O pacto pela morte entre Belarus e Polônia
Isabelle Ottoni escreve sobre os conflitos políticos e migratórios na fronteira de Belarus com a Polônia, Lituânia e Letônia.
“Em imensas caravanas, marcham os fugitivos da vida impossível. Viajam do sul para o norte e do sol nascente para o oeste.” Eduardo Galeano
A crise migratória mundial não é novidade. O acirramento das disputas nas fronteiras da União Europeia também ocorre há anos. Mas o que acontece hoje na fronteira de Belarus com a Polônia, Lituânia e Letônia dá contornos ainda mais cruéis ao desprezo de ditadores como Aleksandr Lukashenko à dignidade humana.
Conhecido como o “último ditador da Europa”, Aleksandr Lukashenko está no poder como presidente de Belarus desde 1994. O país é o único da Europa que ainda adota a pena de morte, a KGB segue sendo uma polícia secreta a plenos poderes e insultar o presidente é um crime grave no país, que se vê longe de ser uma democracia. No auge da pandemia, recomendou à população bielorrussa “vodka e saunas”. Em campanha na eleição presidencial de 2020, afirmou que ganharia, pois “a sociedade não está pronta para votar em uma mulher, porque a Constituição dá forte autoridade ao presidente.” Seus rivais na política sempre acabam presos ou desaparecidos.
Apesar de isolado de quase toda a Europa, tem um apoio que o ajuda a se manter no poder: Vladimir Putin, presidente da Rússia. Ambos são presidentes de regimes com muitas semelhanças: eleições fraudadas, perseguição de rivais políticos e violência contra à população. Após a questionada vitória de Lukashenko com 80% dos votos em 2020, a população de Belarus tomou as ruas, com protestos massivos que duraram meses, mesmo com a dura repressão policial. Putin chegou a oferecer o exército russo para controlar os atos, que aconteciam por todo o território bielorusso.
A falta de respeito ao processo democrático e os graves ataques aos direitos humanos daqueles que protestavam após o resultado da eleição fizeram a União Europeia não reconhecer Lukashenko como eleito a um sexto mandato consecutivo. Junto a isso, impôs diversas sanções econômicas ao vizinho do Bloco. Lukashenko respondeu de forma cruel: conspirou para a criação de uma crise imigratória em suas fronteiras.
Belarus mudou sua política de emissão de vistos para pessoas em países em guerra ou conflitos. Agilizou a viagem e agiu indiretamente junto a empresas que vendiam “pacotes de viagem” de imigração para União Europeia[1]. Esses imigrantes vêm especialmente do Iraque, mas também da Síria, Afeganistão, Congo e Camarões. E são direcionados, com o auxílio do exército de Belarus, às fronteiras. O fluxo de imigrantes ilegais na Lituânia cresceu de 6 pessoas em março de 2021 para 3.115 pessoas em julho. “Lukachenko facilita os vistos, aí eles entram no avião e vão. Todos entram pela Belarus. Com a Covid, não tem outro jeito. Está tudo fechado na União Europeia. Então Lukachenko abriu essa avenida para Letônia, Lituânia e Polônia”[2], contou para a Folha um homem no Campo de Refugiados de Pabradé, uma das fronteiras entre a Lituânia e Belarus.
Quando a Lituânia fechou completamente sua fronteira, o foco passou a ser a Letônia. Quando o país também fechou a fronteira, o foco passou a ser a Polônia, que está agora no centro dos conflitos. 15 mil militares poloneses foram deslocados para a fronteira, criando uma zona de segurança de três quilômetros, totalmente vigiada. O acirramento da violência na fronteira de Bruzgi-Kuźnica já matou oito pessoas, incluindo uma criança. Os oficiais poloneses usam jatos de água e bombas e gás para dispersar os imigrantes.
Enquanto a União Européia se solidariza com a situação da Polônia, assim como a OTAN, as vítimas passam a ser os países, e não a população imigrante, feita de peões em um jogo de xadrez diplomático. O Ministério da Defesa da Polônia acusa Belarus de equipar os imigrantes com granadas de atordoamento, e Belarus também se recusa a receber de volta os imigrantes. O frio na fronteira polonesa vai muito além do que alguém deveria ser submetido, com condições insalubres, dormindo em pedaços de lona e sem aquecimento. É ainda pior a situação de quem encontra coragem para atravessar a fronteira pelas florestas. A região mais comum tem sido Podlaskie, na fronteira ao nordeste da Bielorrússia e da Lituânia, e é a mais fria da Polônia. Não importa o horário, as temperaturas sempre estão negativas.
Se por um lado Lukashenko age como o autocrata que é, usando o desespero de milhares como ferramenta política, a União Europeia passa muito longe de ser exemplo de defesa dos direitos humanos. Ylva Johansson, Comissária de Assuntos Internos na UE, acusa Lukashenko de “inventar imigrantes”, e afirma que “não existe acesso livre ao território da União Europeia”. Quando afirma isso, Ylva não está apenas concordando com a política de manter pessoas congelando de frio na fronteira. Ela concorda também com o premiê da Polônia, Morawiecki, de invocar o Artigo 4º do Tratado da Otan. O Artigo fala sobre chamar reuniões de emergência entre países, precedendo um ataque armado. Apesar da Polônia ainda não ter firmado a reunião, Letônia e Lituânia já concordaram com a iniciativa. A ação armada não seria uma novidade: em março de 2014, a Polônia utilizou a medida em meio aos conflitos entre Rússia e Ucrânia.
No vai e vem de disputas diplomáticas, quem sofre e vira alvo do fogo das disputas é quem se vê fugindo de uma guerra armada para entrar em outra, como indica Lukashenko que quer fazer. A UE também pediu o auxílio de Putin, defensor do regime de Belarus, para intervir com Lukashenko. O Kremlin até prometeu intermediar uma reunião entre o Bloco e Minsk, mas tem evitado tumultuar sua relação com o vizinho e aliado comercial. Conseguiu que Angela Merkel, em seus últimos dias como premiê da Alemanha, telefonasse a Lukashenko. De onde pouco se espera, nada vem. E as ligações muito prometem, mas não promovem nenhuma mudança na situação das fronteiras.
A situação da imigração na Europa não será resolvida enquanto a solução dos supostos líderes mundiais passar pela construção de muros, como faz a Lituânia. Isolados, escondidos e sem direitos, são poucas as exigências que quem migra consegue fazer. É papel de quem luta por um mundo organizado em torno das demandas da população trabalhadora que se mova também por aqueles sem casa, sem pão e sem terra nas fronteiras. Governos não podem dizer que defendem os direitos humanos se negam direitos a quem foge da guerra, da fome e da miséria. Um mundo livre de exploração é também um mundo onde todos têm o direito de migrar e viver uma vida digna. Na placa de uma manifestante, a luta toma voz: respeite nossa existência ou espere resistência.
[2] Imigrantes ficam presos em ‘terra de ninguém’ nas portas da União Europeia