Governo Castillo e o cenário de lutas sociais no Peru
Os primeiros 100 dias de Pedro Castillo (Perú Libre) na presidência do Peru refletem os impasses e contradições da polarizada situação política peruana
Governo Castillo e o cenário de lutas sociais no Peru
Os primeiros 100 dias de Pedro Castillo (Perú Libre) na presidência do Peru refletem os impasses e contradições da polarizada situação política peruana. A inesperada vitória de Castillo nas últimas eleições surpreendeu observadores dentro e fora do país e abriu um novo cenário com uma figura como Castillo, um rondero[1] e professor sindicalista, ocupando pela primeira vez o cargo máximo do executivo peruano.
Sua vitória em um primeiro turno bastante fragmentado, no qual nenhuma das candidaturas chegou a mais de 20% dos votos, e a disputa final contra a direitista Keiko Fujimori (Fuerza Popular), na qual venceu por uma diferença de menos de 50 mil votos (0,3% do total de votos), são parte de um processo social aberto desde 2017 e cujo desfecho está indefinido. Tendo ao sul o Chile do estallido social, ao leste a Bolívia que derrotou o golpe fascista e ao norte o Equador que se levanta novamente contra o aumento de combustíveis, o Peru está hoje no centro deste novo ciclo de lutas nos países andinos e o desenvolvimento do processo peruano tem enorme importância nos rumos da luta social na América Latina.
Quais são as forças em luta no Peru de hoje? Para onde vai o governo Castillo? Quais são as tarefas dos socialistas perante os desafios atuais? Estes são alguns dos temas que precisam ser respondidos não apenas em função da própria análise, mas para armar as vanguardas de esquerda no Brasil e em outros países da região.
Antecedentes: crise política e o golpe de Merino
Para compreender a situação atual é preciso voltar a novembro de 2020, quando um golpe parlamentar derrubou o presidente Martín Vizcarra (Peruanos Por el Kambio, já extinto) e o substituiu pelo presidente do Congresso[2] Manuel Merino (Acción Popular) após uma “moção de vacância” contra Vizcarra por denúncias de corrupção. A vacância é um mecanismo constitucional peruano para a substituição da presidência em casos como renúncia ou morte do mandatário, saída do território nacional sem autorização ou por sua “permanente incapacidade moral ou física” declarada pelo Congresso, sendo esta última possibilidade análoga ao processo de impeachment brasileiro.
Vizcarra era do mesmo partido do ex-presidente liberal Pedro Pablo Kuczynski (conhecido como PPK), que também havia vencido Keiko Fujimori por uma estreita margem de votos em 2016, mas depois disso se aproxima de setores do fujimorismo através do indulto ao ex-presidente Alberto Fujimori, pai de Keiko. O presidente autoritário que implementou políticas neoliberais entre 1990 e 2000 estava preso devido aos diversos crimes cometidos em seu governo (como os massacres de Cantuta e Barrios Altos) e tinha como principal defensor um outro filho na política, Kenji, já que Keiko buscava se dissociar politicamente do pai.
O governo PPK entra em crise em 2018, após a abertura de um pedido de vacância derivado das denúncias de corrupção relacionados à construtora brasileira Odebrecht durante a Lava Jato peruana, e renucia após o escândalo conhecido como “Kenjivideos”, no qual Kenji Fujimori é filmado oferecendo suborno a um congressista em troca de seu apoio à Kuczynski contra a vacância. Os vídeos, provavelmente vazados por Keiko, tornam insustentável o governo PPK e Martín Vizcarra assume o governo.
O governo Vizcarra foi marcado pela crise que culminou no fechamento do Congresso em 2019, ocorrida após o Congresso negar por duas vezes a “questão de confiança” ao Executivo. No sistema semi-parlamentarista peruano, a “questão de confiança” é uma votação entre parlamentares na qual se aprova ou rechaça algum projeto vindo do Executivo, e após dois rechaços seguidos o presidente pode fechar o Congresso e convocar eleições extraordinárias. Estas eleições ocorreram em janeiro de 2020 e fortaleceram partidos da direita como o Acción Popular e o Alianza para el Progreso, além da etnocacerista[3] Unión por el Perú, enfraquecendo tanto o fujimorista Fuerza Popular como a Frente Amplio (maior partido de esquerda no Congresso até então).
Este resultado aprofundou a crise do governo Vizcarra ao longo de 2020 e levou a um novo pedido de vacância presidencial em novembro daquele ano, resultando na derrubada de Vizcarra e na chegada ao poder de Merino, então presidente do Congresso e líder da maior bancada. Este golpe parlamentar contou com o apoio de toda a direita e também da Frente Amplio, que teve uma posição similar aos esquerdistas bolivianos durante o golpe parlamentar contra Evo Morales em 2019.
Entretanto, a chegada de Merino ao poder provocou uma enorme reação popular com grandes manifestações em diversas cidades do país. Nos dias seguintes, a convulsão social põe em cheque o novo governo e a morte de dois jovens durante os protestos em Lima (Brian Sanchéz e Inti Camargo) leva à renúncia coletiva da maioria dos novos ministros, obrigando Merino a renunciar apenas cinco dias após assumir o governo. Assume então Francisco Sagasti (Partido Morado), eleito presidente do Congresso apenas um dia antes de assumir a presidência do país.
As explosivas mobilizações de 2020 não podem ser entendida como um movimento de apoio ao deposto Vizcarra, mas sim como parte de um profundo processo de revolta popular perante a total falta de credibilidade de um regime político marcado pela corrupção generalizada e pelos constantes ataques aos interesses da classe trabalhadora peruana. A crise intraburguesa, que levou à quatro presidentes em quatro anos, se combinou com uma considerável piora das condições de vida do povo, agravadas pelo terrível impacto da pandemia no país (o Peru chegou a ter a pior taxa de mortalidade por Covid do mundo), consolidando um sentimento generalizado de indignação que se aprofunda desde o início desta crise política em 2017. É impossível compreender a vitória de Castillo sem analisar este complexo processo que está longe de se encerrar.
As eleições de 2021
Como dito acima, as eleições de abril de 2021 tiveram um primeiro turno bastante fragmentado (com 23 candidaturas) e um segundo turno polarizado entre Castillo e Keiko. Na primeira volta, Castillo obteve 18%, Keiko 13%, o ultradireitista López Aliaga (Renovación Popular) chegou a 11%, o liberal Hernando de Soto (Avanza País) também 11%, Yonhy Lescano (Ación Popular) 9% e a outra candidatura de esquerda, Verónica Mendoza (Nuevo Perú), obteve apenas 5%.
Este resultado também foi bastante inesperado entre a esquerda, já que no pleito de 2016 Verónika obteve 18% e quase foi ao segundo turno contra PPK. Como o Nuevo Perú não possuía a legalidade[4], Verónika concorreu através da legenda do Juntos por el Perú (controlada pelo Partido Humanista) e tinha perspectivas de ir ao segundo turno, já que a aliança ao redor de Juntos combinava as principais forças de esquerda do país. A Frente Amplio de Marcos Arana, até então o maior partido de esquerda no parlamento, não chegou a 1% dos votos e perdeu sua legalidade como reflexo de sua posição perante o golpe de Merino.
A surpresa de Castillo e o resultado ruim de Verónika podem ser explicados pela polarização política. Enquanto Castillo se apresentou como um candidato radical, representando as lutas do magistério e as necessidades concretas das regiões do interior do país, Verónika buscou uma imagem de conciliação em busca dos votos da classe média da conservadora Lima. Esta opção pela moderação cobrou seu preço nas urnas e deixou a principal figura do “progressismo” peruano apenas no 6º lugar da disputa.
O resultado eleitoral foi surpreendente também nas eleições legislativas. Bancadas significativas como as da Frente Amplio, da Unión por el Perú e da FREPAP[5] simplesmente desapareceram ao mesmo tempo em que o Perú Libre, que não tinha deputados, obteve 36 dos 130 assentos e tornou-se o maior partido do Congresso, compondo a bancada pró-governo com o Juntos por el Perú (5 parlamentares). O restante das vagas foi conquistado pelos diversos setores da direita, assegurando os dois terços necessários para mudanças legislativas significativas.
No segundo turno a esquerda se unificou no apoio à Castillo a partir de um pacto que teve como pontos centrais o chamado de um referendo para uma nova Constituição, a ampliação da vacinação, a luta contra a corrupção e o aumento do investimento público em serviços sociais, entre outros. A construção desta unidade não foi simples porque o Perú Libre buscou permanentemente se diferenciar dos grupos do Juntos por el Perú caracterizando-os como a “esquerda caviar” por sua centralidade em pautas democráticas, como o apoio à luta feminista e LGBTQI+, temas em geral rechaçados pelas bases provinciais do Perú Libre. Por outro lado, os apoiadores de Verónica Mendoza viam com bastante desconfiança os chamados traços autoritários do Perú Libre e de seu presidente, Vladimir Cerrón. Ex-governador da região de Junín já condenado por corrupção, Cerrón formou-se em medicina em Cuba e tem uma formação de matriz stalinista, sendo também notórias suas declarações machistas e homofóbicas.
A disputa final entre Castillo e Keiko foi marcada pelas tentativas de terruqueo feitas pela direita, ou seja, a associação de Castillo às ações armadas de grupo como o Sendero Luminoso e o MRTA durante as décadas de 80 e 90. A memória do conflito – no qual assassinatos e atentados à bomba eram usuais também contra outros setores da esquerda – se mantém viva no debate político peruano, assim como o terrorismo de estado praticado pelo governo de Alberto Fujimori através de Vladimiro Montesinos, chefe dos serviços de segurança fujimoristas hoje preso. É interessante notar que o terruqueo é utilizado como ferramenta não apenas contra a esquerda, mas também contra grupos da direita moderada críticos ao fujimorismo.
A apertada vitória de Castillo levou a uma nova onda de luta para garantir sua posse, com uma mobilização permanente em frente ao Jurado Nacional de Elecciones ao mesmo tempo que protestos da direita exigiam a proclamação da vitória de Keiko. Nestes embates o grupo La Resistencia, de extrema-direita, assume protagonismo empoderado pelo significativo resultado eleitoral de López Aliaga e surge como mais um elemento da crise política do país. Após mais de um mês de conflitos, o Jurado Nacional declara a vitória de Castillo e este assume junto à vice-presidenta Dina Boluarte em 28 de julho.
O governo Castillo e a crise do Perú Libre
Pedro Castillo é um professor primário da pequena cidade de Chota, na região de Cajamarca, e teve grande protagonismo durante a grande greve de professores de 2017, na qual educadores de todo Peru estiveram por semanas acampados no centro de Lima. A greve foi realizada a partir da mobilização das bases e representou uma marco na organização sindical independente frente ao SUTEP (Sindicato Único de Trabajadores de la Educación em Perú) dirigido pelo oportunista Partido Comunista – Patria Roja. Em sua juventude foi membro das rondas campesinas que promoviam a autodefesa camponesa contra as guerrilhas do Sendero Luminoso e do MRTA, e não havia exercido nenhum cargo eleito antes da vitória presidencial.
Sua candidatura através do Perú Libre foi decorrente do impedimento legal de Vladimir Cerrón disputar a presidência. Através de um acordo entre Cerrón e Castillo, a legenda foi aberta aos representantes do magistério também nas eleições parlamentares e o partido de Cerrón alcançou uma expressão nacional inédita desde sua fundação em 2012. Antes com pouca expressão nacional e organizado fundamentalmente na região de Junín, o Perú Libre tornou-se o maior partido no parlamento justamente por essa aliança.
Já nos primeiros dias, o governo Castillo enfrentou uma série de ataques e terruqueos devido à composição de seu primeiro gabinete, chefiado pelo primeiro-ministro Guido Bellido. No Peru, o primeiro-ministro é escolhido para a função de presidir o grupo de ministros, mas sua nomeação está sujeita à aprovação do parlamento através do voto de confiança (não confundir com a “questão de confiança” descrita acima). Bellido é ligado à Cerrón e seria responsável pela aplicação de sua agenda no governo, mas a rejeição parlamentar e o risco de inviabilizar o funcionamento do governo logo em seu início levou a sua renúncia somente dois meses após assumir o cargo.
A renúncia de Bellido representou uma vitória da direita, colocando o governo na defensiva e desencadeando um processo de afastamento entre Castillo e o Perú Libre, com acusações justificadas de Cerrón sobre uma “ida ao centro” de Castillo. Neste processo tem destaque o papel cumprido pelo ministro da Economia, Pedro Francke, indicado pelo Nuevo Perú e promotor de uma política de conciliação com os setores empresariais ao redor da patronal CONFIEP (Confederación Nacional de Instituciones Empresariales Privadas). No lugar de Bellido, Castillo indica a advogada moderada Mirtha Vásquez (que havia sido da Frente Amplio) para a chefia dos ministérios na tentativa de aprovar um gabinete mais aceitável para o Congresso a fim de evitar um possível pedido de vacância presidencial.
As contradições do Nuevo Perú, um partido amplo de esquerda que reúne correntes reformistas e revolucionárias em seu interior, serão parte do debate de seu congresso que será realizado no fim de novembro. Apesar de sua ala direita ter um papel significativo nas políticas econômicas de Castillo, é um partido que aumenta sua capilaridade no interior e defende pautas importantes como a nova Constituição, a segunda reforma agrária[6], assim como pautas ecológicas e feministas, tendo papel protagonista na Frente Nacional en Defensa de la Democracia y la Gobernabilidad (FNDG). A FNDG é hoje o principal espaço de frente única do país, pautando a defesa da legalidade contra as tentativas de golpe da direita e a necessidade da nova Constituição.
Nesse cenário, o Perú Libre teve um papel extremamente sectário e rompeu com a Frente, chegando até mesmo a lançar uma coleta paralela de assinaturas para o referendo pela nova constituinte, na prática sabotando os esforços para este tema tendo em vista que são necessárias mais de dois milhões de assinaturas para o avanço legal da pauta. Há poucos dias, o próprio Cerrón declarou que a vitória de Castillo foi fruto de “uma casualidade”, ignorando todo o processo popular representado pela vitória do professor e colocando em dúvida inclusive o apoio de sua ala do Perú Libre ao governo, fato que levaria sua bancada a votar com o fujimorismo e repetir o erro esquerdista da Frente Amplio durante o golpe de Merino.
A crise interna do Perú Libre acelerou a formação de uma agremiação política própria de Castillo, o Partido Magisterial y Popular (PMP), organizado a partir dos trabalhadores da educação e de outros setores próximos ao presidente. Parte da combinação entre um processo progressivo de organização política das bases magisteriais, sindicalistas provinciais e até personagens ligados ao MOVADEF[7], o PMP representa uma parte importante da bancada do Perú Libre que hoje se opõe a Cerrón e espera conquistar sua legalidade em tempo recorde.
A vacilação do governo perante o empresariado nos seus primeiros meses de governo não tem tido o efeito desejado já que cada recuo de Castillo não representa um aumento da estabilidade. Ao contrário, estes recuos são utilizados pela direita para avançar posições e desmoralizar o governo buscando como objetivo a vacância presidencial. Um exemplo deste movimento aconteceu recentemente quando Castillo declarou intenções de nacionalizar o gás de Camisea (maior jazida de gás do país) e foi prontamente desautorizado por Pedro Francke e Mirtha Vásquez, que “explicaram” ao mercado que o significado desta nacionalização não teria nenhuma relação com uma possível estatização, mas sim com uma genérica melhora no aproveitamento do gás em favor da população.
Da mesma forma, outros pautas em debate hoje, como a segunda reforma agrária ou a reforma tributária (aumentando a taxação dos ricos), são marcadas por esta dubiedade na qual o governo aponta para mudanças estruturais para que logo depois seus ministros moderados tranquilizem a burguesia indicando os rígidos limites destas mesmas mudanças.
Lutas de massas e a necessidade de fechamento do Congresso
As contradições e vacilações do governo Castillo são decorrentes de uma combinação entre as confusões ideologicas do próprio presidente e a incessante pressão direitista pela sua derrubada. Nesse sentido, as exigências de avanço feitas pelos movimentos sociais estão sempre permeadas também por um permanente risco de golpe de estado. Esta tarefa dupla – a luta pelas grandes transformações e a defesa deste processo contra os ataques da direita – tem colocado a vanguarda peruana em um compasso de espera que começa a cobrar seu preço. Mas as desilusões com o novo governo e o cansaço derivado da longa jornada na defesa da posse de Castillo já parecem dar lugar a uma nova situação onde as lutas populares voltam à tona.
A mais recente indica disso aconteceu em Ayacucho[8], onde manifestantes atacaram e destruiram as instalações da mineradora Apumayo em protesto contra os efeitos do extrativismo predatório na região. O governo foi obrigado a dar uma resposta à população através de uma mesa de diálogo sobre o tema, colocando as mineradoras na defensiva e abrindo possibilidades para novos movimentos de contestação. Da mesma forma, ocorreram manifestações contra a mineração também em Áncash[9] e protestos de camponeses cocaleiros de Puno contra a criminalização do cultivo da coca[10], tendo como exemplo o processo ocorrido na Bolívia e apontando para um novo ciclo de luta pela vida e pela dignidade no campo.
Compreender as nuances e contradições da confusa situação institucional peruana não pode encobrir o papel do movimento de massas que tem protagonizado as verdadeiras mudanças políticas nos últimos anos, tanto nas resistências aos ataques da direita como nas lutas econômicas de trabalhadores e no enfrentamento aos grande projetos do extrativismo predatório. A tentação de resolver os reais problemas do pais “por cima” já demonstraram suas grandes limitações e o desenvolvimento da organização popular e das lutas sociais é a única saída possível para enfrentar tanto os ataques da direita como os entraves ao avanço das políticas sociais propostas pelo governo.
E, para conquistas estas mudanças, o fechamento do Congresso é essencial. No semiparlamentarismo peruano, o fechamento do Congresso é a saída legal para a convocação de novas eleições que permitam uma composição parlamentar na qual o governo possa avançar em sua agenda. Hoje, poucos meses após as eleições legislativas, já são 75% dos peruanos e peruanas que reprovam a atuação no Congresso na crise institucional[11], o que indica tanto uma maior desmoralização da direita como uma maioria popular em favor das mudanças.
O grande impeditivo para as novas eleições é a contrarreforma política aprovada recentemente pelo parlamento que retira faculdades legislativas da presidência e impede o fechamento do Congresso em caso da dupla negação da questão de confiança, além da suspensão das primárias para as eleições do ano que vem. Na prática, esta contrarreforma é uma manobra para inviabilizar um dos principais objetivos políticos da esquerda peruana e esvaziar o próximo processo eleitoral. Mas aparentemente foi uma manobra frágil, já que não impediu a manutenção desta exigência nas mobilizações e golpeou ainda mais a popularidade dos parlamentares que a votaram.
Nova Constituição para mudar tudo
O fechamento do Congresso é o primeiro passo legal necessário para desencadear um processo que leve a uma nova Constituição, já que o envio desta proposta ao parlamento atual certamente terá como resultado uma recusa. Como a contrarreforma impede este processo, a temperatura das ruas se acirra ainda mais com a via institucional para esta mudança temporariamente barrada.
A luta pela nova Constituição é central porque organiza em si todas as outras lutas. A atual Constituição foi promulgada em 1993 como consequencia do autogolpe de Fujimori e impõe mecanismos neoliberais que impedem a consolidação de uma série de direitos sociais aspirados pelo povo. Esta mobilização se insere no contexto de questionamento das cartas de outros países vizinhos, notadamente o Chile, e ganha cada vez mais força como uma medida objetiva que enfrente os interesses dos capitalistas peruanos e das multinacionais no país.
Nenhuma força política tem condições de promover tal conquista sozinha, o que exige cada vez mais uma política de frente única que permita a coordenação dos diversos setores em seu favor, empurrando os partidos de esquerda e seus representantes para uma postura de ruptura com o atual modelo. Para a direita, a Constituição fujimorista é sagrada por representar plenamente seus interesses de rapinagem na secular exploração do trabalho e das riquezas naturais do país.
A nova Constituição indica um processo de ruptura, e as diversas tentativas de mediação sobe este tema (como as propostas de reformas constitucionais pontuais) não tem tido sucesso justamente porque tentam negar uma polarização política que se aprofunda. Não por acaso, este tem sido um dos temas mais delicados na administração atual já que Castillo foi eleito defendendo a nova Constituição e não pode retroceder nisso sem amargar com as consequências do que seria visto pela maioria da população como uma traição. Mesmo o conciliador Pedro Francke, que no começo do governo contemporizou a necessidade da constituinte, hoje é obrigado a defender timidamente esta mudança devido tanto ao constrangimento interna de seu partido Nuevo Perú como à crescente pressão externa vinda das ruas em defesa desta proposta.
A FNDG é um espaço privilegiado para a construção da plataforma de unidade pela nova Constituição e, mesmo após as sabotagens sectárias de Cerrón, continua como articulação central para esta luta. Nesse sentido, o papel da FNDG é essencial na construção de comitês unitários locais e na organização de ações nacionais para garantir que esta luta se desenvolva à revelia das tentativas burocráticas do Congresso de barrá-la. Sem uma nova Constituição, os limites constituicionais sempre servirão como limitantes para as profundas e necessárias mudanças sociais, já com uma nova Constituição pode se abrir uma etapa de conquistas que reflita melhor a atual correlação de forças entre as classes sociais no Peru.
O terremoto virá?
A população de Lima vive permanentemente à espera de um abalo sísmico de grandes proporções que poderá repetir o terremoto de 1746, que destruiu a então capital colonial. Os edifícios tem rotas de fuga sinalizadas, diversas praças sinalizam pontos de encontro seguros e as famílias são orientadas a manter mochilas de emergência para sair de suas casas no caso de tremores mais graves. Segundo os sismólogos, são séculos de concentração de energia nas placas tectônicas que serão liberadas a qualquer momento com consequencias imprevisíveis.
O mesmo acontece no terreno político e social. Os séculos de colonialismo e exclusão resultaram em uma sociedade extremamente desigual que foram respondidos pelo povo com inúmeros processos de resistência, amenizando certas consequências da exploração sem nunca resolver os principais problemas sentidos no cotidiano da classe trabalhadora. A vitória do professor Castillo se insere nesse contexto de intensas e periódicas insurreições do povo peruano, que marcam a história do país e indicam as possibilidades de construção de uma nova sociedade. É impossível prever a magnitude de um próximo levante popular, mas também é impossível negar que as condições para ele se desenvolvem, muitas vezes de forma imperceptível.
Os desafios para a esquerda peruana estão colocados. Profundos processos sociais se desdobram de forma independente das superestruturas partidárias e provavelmente superarão suas representações institucionais caso estas não estejam à altura de suas tarefas históricas. E a preparação para os futuros combates já começou, não é hora de recuar.
1 Membros das Rondas Campesinas.
2 No Peru o poder legislativo é unicameral.
3 O etnocacerismo é um movimento político ultranacionalista peruano inspirado nas ideias do marechal Andrés Cáceres (1836-1923) e liderado atualmente pelo militar preso Antauro Humala, irmão do ex-presidente Ollanta.
4 A legalidade dos partidos peruanos é determinada por uma série de requisitos como número de filiados, quantidade de sedes provinciais, entre outros. Após a conquista da legalidade, o partido precisa atingir 5% dos votos nacionais na eleição subsequente para mantê-la.
5 Partido ligado à igreja evangélica Misión Israelita del Nuevo Pacto Universal.
6 O Peru promoveu uma primeira reforma agrária nos anos 1960 através de um intenso processo de lutas liderado pelo líder trotskista camponês Hugo Blanco.
7 O MOVADEF (Movimiento por la Amnistía y los Derechos Fundamentales) é o principal grupo sucessor do Sendero Luminoso.