Venezuela Madurista: do progressismo ao neoliberalismo autoritário
Antonio de Antunes da Cunha Neto escreve uma análise da Venezuela sob o governo Maduro.
A Revolução Bolivariana não só produziu uma mudança excepcional no Regime Constitucional da Venezuela, mas também instalou na América Latina a continuidade da Primeira Independência contra o Colonialismo em nossa região com vistas à Segunda Independência: a Independência Econômica. Um projeto inacabado que deve ser retomado e que as burguesias do Brasil e da Argentina, com controle dos setores produtivos mais importantes da região, impediram seu processo de desenvolvimento: os povos empurraram como nunca antes, mas nem Lula com o Partido dos Trabalhadores nem Kirchner com o Partido Justicialista se ataram à locomotiva para fazer avançar a Segunda Independência: houve tentativas, MERCOSUL, UNASUL, ALBA, entre outros organismos regionais que foram desgastados até, praticamente, sua inexistência.
Daquele período do chamado “Progressismo” em flagrante fracasso, destaca-se a reviravolta representada pelo governo de Maduro: um governo que enterrou o Projeto Segunda Independência, assim como seus pares no Brasil e na Argentina que permitiram e são responsáveis pela chegada de Macri e Bolsonaro como representantes do modelo extrativista das personificações do capital global que hoje marcam a rota do desastre climático e que, surdos às advertências do IPCC, estão aprofundando o modelo produtivo capitalista de extinção do planeta.
Maduro: Do progressismo ao neoliberalismo autoritário
As medidas autoritárias adotadas pelo governo de Nicolás Maduro na Venezuela, tais como a Lei Antibloqueio e as Zonas Econômicas Especiais que incluem preferencialmente “zonas militares especiais”, são apenas exemplos de como o governo venezuelano não apenas se afastou do velho progressismo, mas retrocedeu no que significa a maior política de entrega do patrimônio público do povo venezuelano ao capital internacional.
Além das medidas econômicas abertamente neoliberais na arena política, Maduro e seu regime estão caminhando para um estado autoritário, tentando privar a oposição de esquerda ao direita à sua expressão e representação política e eleitoral, como expresso pela impugnação de Eduardo Samán de se registrar nas eleições municipais e pelas intervenções nos partidos de oposição de esquerda no passado recente. Por outro lado, há alguns meses, a prisão dos líderes dos sindicais tem sido freqüente e injustificada.
A situação política na Venezuela está piorando e Nicolas Maduro está inaugurando um regime com suas digitais. De fato, este curso levou, e não por acaso, a muitos setores, ex-ministros de Hugo Chaves, militantes reconhecidos da esquerda venezuelana e líderes sindicais a se tornar cada vez mais críticos em relação ao governo.
Em resumo, a “Lei Antibloqueio” foi aprovada por uma ANC – Assembléia Nacional Constituinte, sem a autorização do povo como poder original em referendo, conforme estabelecido pela constituição atual. Deve-se lembrar que Hugo Chaves assumiu a Presidência da Venezuela em 1998 e em 1999 solicitou um Processo Nacional Constituinte via Referendo que prosseguiu com a eleição dos membros da Assembléia Nacional Constituinte para redigir uma Nova Constituição, que foi posteriormente aprovada pelo Povo em Referendo. Seguiu-se um novo processo eleitoral para a Presidência e todos os órgãos do Estado eleitos pelo povo: um exercício de Democracia Direta Constitucional nunca antes visto onde, posteriormente, o governo Chávez perdeu um Referendo para uma Reforma Constitucional e ganhou outro referendo que a oposição ativou em meados de seu segundo mandato para retirá-lo da Presidência.
Nicolás Maduro, ao contrário de Hugo Chávez, violando o mandato referendário do poder original que reside no povo venezuelano para decidir se quer ou não uma mudança na Constituição, instalou uma Assembléia Nacional Constituinte que acabou ditando “leis qualificadas como constitucionais” sem o apoio da população e violando o exercício direto e referendário da Constituição Bolivariana da Venezuela. Um movimento que concedeu mais poderes inconstitucionais ao governo de Maduro para avançar, principalmente, em sua política extrativista da lei da ZEE. Isso se soma a toda uma cadeia de violações dos Deveres do Estado quanto ao Direito à informação sobre o Orçamento Nacional, o Plano Operacional Anual da Nação, o Direito ao estabelecimento de um Salário Mínimo Nacional Constitucional (Art. 91 CRBV) e a garantia da Segurança Alimentar da população: todo um exercício de governo sem controle das instituições que devem garantir o cuidado e o cumprimento da Constituição, ou seja, a Procuradoria Geral da República, a Suprema Corte de Justiça, a Controladoria Geral da República, a Defensoria do Povo, entre outros.
Lei antibloqueio concentração de poder e perda de soberania nacional
Luis Britto García, historiador e conhecedor da realidade venezuelana, define a lei anti-bloqueio da seguinte forma:
“Em resumo, o Projeto de Lei Antibloqueio propõe conceder poderes absolutos e discricionários ao Executivo para “não aplicar” normas legais e decisões judiciais que ele não considere pertinentes, celebrar tratados internacionais, administrar, ceder ou entregar bens públicos, criar com eles ou com seus rendimentos fundos separados do Tesouro administrados independentemente do Orçamento Público, reestruturar livremente todas as entidades estatais descentralizadas com fins empresariais, adotar medidas para privilegiar o investimento privado nacional e internacional, conceder as últimas garantias contratuais de proteção e sucesso econômico, renunciar à imunidade soberana de jurisdição, submetendo-se a cortes e tribunais estrangeiros em disputas sobre questões de ordem pública interna, restituir a seus supostos proprietários propriedade afetada por qualquer medida executiva, legislativa ou judicial ou suspensão de concessões, arbitrar novos e excepcionais procedimentos discricionários para tais atos, e eliminar o direito à informação verdadeira e oportuna, divulgação e livre expressão de pensamento sobre tais atos ou procedimentos que sejam declarados confidenciais. “[1]
ZEEs – fragmentação da soberania territorial venezuelana.
Com base na lei anti-bloqueio que Nicolás Maduro impôs no ANC a lei das Zonas Econômicas Especiais. De fato, isso significa uma fragmentação do território com a perda da soberania nacional sobre certas regiões onde o capital internacional poderá fazer investimentos sem se submeter ao controle legal e constitucional do Estado venezuelano violado pela desregulamentação da legislação trabalhista para facilitar não apenas a exploração do território, mas também dos trabalhadores venezuelanos. Uma virada para o neoliberalismo que só beneficia os investidores estrangeiros e os grandes capitais. Em recente artigo publicado na Aporrea, o economista esquerdista Oly Millán Campos, membro da Plataforma em Defesa da Constituição, define Zonas Econômicas Especiais da seguinte forma:
“Como definição: os elementos-chave para o desenvolvimento das ZEEs estão centrados na desregulamentação: econômica, financeira, fiscal, tributária, trabalhista e ambiental, em benefício do capital”. [2]
De acordo com a lei que institui as Zonas Econômicas Especiais, os investidores estrangeiros e/ou nacionais nessas zonas estão isentos de regulamentações legais, sejam elas trabalhistas, tributárias, ambientais, etc. Eles não estão sujeitos aos tribunais do país e podem até ser restituídos por quaisquer perdas geradas por medidas coercitivas atribuídas ao Estado venezuelano. As receitas geradas nessas zonas são incorporadas a um orçamento paralelo controlado exclusivamente pelo executivo, como estabelecido pela Lei Antibloqueio, e a remessa de receitas ao exterior também está sujeita a regras específicas das ZEEs.
De fato, as duas leis, as das ZEEs e a Lei Antibloqueio, juntas formam uma contra-reforma neoliberal que está subordinada aos ditames do FMI e está de acordo com os interesses das empresas multinacionais e transnacionais.
Para o líder LUCHAS Luis Bonilla, professor, pesquisador e ex-presidente do Centro Internacional Miranda, o que está acontecendo na Venezuela é uma mudança de modelo econômico.
“Na Venezuela, uma mudança de modelo econômico está em andamento, em linha com as recomendações mais profundas do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional para passar de uma agenda social de amplo investimento para um regime de mercado competitivo. Isto parece ser o resultado de negociações diretas entre a Casa Branca e Miraflores, buscando a estabilidade política e o levantamento progressivo das sanções”.[3]
É evidente que o bloqueio econômico imposto pelos EUA gerou muitos prejuizos para a economia e o povo venezuelano, mas também é verdade que a incapacidade administrativa, os interesses da burocracia estatal e a nova classe social que surgiu dentro do próprio governo – uma parceria entre uma parte da cupula militar representada por Diosdado Cabello e a burocracia sindical representada pelo próprio Maduro – a chamada boliburguesia levou a Venezuela a um imenso e alarmante desastre econômico e político. Hugo Chaves apontou mais de uma vez a necessidade de fazer revolução na revolução, resgatou Leon Trotsky e a teoria da revolução permanente em mais de uma ocasião e colocou o problema de combater a burocratização da Revolução Bolivariana. Lamentavelmente, nesta luta, os elementos burocráticos e personificações dominaram os revolucionários e a Venezuela está dando longos passos na direção do que é hoje a Nicarágua.
Impugnação de Eduardo Samán, mais um passo rumo ao autoritarismo
O desafio da candidatura de Eduardo Samán (Alternativa Popular Revoluciona – PCV) por parte do CNE a prefeito de Caracas, capital da Venezuela, expõe o aprofundamento do caráter do governo de Nicolás Maduro e reforça o rumo autoritário do regime venezuelano.
Eduardo Samán foi Ministro do Poder Popular para o Comércio durante o governo de Hugo Chávez, foi um dos muitos fundadores do PSUV e é um militante ativo na defesa da revolução bolivariana.
De maneira absolutamente injustificada e autoritária, o CNE – Conselho Nacional Eleitoral – contestou a candidatura de Samán com base em uma decisão infundada da Controladoria Geral da República. Inclusive membros do TSJ – Tribunal Supremo de Justiça – se pronunciaram sobre tão grave ataque à democracia. Durante sete anos sem ocupar nenhum cargo público, Eduardo Samán não respondeu a uma investigação, nem foi condenado por nenhum crime em nem uma instãncia do sistema judicial. Sua candidatura é pela a APR pelo Partido Comunista da Venezuela-PCV, o único partido de oposição de esquerda que conseguiu manter o registro eleitoral após a última investida autoritária do regime madurista. A decisão sobre Samán é parte de uma estratégia recorrente do governo de Maduro de judicializar a política, a ponto de deixar registro eleitoral o Partido Patria Para Todos (PPT) do qual Samán é membro, o partido Tupamaros que teve seu principal dirigente preso, o MEP e outros grupos de esquerda. Enquanto isso, os acordos assinados no México garantem aos partidos de oposição de direita o registro de seus candidatos para as eleições, uma contradição que só pode ser explicada pelo medo de Nicolás Maduro de perder espaço eleitoral para a oposição de esquerda.
A coisa mais grave está acontecendo no mundo do trabalho, onde centenas de líderes sindicais foram submetidos a julgamento criminal ou militar, com dezenas deles na prisão, apenas por lutar por um salário justo em um país onde a maioria da população não ganha mais do que 10 dólares por mês. Isto mostra a falsidade do slogan de que o governo de Maduro é um governo de trabalhadores. Esta ofensiva contra as organizações sindicais e a classe trabalhadora faz parte da virada neoliberal e da orientação estratégica do acordo que está sendo construído nos chamados diálogos do México.
A Venezuela, de um dinâmico pólo latino-americano anti-imperialista, está se tornando, juntamente com a Colômbia e o Brasil, um dos pólos mais atrasados da luta de classes no continente. Sob o argumento do bloqueio econômico unilateral imposto pelo governo dos Estados Unidos, Nicolás Maduro está impondo medidas autoritárias ao regime político e medidas neoliberais em relação à economia e à soberania territorial e sobre os recursos minerais, petróleo e ouro venezuelanos. Certamente, nós revolucionários denunciamos o criminoso e ilegal bloqueio americano, mas também todas as políticas antipopulares que o governo Maduro pretende impor sob o argumento de combater estas sanções.
A escalada autoritária do regime de Nicolás Maduro choca com o espírito democrático consagrado na Constituição da República Bolivariana, redigida e aprovada por referendo popular em 1999.
Maduro e seus seguidores não podem mais ser contados como uma ala avançada do confronto com o imperialismo na América Latina, não por suas dificuldades econômicas ou pela vontade do povo venezuelano, mas por causa das escolhas do regime de Nicolás Maduro. Felizmente ainda há na Venezuela uma vanguarda de muitos líderes operários, líderes políticos, até mesmo ex-ministros e autoridades nos governos de Hugo Chaves que estão dispostos a continuar lutando em defesa da constituição dos cidadãos aprovada pelo povo venezuelano em 1999. A própria constituição da Alternativa Revolucionária Popular é a prova de que há espaço para a oposição de esquerda e que as organizações políticas e sociais ali presentes podem apresentar um programa para defender medidas de resgate do caráter do que já foi a revolução bolivariana.
[1] www.aporrea.org/tiburon/a295799.html
[2] www.aporrea.org/economia/a303785.html
[3] [VENEZUELA] Cambio de modelo económico sin cambio de gobierno y la aparente “suspensión” del diálogo en México – TatuyTV