A revolução portuguesa vista pelo ângulo que a coruja dorme
48 anos da Revolução dos Cravos, quando os portugueses derrubaram a tirania do regime de Salazar.
Em todo 25 de abril é celebrado em Portugal e pela esquerda mundial, a Revolução dos Cravos de 1974. Um processo revolucionário que derrubou 48 anos de salazarismo, um Estado imperial arcaico e atrasado, com colônias na África, de regime fascista e um governo obsoleto de partido único.
A revolução portuguesa, sem nenhuma dúvida, foi um dos grandes acontecimentos do Século XX, justamente por colocar abaixo toda superestrutura obtusa do antigo império português. No entanto, “a fotografia” da derrubada do governo reacionário de Marcello Caetano, com os capitães e soldados do Movimento das Forças Armadas (MFA) com cravos vermelhos na ponta das espingardas e o povo ocupando as ruas de Lisboa, cantando a belíssima canção Grândola Vila Morena como hino poético da mudança, acabou, em certa medida, prevalecendo sobre a riquíssima experiência vivida sob flores, ferro e fogo de 21 meses de intenso calor revolucionário.
Por isso, em primeiro lugar, é preciso localizar que o gatilho da Revolução dos Cravos não começou em solo lusitano. Pelo contrário, todo esse processo só pode ser explicado cientificamente começando pela revolução anticolonial no continente africano, mais precisamente em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique. O império português, ainda, ocupava Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. Portanto, o “poético e romântico” 25 de abril em Lisboa teve como previa a sangrenta guerra colonial que abateu centenas de milhares de africanos (combatentes e civis) e soldados portugueses.
A crise com a Guerra na África, somada à fuga em massa da juventude do país (para não ter que lutar no continente africano no serviço militar obrigatório) e a instabilidade econômica e social portuguesa, levou à divisão da burguesia e do Exército. Paralelamente, a classe operária, o campesinato e a juventude (que permaneceu em Portugal) estava faminta por mudanças. Posição oposta, portanto, do que o jornal O Globo escreveu em sua edição de 26/04/1974, que, entre outras coisas, dizia: “o golpe” das forças armadas dava fim a “48 anos de estabilidade”. Evidentemente que o quadro social e político na metrópole do império lusitano não era de estabilidade. Longe disso, a crise e a insatisfação das massas, principalmente dos setores médios e das classes “subalternas”, haviam alcançado dimensões inéditas no país. Não é à toa que a revolução que teve seu gatilho na Guerra Colonial, produziu uma direção revolucionária no seio de setores radicais das forças armadas.
De tal maneira, Portugal era um país imperialista e atrasado, ao mesmo tempo, a Guerra Colonial fez nascer o MFA, um movimento pequeno-burguês e que foi a direção dos governos provisórios até o fim da revolução (25/11/1975). Contudo, o MFA, por seu caráter de classe e limites programáticos, sofreu de modo espiral a pressão e influência da intensidade e dos choques da revolução e da contrarrevolução.
Portanto, o MFA continha em seu interior elementos contraditórios e sujeitos com moral e prestígio no exército e em setores do povo (não exatamente igual e menos ainda nessa ordem). Algumas dessas lideranças oriundas do MFA eram antagônicas em seu conteúdo político e programático. O mais célebre exemplo desse antagonismo esteja na representação na figura do general António de Spínola (dissidente do regime), um representante da direita reacionária formada na ideologia do fascismo salazarista e que foi votado pelo MFA pela força da patente para ser o chefe do 1º governo provisório. E, por outro lado, o coronel Vasco Gonçalves, membro da esquerda, nacionalista, socialista e revolucionária do MFA.
Entre os embates dos rumos do MFA, atuavam as organizações políticas, que em maior ou menor medida, participavam dos governos provisórios que iam sendo substituídos um a um no espaço de poucos meses, correspondendo com a marcha e a contramarcha da revolução.
Os principais partidos que tiveram papel protagonista nesse processo de superestrutura e de representação em setores de massas, vistos a olho nu no fabuloso 1º de maio de 1974, eram: o PS, de política de colaboração de classes, e o PCP, que detinha grande inserção no movimento operário e camponês. O PS dirigido por Mário Soares defendia que Portugal deveria seguir os trilhos da socialdemocracia europeia, uma democracia parlamentar burguesa com justiça social. Já o PCP dirigido por Álvaro Cunhal, seguia a tese stalinista da estratégia etapista: primeiro, uma revolução nacional democrática e, depois, a segunda revolução, a socialista, após um período de desenvolvimento das forças democráticas e capitalistas.
Como a vida e a luta de classes é mais rica que os esquemas, acabou que Vasco Gonçalves liderando o 2º, 3º, 4º e 5º governo provisório, e, paralelamente, setores avançados do movimento operário, camponês, da juventude e das forças armadas, passaram a defender bandeiras não apenas democráticas e antifascistas, mas, sobretudo, socialistas (parte dos trotskistas portugueses – mesmo em minoria – estiveram defendendo essa posição no interior do movimento de massas).
A defesa do caminho socialista para a revolução era precipitada? Pouco é contado, porém a revolução portuguesa, a partir do 3º e, sobretudo, no 4º governo provisório de Vasco Gonçalves, expropriou e nacionalizou bancos e conglomerados capitalistas, assim como ocorreram ocupações agrícolas e distribuição de terra aos camponeses, fábricas foram ocupadas e geridas pelos próprios operários, o mesmo exemplo era seguido pelos estudantes nas universidades e organismos de duplo poder se multiplicavam.
Contudo, a reação da direita apoiada pelas forças imperialistas e das forças reacionárias do exército, somada a divisão do MFA e da esquerda “majoritária”, seja no PCP (ala à esquerda do governo de Vasco Gonçalves), seja no PS (ala de conciliação com a burguesia que freou o avanço revolucionário) e na ausência de um partido revolucionário com influência de massas que pudesse materializar e aprofundar (no chão das expropriações), com política independente, o programa radical e os organismos embrionários de duplo poder que pudessem disputar as posições à esquerda do governo provisório ou, até mesmo, suplantar o mesmo como os bolcheviques fizeram dirigindo os sovietes russos na revolução de outubro.
Porém, a revolução portuguesa ficou distante dessa estação. A rigor, a queda de Vasco Gonçalves e a fratura no MFA, com o PS se aliando a setores da burguesia liberal, isolando o PCP e ainda mais os setores radicalizados da revolução, foi um golpe de morte no processo revolucionário. Assim, a partir do dia 25 de novembro de 1975, a revolução dos cravos estacionou em definitivo na estação “democrático burguesa”. Embora poderia ter ido além. Cabe, nesse momento, aquelas e aqueles, que saúdam a revolução que derrubou a ditadura fascista salazarista buscar com ousadia as bandeiras mais radicais e originais que foram postas nessa revolução, sem abandonar um milímetro das conquistas da revolução democrática da mesma e que, de modo algum, podem ser diminuídas, além de tomar lições dos erros cometidos e dos desafios a serem superados pelos partidários de um mundo sem explorados e exploradores.
Viva a revolução portuguesa!