Daniel Bensaïd, Krivine e a militância coerente
Roberto Robaina homenageia o dirigente francês Daniel Bensaïd, militante histórico da IV Internacional.
Nesta sexta (25), quero homenagear um aniversariante que já se foi. Daniel Bensaïd nasceu em 25 de março, numa família judaica do interior da França, e morreu em 12 de janeiro de 2010. Era ainda relativamente novo, com seus 64 anos. Sua morte, entretanto, não foi inesperada. Durante alguns anos, resistiu à doença. Duvido que a sombra da melancolia não tenha descido sobre sua vida.
A literatura – que sempre esteve entre suas paixões, com direito a leitura de Proust durante sessões de algumas reuniões do Comitê Central da Liga Comunista – ganhou mais peso se mesclando em seus textos teóricos de filosofia e de política. Converteu-se num autêntico escritor. Uma certa parada para um balanço se impôs (aliás, sua autobiografia é de uma enorme utilidade política e de muita beleza). Mas Bensaïd não era um poeta. Sua vida foi intensa em militância marxista revolucionária. Não se pode dizer que sua confiança na revolução tenha sido abalada. Ao contrário. Recusou a ideia da inevitabilidade do socialismo, substituindo este determinismo pela aposta de Pascal. Sabe-se que Pascal, já sob a influência das ciências e da matemática, não tinha mais como sustentar, com argumentos racionais, a prova da existência de Deus. Mas não deixava de apostar na fé dessa existência.
Bensaïd também apostou no socialismo e não se cansou de explicar, pacientemente, que o capitalismo conduziria à destruição e à barbárie. Mas já não era apenas no sentido dado por Walter Benjamin, um dos seus autores prediletos, segundo o qual não há obra da civilização que não seja também um monumento à barbárie. A força da barbárie chegará ao ponto de abrir a possibilidade da destruição física de toda a vida no planeta. Eis o que o regime do capital nos reserva.
Bensaïd nos deixou grandes lições sobre como levar adiante a luta pela emancipação. E tinha muito ainda a ensinar. Por isso, sua morte foi uma enorme perda para os militantes marxistas revolucionários de várias partes do mundo. Sua obra está aí e deve ser apreciada por todos que queiram extrair lições e aprender algumas das conclusões mais importantes da luta de classes do século XX.
Com cerca de 23 anos, ele esteve na linha de frente das barricadas que tomaram conta do Bairro Latino (o quartier Latin) em Paris, durante o incendiário maio de 1968. Estava na universidade de Nanterre, onde o estopim acendeu, e formou ali, em conjunto com Daniel Conh Bendit e os anarquistas, o movimento 22 de março. Foram os meses que antecederam a explosão, quando os jovens protestavam contra o ministro da educação em visita à universidade e não aceitavam mais a separação dos homens e das mulheres nos alojamentos.
No ano anterior, essa mesma vanguarda se unia com os berlinenses para contestar a guerra do Vietnã e a agressão imperialista norte-americana. Para a juventude militante francesa, era a continuidade da luta anticolonial, que estourou na França em apoio à Revolução Argelina e contra a agressão do império francês na África do Norte. Era uma linha de continuidade histórica que encontrou a IV Internacional como um dos elos organizativos. Bensaïd se incorporou nela desde os anos 1960, sendo fundador da Juventude Comunista Revolucionária (JCR) e depois da Liga (Liga Comunista Revolucionária). A Liga foi perseguida logo depois de maio, mas resistiu e formou milhares de dedicados militantes, que, malgrado algumas crises e retrocessos, mantêm-se hoje erguendo a bandeira sem manchas da IV Internacional, militando no NPA (Novo Partido Anticapitalista).
Por trabalho e sorte, conheci Bensaïd em 2001, em Porto Alegre, durante o Fórum Social Mundial (para seus leitores sugeriu que Porto Alegre lembrava a cidade francesa de Marseille). Sua corrente política tinha peso no governo estadual do Rio Grande do Sul, tendo entre seus quadros o vice-governador Miguel Rossetto. A corrente que eu coordenava, o MES, já percebia a adaptação da esquerda ao Estado burguês. Bensaïd estava extremamente preocupado com essa adaptação e quis reunir conosco para escutar nossa experiência.
No almoço, estávamos eu, Pedro Fuentes, François Sábado e Bensaïd. Os temores dele se confirmariam. Não demoraria muito para que a DS rompesse com as diretrizes programáticas da IV Internacional e aceitasse defender um projeto social liberal no governo nacional, quando o PT aceitou atuar como gerente dos interesses do capital. Estive reunido com Bensaïd pela segunda vez na França. Foi em 2003. Dessa vez, para pedir o apoio da IV Internacional à fundação do PSOL. Heloísa Helena era militante da organização e um dos nossos argumentos. O diálogo avançou. Nos meses seguintes, cada vez mais a IV foi sustentando o PSOL, até finalmente declarar seu apoio aberto e se separar completamente do PT. É certo que Bensaïd ajudou muito nesse sentido.Sua vida não perdeu a coerência. A capitulação não estava em seu repertório. Os renegados não o tinham como camarada de armas.
Bensaïd foi irredutível na defesa dos princípios de que a estratégia de uma esquerda digna deste nome é o impulso à mobilização social e à auto-organização do movimento de massas. De que não se pode aceitar defender os interesses do estado burguês e ser parte de governos de colaboração de classes por mais fortes e populares que possam ser esses líderes. Até o final, foi um militante da causa igualitária e da ideia de que a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores ou não será. O mês de seu nascimento, março, foi o mês em que nos deixou um dos seus grandes amigos e camaradas: Alain Krivine, que, como Bensaïd, foi um dos expoentes do maio francês e uma liderança trotskista. Assim rendo homenagem a dois militantes que estiveram unidos na vida e na luta por uma organização revolucionária Internacional.
(Na foto, da direita para a esquerda: Daniel Bensaid, Alain Krivine e Henri Weber em 1969)