela mesma década, querendo aproveitar-se de sua fama nacional por esses feitos, candidatou-se à presidência, tendo votação pífia em meio aos 17 candidatos do primeiro pleito pós-redemocratização, em 1989. Há que se lembrar que durante a Ditadura Militar, a oligarquia Caiado sempre esteve no poder, como governador, senadores e deputados, sempre ao lado dos militares. 

Ao longo da década de 1990 Ronaldo Caiado candidatou-se algumas vezes para governador do estado, nunca obtendo grande expressividade, mas foi senador durante várias gestões. Na última delas, atuou como grande articulador do impeachment de Dilma. 

Além do preparo, do nome de sua família e do exercício de mandatos, Caiado recebe grande apoio entre, obviamente, os ruralistas, mas também de médicos e demais categorias pois, em discurso carismático, chegou a convencer até mesmo trabalhadores da então CELG (companhia energética pública recém privatizada e transformada em ENEL) de o apoiarem por se dizer contra sua privatização. O que, de fato, não se concretiza na prática de uma mandato liberal-coronelista. 

Caiado apoiou Bolsonaro e, juntos, fizeram por exemplo, na capital, Goiânia, 70% dos votos, ainda no 1º turno de 2018. 

As zonas econômicas no estado de Goiás 

Além da pecuária desde o século XVIII, a soja também é considerada outro produto de exportação que “mantém” a economia goiana. Especialmente na década de 1970, com a dita “Revolução Verde”, ou seja, incentivos governamentais para maquinário, essa passou a ser uma das atividades primordiais no estado, que hoje é um dos que mais exporta este produto para a China, por exemplo. 

Com a Constituição de 1988, a separação e criação do estado do Tocantins – chamado, à época de “o estado da UDR” pela concentração de terras e elevado conflitos de terra – a região do norte goiano manteve-se na criação de gado, curtumes, frigoríficos e pecuária extensionista e, com os incentivos já mencionados, levas de migrantes latifundiários do Sul do país passaram a comprar terras no sul de Goiás para cultivo de soja, o que aprofundou a devastação da natureza, sendo o Cerrado o bioma devastado com maior rapidez na história da humanidade, e a expulsão de uma vez por todas das poucas populações que ainda viviam no campo, aprofundando o êxodo rural e inchaço das cidades. 

​​Frisamos aqui a importância de nos atentar à gravidade desse desmatamento em tempo recorde, especialmente pelo fato do bioma cerrado ser pouco pautado internacionalmente dentro da questão ambiental e urgência climática vividas mundialmente nos dias atuais. A natureza, bem como a classe trabalhadora não possui fronteiras – a estrutura do capital internacional tem graves implicações no estado de Goiás. O cerrado é um dos biomas mais antigos do planeta, de formação lenta e sua destruição tem íntima relação com a crise hídrica vivida Brasil afora. Para além da função desempenhada pela flora, em geral, de “produção de água” através dos chamados “rios voadores”, no caso do cerrado as árvores típicas desse bioma são de extrema importância para o abastecimento do lençol freático e aquífero por conta das raízes profundas, apesar da baixa estatura das árvores acima do solo.

Porém, para além da caracterização de zonas econômicas que só servem à manutenção do capitalismo periférico a qual estamos situados, vale lembrar que além das rotas já ditas anteriormente desde o século XVII, houve na década de 1930 a instalação de projetos de povoamento do centro e norte do país instaladas por Getúlio Vargas em Goiás, o que abriu mais ainda os “caminhos” do dito progresso passando por aqui. Brasília corresponde também a uma continuidade dessa ideologia dominante vigente nas décadas seguintes de saída do litoral, povoamento e maior exploração do “sertão” brasileiro – sertão aqui visto como tudo aquilo que não estava nos eixos da costa do Brasil. 

Percebemos que, ainda hoje, a nomenclatura dada pela classe dominante serve até mesmo para a maioria das organizações de esquerda que, destarte, enxergam o eixo Rio-São Paulo como polo aglutinador de toda a riqueza – e, por isso, concentração de renda e luta de classes – do país, esquecendo-se que, numa designação de desenvolvimento desigual e combinado, a oposição entre classes pode não se dar somente da maneira clássica no chão de fábrica, mas também, por exemplo, na luta pela terra. Nisso, Goiás é também pioneiro e epicentro, conforme veremos a seguir.

Goiás: o epicentro das lutas pela terra 

Ao caracterizarmos as disputas das frações burguesas inicialmente neste texto não estamos, com isso, dizendo que são elas que nos importam. Pelo contrário: a partir de uma boa análise de conjuntura e o aporte histórico e teórico necessários de quem são nossos inimigos, podemos apontar caminhos, conforme Gramsci, sendo realistas na análise e otimistas na ação.

E esse otimismo na ação não é vazio ou dito como palavra de ordem. Temos aqui exemplos ainda vivos da luta de classes em território goiano. Alguns deles, como Trombas e Formoso e a Guerrilha do Araguaia, conhecidíssimos no Brasil e mundo afora sem nunca serem lembrados como movimentos genuinamente goianos. 

O auge dos conflitos de Trombas e Formoso (duas regiões do estado que hoje pertencem ao Tocantins) deu-se na década de 1950, especificamente, entre 1954 e 1957 e foi caracterizado pela resistência de camponeses que ocupavam terras devolutas e eram alvo de grileiros. Ali aconteceu uma verdadeira guerrilha, influenciados à época pelas Ligas Camponesas, que promoviam ocupações em todo o país. 

Ao serem inicialmente atraídos para Goiás pela CANG (Colônia Agrícola Nacional de Goiás, uma das medidas de Getúlio Vargas para a região), os colonos ocuparam as terras à margem do Rio das Almas e, quando impelidos a pagarem arrendos, se recusaram. Em um dos conflitos, os latifundiários da região chamaram a polícia militar, corroborando para nossa visão de que grandes proprietários e Estado estão sempre em conluio, para expulsá-los de suas terras. No conflito, um PM foi morto e, a partir de então, várias outras emboscadas foram armadas pelos fazendeiros. Há uma segunda fase desses confrontos na Fazenda Onça, na cidade de Uruaçu e, posteriormente, um acordo de trégua por parte do governo que garantiu a posse das terras aos camponeses, acordo que não vigorou por muito tempo após do Golpe Militar. 

Com tudo isso, consideramos que a esquerda goiana deve se considerar herdeira de Trombas e Formoso ou, ainda, da Guerrilha do Araguaia e tantos outros movimentos importantes que aqui tivemos. Dona Dirce, militante em Trombas, ainda viva, que nos dá relatos de como há, sim, uma história de luta e resistência em Goiás, não só entre camponeses e donos de terras, mas da população indígena, quilombola (que hoje encontram-se, em sua maioria, em Cavalcante, próximo à Chapada dos Veadeiros) e cigana, já que esse é um dos estados com o maior número de pessoas destas etnias no Brasil. 

A “esquerda débil” em Goiás 

            Por tanta repressão e perpetuação dos domínios do latifúndio, população predominantemente urbana, porém, com raízes agrárias, conformou-se um senso comum em Goiás que chama a nossa esquerda de débil e pouco organizada. Tal afirmação só faz sentido se não levarmos em conta todo o histórico por nós apontado e se nos esquecermos de inciativas até mesmo da Igreja Católica de instalação de grandes pastorais que serviam como sustentáculo de movimentos sociais em Goiânia. Claro, se a comparação feita para essa caracterização da esquerda goiana for a grande organização tradicional de São Paulo, por exemplo, essa se faz verdadeira. O que buscamos aqui é o oposto: enxergamos novas – ou já antigas, porém pouco reconhecidas – formas de expressão da luta de classes para nos aportarmos. 

            De uma maneira geral, a esquerda urbana não alçou os patamares alcançados pelas organizações camponesas, mas o Partido dos Trabalhadores, por exemplo, que foi uma grande referência para a esquerda brasileira durante muitos anos, conseguiu algumas eleições, especialmente em Goiânia, ainda nas eleições indiretas pré-1984 e sempre esteve, desde sua fundação, presente na capital e demais cidades do interior.

            Entre a juventude, há atualmente uma tendência forte ao anarquismo e auto gestionários, vindos, sobretudo, de referências unicamente teóricas de estudantes da Universidade Federal de Goiás e Universidade Estadual de Goiás. Esses foram quem, em 2013, se tornaram pioneiros nas lutas daquele ano contra o aumento das tarifas, deixando partidos tradicionais como PSTU, PCB e até mesmo o PSOL à reboque nas manifestações. 

            O movimento estudantil sempre foi presente e ativo no estado de uma maneira geral e, principalmente, em Goiânia, que foi sede de vários Congressos da UNE. Porém, para além deste movimento de juventude, vemos potencial para outros, a seguir.

A “esquerda para além da esquerda” em Goiás

            Contaminados muitas vezes por ideários até mesmo stalinistas, o movimento estudantil goiano e especialmente goianiense vem perdendo forças nos últimos anos, porém, em contrapartida, há um crescimento exponencial de movimentos feministas e LGBT a se destacar.

            Como pode-se presumir, com toda essa cultura agrária latifundiária e conservadora já dissertada no estado, os modos de vida da população do senso comum correspondem a perpetuação de um machismo exacerbado e LGBTfobia assassina. 

            Goiás ocupa hoje o triste ranking de um dos maiores números de feminicídio do país e o maior em número de mortes de pessoas trans. Como resposta, principalmente as mulheres encontram-se em um elevado grau de organização, com diversos coletivos, setoriais de partidos, grupos de estudos, etc. Vivemos em um eterno ‘backlash’ de ações e reações, ou seja, casos horrorosos e aterrorizadores que ganham repercussão mundial (como os estupros de João de Deus em Abadiânia, entre outros), a reação em atos e notas dos movimentos ativos e um posterior arrefecimento das lutas até que uma nova denúncia seja feita. Não vemos continuidade nesses movimentos que, embora organizados, não têm em seu âmago visões táticas e estratégicas a curto, médio e longo prazo. Nos propomos, através da organização da Juntas, tentar mudar isso, não com práticas de entrismo tampouco vanguardismo, mas contribuindo com uma visão sistêmica possibilitada através da organização em um partido que não coloque rankeamento entre exploração e opressão, mas, sim, compreenda que essas devem ser combatidas concomitantemente. E é disso, na nossa opinião, que Goiás, nessa quadra histórica, precisa e é o que nos propomos!


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Pedro Micussi