O PCB e a Guerra da Ucrânia, ou, quase lá.
O PCB vai quase lá
“Se a raça vil, cheia de galas
Nos quer à força canibais
Logo verá que as nossas balas
São para os nossos generais”
O Partido Comunista Brasileiro divulgou em 25 de fevereiro uma “declaração política sobre a guerra na Ucrânia”. O assunto é quente, e o que o PCB escreve merece ser lido. Trata-se do partido mais antigo do Brasil e, depois de sua reorganização nos anos 1990, em geral tem se situado do lado certo da luta de classes.
A consigna “Pelo fim da Otan e da guerra – pela paz e o socialismo na Ucrânia, na Rússia e em todo o mundo!” abre o texto. Muito bom. Mas o princípio do texto, na intenção de introduzir o assunto, reproduz uma versão. O esquema é: chamar a guerra de “conjunto de operações militares especiais realizadas pela Rússia”, alegando que o “conflito” teria “como razão primeira” a anunciada possibilidade de ingresso da Ucrânia na Otan. E mais: que o reacionário governo de Kiev massacra as populações russas do Donbass. Mas não acaba aí: a guerra tem um pano de fundo, e ele é a “pressão que vem sendo exercida pelo governo dos Estados Unidos junto aos países que compõem a Otan para expandir essa organização militar”. Parece o discurso do Putin do início ao fim? Sim, parece.
Na sequência, a geopolítica engole a luta de classes. As disputas interimperialistas são narradas como uma pantomima de ações e interesses dos “países” – EUA em decadência tentando amedrontar uma China que sobe como um foguete, Rússia desafia a União Europeia, estreitando laços com a Alemanha, criando contradições no seio da Otan etc. É o lugar quentinho de quem sabe todos os movimentos e interesses dos países do mundo, mas não vê os interesses e as contradições das classes sociais. E não é somente isso que a Declaração do PCB deixa de ver. Ela também não vê, no campo dos princípios, que um país deve ter sua soberania nacional respeitada. Se livrar dos fascistas, depor o direitista Zelensky, caminhar ao socialismo, e tudo mais, são tarefas da classe trabalhadora ucraniana, que inclusive podem e devem ser cumpridas com o auxílio e a solidariedade da classe trabalhadora mundial, mas nunca sob as bombas e os mísseis do ultrarreacionário Putin.
O lampejo de consciência quando escrevem que “A Rússia é, hoje, um país capitalista, cujo governo atual tem pretensões expansionistas e exerce forte repressão interna aos movimentos dos trabalhadores” não produz nenhuma consequência. Aliás, tem toda a cara, junto com o trecho imediatamente anterior, que diz que a Rússia não é mais a URSS, de ter sido enxertado na sequência, quando continua denunciando a Ucrânia, os fascistas e a repressão de Zelensky.
Mesmo a correta consigna inicial “Pelo fim da OTAN e da guerra – pela paz e o socialismo na Ucrânia, na Rússia e em todo o mundo!” é traída no texto, com a denúncia unilateral da Otan, do imperialismo estadunidense, e acima de tudo “a necessidade da classe trabalhadora ucraniana organizar-se para liquidar de uma vez o regime neofascista e estabelecer no país um Poder Popular”. Ou seja, nada sobre a necessidade de a classe trabalhadora russa fazer a mesma coisa! Afinal, agora não precisa, pois ao fim e ao cabo, a guerra de Putin nem é tão ruim assim e está meio que justificada. É esse o subtexto.
E somente bem no final mesmo surge a tentativa de reconciliação com a consigna inicial, lembrando da “importância da unidade dos trabalhadores russos e ucranianos para a superação do capitalismo e a construção do socialismo em seus países”. Isso depois de gastar litros de tinta classificando a Ucrânia de fascista, comprando a história de que as regiões do Donbass merecem ser países independentes etc.
O PCB vai quase lá. Quase lá apoiando Putin e quase lá exigindo o fim da guerra. Existe realidade e verdade no que escreve o PCB? Sim! Existem fascistas na Ucrânia (dentro das forças armadas, inclusive!). Países possuem interesses? De alguma maneira, sim. A Otan ameaça a Rússia? Sim. Isso justifica a invasão de um país soberano, que não atacou a Rússia? Não!
Mas além do que se escreve, conta o que se pratica. O que pensa o PCB sobre marchar ao lado de quem quer o fim da guerra (ou seja, o fim da agressão russa)? No sul do Brasil a comunidade de descendentes de ucranianos realiza manifestações regulares. “Ah, mas são reacionários!” Poderia se levantar essa objeção. Mas a esquerda marchou unida ao lado da não mais progressista comunidade árabe contra as guerras do Iraque! Quando os princípios estão em jogo, não escolhemos quem marcha ao nosso lado.
Acontece que o diabo mora mesmo é nos detalhes. O editor do site do PCB tinha que escolher uma imagem para ilustrar a declaração política. Trata-se de uma guerra iniciada pela agressão da Rússia a um país soberano. Podia ser uma imagem do Putin. Poderia ser um mapa da Ucrânia. Poderia ser até uma imagem da conferência de Zimmerwald, referência para os comunistas ao tratarem o tema da guerra. Poderiam ser tantas imagens, mas o inspirado editor optou por uma imagem do fascista Batalhão Azov, da Ucrânia. Uma concessão ao discurso do Putin de que a invasão russa se justifica para “exterminar os fascistas”? Quase isso. Quase lá.