Marighella: faces de um comunista, poeta e homem leal
Lápide de Marighella

Marighella: faces de um comunista, poeta e homem leal

Contra uma nação de atrasos, é urgente defender, também, a cultura, o cinema nacional.

Iolanda Silva Barbosa 15 dez 2021, 14:02

“Foi aprendendo a ler
olhando mundo à volta
e prestando atenção
no que não estava a vista
assim nasce um comunista”[1]

 Ao findar de mais um fatídico – especialmente fatídico- ano, nestes lados da periferia do Capitalismo, num mundo ainda- e, ao que parece, cada vez mais- assolado por catástrofes, genocídios e suas variantes, temos a sensação de que vivemos em atraso. Ainda na ressaca dos piores momentos da pandemia em 2021, por exemplo, mais do que nunca resta a sensação de que perdemos muito, de muita coisa, e de que tudo que agora torna ou chega vem em atraso: país em atraso, vacinas em atraso, cultura em atraso- não no que se produz, é certo dizer, mas ao que temos tido acesso e à nossa própria reação a tudo que tem acontecido.

 O esperado Marighella foi um dos que assim chegaram para nós, com um atraso de mais de um ano. Como responsáveis por isso, poderíamos citar o desmonte de agências de fomento cultural, como a ANCINE, além dos rompantes de censura, por vias de burocratização e de tentativas de inviabilização, que constituem algo como uma sátira, uma metalinguagem amarga do próprio filme. Afinal, a obra coloca em cena a memória de um daqueles que, ao bem querer de Mangueira, foram “de aço nos anos de chumbo”, e resgata, ainda que se questione tais métodos e táticas, um “banditismo por uma necessidade, por uma questão de classe”[2]. Problemas semelhantes ocorreram com o importante e belíssimo A vida invisível (2019), cuja exibição dentro da própria ANCINE foi vetada, e, mais recentemente, com Medida provisória, produção dirigida por Lázaro Ramos, que tem sido chamada de “distopia racial”.

 Dessa forma, contra uma nação de atrasos, é urgente defender, também, a cultura, o cinema nacional.

 Nesse sentido, ainda que alguns aspectos técnicos do filme, como a construção de diálogos e o percurso narrativo de sua montagem, em especial nos seus primeiros atos, possam deixar a desejar, é pouco questionável a sua importância política e histórica. Afinal, resgata, bem ao ideal benjaminiano[3], a imagem de um militante da magnitude de Carlos Marighella, em tempos de recorrentes e esbravejantes ameaças golpistas e laudatórias à supressão de direitos, além da própria disputa de narrativas acerca do que foi a ditadura e a resistência a ela. Assim, as gravações da Rádio Libertadora, por exemplo, apresentadas no filme, poderiam ser reproduzidas com quase nenhuma alteração, sem perder a atualidade, mais de 50 anos depois.

 Há de se louvar, ainda, a grande iniciativa, por parte de independentes e dos próprios produtores do filme, em leva-lo a exibições populares. Um trabalho político de alcance, que se faz por meio das artes, da cultura, do cinema.

 Para além de tudo isso, quanto ao conteúdo do filme em si, um dos seus maiores trunfos é, possivelmente, nos apresentar, sobretudo por via da paternidade de Marighella, a face humana do comunista guerrilheiro, assim como de outros militantes em seu entorno. Há, nesse sentido, como expresso pelo próprio diretor, uma centralidade do valor do sacrifício. Assim, já ao final do filme, por exemplo, Marighella exorta, em mensagem ao filho, que se deve ser “amoroso, leal, honesto”. Essa abordagem, por mais que pudesse se arriscar a um sentimentalismo simplório, demonstra, ao contrário, consonância com a paixão revolucionária, com o cerne moral do combatente e sua causa.

 Além disso, outra face de Marighella, por vezes esquecida, ignorada, negligenciada ou reduzida, e que não é sequer aludida no filme, é a de que ele foi também poeta- atividade que, subversiva, dizem, lhe valeu a primeira prisão. É por esse fator biográfico que os versos de Caetano, “foi aprendendo a ler/olhando mundo à volta/e prestando atenção/no que não estava a vista/assim nasce um comunista”, ganham renovada importância. Por essa perspectiva, o ser revolucionário poderia ser compreendido, talvez, enquanto resultado de uma modalidade especial de alfabetização, de uma leitura aprofundada de mundo e, em remissão à atividade poética, de uma reorganização, reescrita, da realidade, com a subversão de seus signos e sentidos.

 Assim, sob o efeito da grandeza da história de Marighella e das próprias sequências de intensa violência do filme, com a representação crua das sessões de tortura e dos bastidores do regime, por exemplo, ao subir dos créditos, ao som de “Mil faces de um homem leal”, muitos de nós somos levados a refletir quanto ao nosso papel e atuação na construção revolucionária, a rever nossos métodos e táticas de militância, nossa dedicação real a um novo projeto de Brasil e de mundo. Essa parece ser uma das demonstrações de que a exibição da obra é, como dito pelo próprio Wagner Moura em entrevista ao Roda Viva, uma “experiência catártica”.

 Afinal, como diria Caetano, “os comunistas guardavam [e ainda guardam] sonhos” e, assim como proclamava a Rádio Libertadora, Marighella e Marighella falam “de qualquer parte do Brasil, para os patriotas de toda a parte.” Eis muito do que “é preciso ter coragem de dizer”[4].


[1] Caetano Veloso em “Um comunista”, homenagem a Marighella. Canção analisada em minúcias em artigo de Pedro Serrano (https://movimentorevista.com.br/2017/11/caetano-um-comunista/)  

[2] Da canção incidental em “Monólogo ao pé do ouvido”, da Nação Zumbi, que conduz a sequência inicial do filme.

[3] Das Teses Sobre o conceito de história (1940). Perspectiva que parece perpassar todo o projeto da obra e que é pontuada também em resenha de Sergio Granja sobre a biografia em que se baseou o filme (https://movimentorevista.com.br/2021/10/marighella-uma-biografia/)

[4] De “Rondó da Liberdade”, poema mais conhecido de Marighella.


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