A luta cocaleira no Vale do Monzón
A luta coraleira no Vale do Monzón e as contradições da políticas de “guerras às drogas”.
O vale do rio Monzón é considerado o lugar mais fértil para a produção da folha de coca no Peru. Afluente do rio Huallaga, o Monzón se localiza em uma região marcada pela violência estatal e pela presença de remanescentes do grupo guerrilheiro Sendero Luminoso até poucos anos atrás. Acossados permanentemente pela política de guerra às drogas dos EUA, os mais de 12 mil camponeses do Monzón tem uma história de luta e resistência exemplar que demonstra as contradições e interesses escusos da política continental de “guerra às drogas”.
Chegar ao vale não é simples. Localizado na chamada selva da região de Huánuco, está próximo da cidade de Tingo María (conhecida como o portal da Amazônia peruana) e possui apenas uma estrada de acesso que termina no próprio vale. Seguindo o curso do rio surgem pequenos povoados agrícolas como Agua Blanca, Palo Acero e Sachavaca, e após uma barreira policial chega-se a Cachicoto, maior centro local de comércio e serviços.
A aparência tranquila do distrito contrasta com os relatos dos moradores e lideranças camponesas. Conversas bem humoradas sobre as belezas naturais da região se mesclam com histórias de prisões, sequestros e ameaças, enunciando a dura situação de localidades historicamente disputadas por militares, guerrilheiros e narcotraficantes. O envenenamento realizado por fumigações aéreas contra as plantações de coca é outro tema recorrente, sendo responsável por diversos tipos de problemas sociais e sanitários na área.
Nesse cenário surge a chamada “ideologia do Monzón”, a ideia das lideranças cocaleiras em defesa da da autonomia local e da produção da folha de coca como fundamentos da organização popular e da cultura paisanokuna [1].
Coca ou morte: venceremos!
A maior parte dos produtores de coca do vale são registrados para o cultivo legal desde 1978, mas passaram as últimas décadas resistindo à política de erradicação das plantações orientada pelo governo dos Estados Unidos principalmente a partir dos anos 1970. Sobre pressão dos EUA, o governo peruano cria em 1981 o Projeto Especial de Controle e Redução do Cultivo de Coca no Alto Huallaga (CORAH), reorganizado em 2002 como Comissão Nacional para o Desenvolvimento e Vida sem Drogas (DEVIDA). A DEVIDA é um organismo governamental peruano financiado diretamente pela USAID [2] para conduzir a “Estratégia Nacional de Luta contra as Drogas” no país.
A DEVIDA desenvolve projetos sociais em áreas de cultivo de coca como retaguarda da repressão militar, além de estratégias de prevenção ao uso de drogas. No vale, a política de erradicação combinou a erradicação com tentativas de substituição de produção, implantando culturas como café, cacau e pescados que não tiveram sucesso suficiente. “Nesse vale plantamos café e nasce coca, plantamos cacau e nasce coca” diz um camponês contrário ao processo de substituição, além de frisar que o envenenamento das plantações promovido durante a ditadura de Alberto Fujimori (1990-2000) fez desaparecer outras culturas tradicionais como do mamão e da laranja.
Em 2008 foi desenvolvido pelos próprios agricultores o Verdadeiro Plano Estratégico de Desenvolvimento Integral Sustentável dos Vales Cocaleiros da Região de Huánuco, um planejamento estratégico local que propõe uma série de medidas para o desenvolvimento humano na zona, incluindo a liberação da produção de coca mas também propondo novas culturas e a ampliação de outras fontes de renda propícias para a região, como o turismo. Mas de 10 anos depois, o Plano pouco saiu do papel mas continua sendo um programa de desenvolvimento regional comprovadamente viável.
Segundo os agricultores, um dos motivos para o atraso no plano se deve ao fato de que apenas 20% dos recursos destinados pela DEVIDA são utilizados diretamente na produção, através da distribuição de sementes e fertilizantes, enquanto 80% dos recursos são gastos administrativos e assessoria aos processos de repressão. Além disso, na maioria das vezes a erradição tem como alvo principal pequenos agricultores legalizados, deixando de lado grandes produtores com conexões políticas.
Entre o exército e a guerrilha
A história do vale do Monzón é marcada pela violência estatal e pela presença do Sendero Luminoso, sendo ao mesmo tempo uma “zona quente” de atuação do exército peruano e da coluna senderista comandada pelo Camarada Artemio, preso em 2012. Nas últimas décadas, as comunidades cocaleiras foram alvo das armas tanto da “guerra às drogas” estadunidense como da guerrilha senderista, em um ciclo de violência retroalimentado no qual lideranças comunitárias independentes eram perseguidas por ambos os lados. Apesar dos inúmeros crimes cometidos pela ação estatal, não se pode esquecer também do terrível papel jogado pelo Sendero na perseguição a qualquer forma de organização não submetida ao seu comando, e casos como o Massacre de Lucanamarca [3] ou o assassinato da líder popular Maria Elena Moyano [4] ainda estão vivos na memória da esquerda peruana.
Nesse cenário, o narcotráfico floresceu como atividade econômica com ligações tanto no governo como na guerrilha, utilizando a mão de obra barata do vale para a produção conectada com vastas redes internacionais. Enquanto os cocaleiros defendem a legitimidade de sua produção tradicional, a política de erradicação acaba por fortalecer o narcotráfico ao marginalizar a atividade econômica cocaleira e impedir as inúmeras propostas de desenvolvimento sustentátel ligadas à cultura da coca.
Os cocaleiros defendem que a folha de coca não é uma droga. A coca é uma erva com propriedades medicinais largamente utilizada nas regiões andinas por centenas de anos e sua produção é essencial à vida de inúmeras comunidades. Segundo o líder cocaleiro Eduardo Ticerán, são necessários 56 elementos químicos para a transformação da folha de coca na cocaína, e nenhum destes elementos é produzido no Peru. Para ele, o problema do narcotráfico é parte de um sistema internacional de produção manejado por empresários ligados à redes de comércio estrangeiro com profundos laços com o próprio governo peruano, sua polícia e exército.
O próprio Ticerán foi preso injustamente em 2011 acusado de narcotráfico e terrorismo, tendo passado quase 7 anos injustamente na prisão em um processo que contou com mais de 160 presos e apenas 12 condenados com provas. Sua primeira tentativa de prisão aconteceu poucos anos antes, mas a população fechou a única estrada do vale e resgatou seu dirigente da viatura policial, levando o companheiro à meses de clandestinidade, e no dia de sua segunda prisão Eduardo foi levado de helicóptero à delegacia mais próxima para evitar a mobilização em sua defesa. Lembrar o tempo no cárcere (do qual saiu absolvido) emociona o líder camponês ao mesmo tempo que parece acirrar sua confiança na organização dos cocaleiros.
O companheiro Garcia Carrillo, atual presidente da federação de agricultores do vale, lembra também das três execuções realizadas pela polícia durante uma manifestação contra o processo de erradicação em 2012. As três vítimas sofreram ferimentos de bala e morreram após horas de agonia sem nenhum tipo de socorro dos serviços públicos.
Apesar do histórico trágico, a organização cocaleira se manteve nas últimas décadas questionando os interesses das diversas forças em jogo. A derrota dos projetos tanto da guerrilha como da política de “guerra às drogas” é evidente, e a perspectiva dos camponeses hoje se volta novamente ao Plano Estratégico de 2008 e sua proposta de 45 projetos produtivos para o vale. Os anos de intensa repressão não conseguiram destruir as organizações sociais locais, que se mantém firmes na defesa de sua autonomia e de suas propostas de política pública.
As perspectivas no governo Castillo
A vitória de Pedro Castillo representou uma esperança de mudança nas políticas públicas sobre a produção da coca, mas a atual crise de seu governo tem como efeito também a vacilação do presidente sobre este tema. Recentemente, os parlamentares Wilson Quispe e Margot Palácios (Perú Libre) apresentaram um projeto de lei baseado na Lei da Folha de Coca da Bolívia, buscando caminhos legais para atender os interesses camponeses. Da mesma forma, Verónika Mendoza e seu partido Nuevo Perú também se declaram na defesa dos cocaleiros, colocando este tema novamente no centro do debate político do país.
A direita peruana prontamente denunciou o projeto de lei, buscando identificar com defensores da coca como narcotraficantes e terroristas e pedindo o aumento da repressão contra os produtores. As denúncias de “plágio” da lei boliviana feitas pela imprensa se combinam com denúncias sobre a relação entre os camponeses e o narcotráfico, seguindo as orientações da embaixada norte-americana e apostando novamente na criminalização como resposta às lutas por autonomia local.
Pressionado por ambos os lados, o vacilante Castillo ainda não assumiu uma postura assertiva em defesa da folha de coca. Entretanto, as contradições que Castillo tenta manejar continuam se aprofundando e os camponeses cocaleiros podem ter um papel chave no futuro do processo de luta por mudanças no país, representando não somente um importante setor do campesinato como também a defesa da própria cultura e da população quechua. O exemplo boliviano sobre o tema demonstra a viabilidade e as possibilidades oriundas da legalização do cultivo, servindo de base para uma nova abordagem sobre a questão construída desde a própria população cocaleira.
A mistura entre apoio e desconfiança perante o novo governo marca a posição dos camponeses do Vale do Monzón, que estão dispostos a defender não somente a produção da folha de coca, mas também estão dispostos a defender profundas reformas estruturais no modelo agrário peruano. A crise institucional que o país vive desde 2017 aprofundou a polarização política e abriu possibilidades também para os camponeses que votaram por Castillo como ferramenta para avançar nessa luta, e a política do novo governo sobre o tema da coca pode ser um dos definidores do apoio popular ao próprio governo.
[1] Paisanokuna é um movimento cultural que valoriza as origens indígenas e tradições locais. O nome reúne as palavras “paisano” (“conterrâneo” em espanhol) e “kuna” (pronome plural no idioma quechua).
[2] Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional.
[3] O Massacre de Lucanamarca foi um assassinato em massa realizado pelo Sendero Luminoso na região de Ayacucho em 1983, executando 69 camponeses (incluindo mulheres e crianças) da comunidade que não aceitava o controle da guerrilha.
[4] Maria Elena Moyano foi uma assistente social e líder comunitária na periferia de Lima, assassinada pelo Sendero Luminoso em 1992.