O Sri Lanka não deve assinar um acordo com o FMI
Éric Toussaint entrevistado por Sushovan Dhar.
O Sri Lanka, situado numa ilha do oceano Índico, frente ao estado de Tamil Nadu ao sul da Índia, está assolado pela pior recessão desde sua independência em 1948. Os 22 milhões de habitantes desse país do Sul da Ásia enfrentam uma grave falta de alimentos, combustíveis e cortes de energia elétrica diários e multiplicaram os protestos contra o governo. Na terça-feira, dia 12 de abril, este último não teve outra alternativa a não ser anunciar a suspensão dos pagamentos da sua dívida externa, estimada em 51 bilhões de dólares.
Na próxima semana uma delegação do Sri Lanka irá a Washington para tentar obter 4 bilhões de dólares do Fundo Monetário Internacional e de outros credores, a fim de ajudar aquele país insular a pagar as importações de alimentos e de combustíveis e limitar os incumprimentos de pagamento da sua dívida. Na última vez que o FMI concedeu uma «ajuda» ao Sri Lanka, em 2016, o empréstimo foi limitado a 1,5 bilhões de dólares e o programa terminou prematuramente, após o desembolso de 1,3 bilhões de dólares. Nessa época a economia teve um crescimento de cerca de 5 % e o turismo representava uma percentagem equivalente ao produto interno bruto.
Por outro lado, os empréstimos do FMI e do Banco Mundial sempre foram acompanhados de graves controvérsias. As críticas fazem notar que o Banco Mundial e o FMI sempre concederam empréstimos com o fim de influenciar as políticas dos estados. O endividamento externo foi e continua a ser utilizado como um instrumento de subordinação aos credores. Desde a sua criação que o FMI e o Banco Mundial violam os pactos internacionais relativos aos direitos humanos e não hesitam em apoiar ditaduras.
Numa entrevista conduzida por Sushovan Dhar, Éric Toussaint fala dos riscos potenciais de um eventual novo empréstimo do FMI.
Sushovan Dhar: Como você já sabe, o governo do Sri Lanka anunciou um default de pagamento de sua dívida. Qual é sua opinião a respeito?
Éric Toussaint: A decisão do governo do Sri Lanka de suspender o pagamento da dívida externa a partir de terça-feira, 12 de abril de 2022, mostra que ele chegou numa situação sem saída. As classes populares do Sri Lanka estão nas ruas há mais de uma semana protestando contra aumentos de preços e medidas antissociais. Os membros do governo renunciaram, exceto o primeiro-ministro e o Presidente, que permaneceram no cargo. Lembremos que o primeiro-ministro e o Presidente são irmãos, o que não é um detalhe para entender como funciona o sistema político no Sri Lanka. É um governo ultraneoliberal totalmente a favor dos interesses das grandes empresas nacionais e estrangeiras. É para tentar acalmar a população e porque não há dinheiro suficiente nos cofres do Estado e nas reservas de divisas que o governo tem que suspender o pagamento.
Na realidade, pelo menos desde o início da pandemia do coronavírus, teria sido necessário suspender o pagamento da dívida e redirecionar os gastos do Estado para combater os efeitos da pandemia, proteger a população do vírus e investir na economia, a fim de enfrentar a crise econômica global acelerada pela pandemia. Pelo contrário, desde o início da pandemia, o Governo fez questão de continuar pagando a dívida. A dívida continuou a crescer porque o Governo financiou com novas dívidas uma série de medidas que estava tomando para lidar com a crise. Também financiou com novas dívidas o pagamento de dívidas antigas quando, como eu disse, deveria ter suspendido o pagamento da dívida.
Um governo popular teria suspendido o pagamento da dívida explicando que esta decisão era necessária devido a choques externos que obrigavam o país a proteger sua população. Ao fazer isso, o governo teria usado argumentos do direito internacional para evitar o pagamento de juros de mora. O governo desse povo deveria ter combinado a suspensão do pagamento da dívida com uma auditoria das dívidas cobradas ao Sri Lanka e das políticas seguidas pelas classes dirigentes políticas do Sri Lanka. Uma auditoria com participação dos cidadãos para identificar dívidas ilegítimas e as responsabilidades dos altos funcionários e líderes no acúmulo de uma dívida ao mesmo tempo ilegítima e insustentável.
Com base na auditoria da dívida, associada a uma suspensão de pagamentos, deveria ter chegado a uma política de repúdio da dívida. Isto deveria ter sido feito, repito, no âmbito de uma mudança de governo, pois é o governo atual que, seguindo a lógica neoliberal, é responsável pela continuação da acumulação de dívidas ilegítimas.
Sushovan Dhar: Nas circunstâncias atuais, onde as reservas de divisas são extremamente baixas, o governo diz não ter outra escolha senão pedir empréstimos ao FMI. O que pensar disto?
Éric Toussaint: Vamos voltar à decisão tomada na terça-feira, 12 de abril, e analisá-la de forma muito crítica. Por quê? Porque, antes de tudo, foi acordada com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e os grandes credores privados como BlackRock. Ou seja, foi no interesse dos próprios credores que o governo suspendeu o pagamento.
Em segundo lugar, anunciou que concordaria em pagar os juros na íntegra e que seu desejo era retomar o pagamento da dívida o mais rápido possível.
Em terceiro lugar, o governo, na negociação com os credores, particularmente o FMI, buscará crédito de emergência para assegurar a retoma dos pagamentos da dívida ao FMI, credores privados e outros credores. Portanto, o Sri Lanka vai assumir novas dívidas para pagar dívidas antigas, grande parte das quais é ilegítima.
O quarto ponto da minha crítica é que no momento em que o governo fechar um acordo com o FMI, o FMI exigirá medidas de austeridade fiscal que inevitavelmente farão as classes populares pagar o esforço do ajuste e da austeridade fiscal.
O governo, com o apoio do FMI, tentará obter uma redução no estoque da dívida com os credores privados. Isto é normalmente o que acontece em tais circunstâncias e é o que tem acontecido nos últimos três anos na Argentina. Com a «ajuda» do FMI, o Governo argentino renegociou a dívida com os credores privados e obteve uma redução muito pequena nos pagamentos a serem feitos. Ao fazer isso, ele tentou re-legitimar uma dívida que era ilegítima e que não deveria ser paga. Isto é o que o atual Governo do Sri Lanka está prestes a fazer e, portanto, só se pode discordar de sua estratégia.
Sushovan Dhar: Se o Sri Lanka suspende o pagamento de sua dívida, isso não seria ilegal sob o direito internacional?
Éric Toussaint: Eu expliquei o que deveria ter sido feito no início da pandemia do coronavírus. Agora eu gostaria de falar sobre o que deve ser feito agora, ao invés do que o Governo está fazendo. Sim, devemos suspender o pagamento da dívida. Devem ser usados uma série de argumentos do direito internacional e os argumentos não devem se limitar a dizer que não há dinheiro suficiente para pagar. Um governo que realmente quer agir no interesse do povo deveria dizer que está suspendendo o pagamento da dívida porque há choques externos que não dependem do Sri Lanka, que produzem uma redução das receitas entrando dos cofres do Estado. Choques externos que forçam o país a suspender o pagamento da dívida. Em tais circunstâncias, esta suspensão não pode levar a uma acumulação de juros de mora, ao contrário do que diz o Governo. Um país como Sri Lanka tem o direito de suspender o pagamento da dívida se houver boas razões para isso, inclusive porque houve uma mudança fundamental nas circunstâncias. O direito internacional permite que um país se declare em suspensão de pagamento sem que seus credores possam exigir posteriormente o pagamento de juros de mora.
Em segundo lugar, uma auditoria das dívidas deve ser absolutamente realizada. As dívidas emitidas nos mercados internacionais devem ser auditadas. Precisamos forçar, por decisão soberana do Sri Lanka, os detentores dos títulos a se apresentarem. Portanto, não se deve permitir que o sigilo da identidade dos devedores seja mantido. A auditoria também deve abarcar as dívidas reclamadas pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial. Aqui é absolutamente claro que são as políticas recomendadas por estas duas instituições as principais responsáveis pela acumulação de dívidas ilegítimas e pela aplicação de um modelo econômico que levou o país e o povo ao desastre. É muito claro que o FMI e outros organismos internacionais apoiam as autoridades corruptas e autoritárias do país, que estão em vigor porque favorecem os interesses das grandes empresas nacionais e estrangeiras. China, Índia, Washington são até agora a favor da manutenção deste regime porque ele serve aos interesses do capital estrangeiro e das grandes potências estrangeiras. A classe dominante local, que é em grande parte parasitária, também quer que o regime permaneça em vigor. Este regime não respeita as regras democráticas, implementa políticas antissociais e enfrenta um claro descontentamento popular.
A auditoria da dívida deve ser realizada com a participação dos movimentos sociais. Deve resultar na determinação de qual parte da dívida é ilegítima e não deve ser paga. Normalmente os comentaristas sobre o que está acontecendo no Sri Lanka, a grande imprensa, dizem que a situação é particularmente dramática porque o valor dos títulos cingaleses está caindo muito acentuadamente no mercado secundário de dívida. O mercado secundário da dívida é onde os detentores da dívida soberana do Sri Lanka, que podem ser BlackRock e outros fundos de investimento, mas também bancos, os estão vendendo ou comprando de volta. Os títulos do Sri Lanka estão atualmente sendo vendidos com desconto, se estou bem informado, de cerca de 60 %. Ao contrário da ideia que a grande mídia está tentando transmitir, o fato de haver um enorme desconto nos títulos cingaleses não é de forma alguma uma má notícia para o povo cingalês ou para as classes trabalhadoras. O que mostra é que os portadores de obrigações estão preocupados. Eles não têm certeza de que o Governo poderá continuar a pagar a dívida e, portanto, este é o momento certo para causar uma queda ainda maior no valor dos títulos, pois isso permitiria que um novo Governo comprasse de volta esses títulos no mercado secundário a um preço muito baixo enquanto o pagamento é suspenso. Foi isso que o governo do Equador fez em 2008-2009 e foi benéfico para o país e para o povo.
Sushovan Dhar: Qual é a saída desta armadilha da dívida para o Sri Lanka ou qualquer outro país?
Éric Toussaint: O que falamos há pouco é contrário à estratégia do Governo. O Governo quer, na verdade, obter um crédito do FMI para retomar os pagamentos da dívida aos credores, sentar-se à mesa de negociações com eles e pedir-lhes que reduzam o valor dos títulos em 10 a 20 por cento, quando este poderia ser reduzido em 80 por cento, o que seria muito melhor para o país. Se o Sri Lanka retomar os pagamentos com o dinheiro que o FMI emprestará, os portadores de obrigações estarão em uma posição forte. Enquanto se o Sri Lanka não aceitar o dinheiro do FMI e permanecer soberano, se recusar as políticas de austeridade que o FMI vai exigir, se mantiver a suspensão dos pagamentos da dívida, estará em uma posição de força para exigir que os credores vendam seus títulos de volta ao Estado com um desconto de 80 %. Este é o tipo de política que foi seguida pelo Equador em 2008 e que resultou em uma vitória do Equador em 2009. Lá, o Equador comprou de volta esses títulos com um desconto de 70 %, mas anteriormente havia comprado de volta parte dos títulos com um desconto de 80 % no mercado secundário, portanto o desconto havia sido muito significativo. Considerando a gravidade da situação, o Sri Lanka, com esta suspensão de pagamento, poderia obter uma grande redução de valor. Mas não creio que isso seja possível com o atual presidente e primeiro-ministro: eles não estão preparados para implementar esse tipo de medida, então a questão não é apenas que medidas tomar, mas quem pode tomar essas medidas? É uma questão de mobilizações populares. As classes populares deveriam se dar um novo governo legítimo e este governo deveria aplicar uma política que esteja totalmente de acordo com os interesses da maioria social.
Se isso não acontecer a curto ou médio prazo, o Sri Lanka será confrontado com uma carga de dívida que aumentará por causa do novo empréstimo do FMI e outros créditos que o Sri Lanka está recebendo da Índia, da China ou de outros credores. Portanto, o Sri Lanka, seguindo a política do primeiro-ministro e do presidente da República, vai entrar num ciclo permanente e vicioso de endividamento. Os efeitos adversos da política neoliberal irão aprofundar ainda mais a fragilidade de sua economia e piorar as condições de vida da maioria da população.
Sushovan Dhar: O que você acha da posição assumida por cerca de 20 economistas cingaleses que se dizem independentes?
Éric Toussaint: Este grupo de cerca de 20 economistas que se autodenominam independentes publicou uma tribuna na imprensa cingalesa, expondo sua visão do que deve ser feito e todos os pontos indicados correspondem exatamente ao tipo de política exigida pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial. Pode-se tomar suas propostas ponto por ponto, analisar os acordos feitos com os diversos países, inclusive o Sri Lanka, com o FMI e ver que as medidas propostas por esses chamados economistas independentes correspondem exatamente às políticas prejudiciais que o Fundo Monetário Internacional deseja.
O que estes economistas estão propondo também está perfeitamente de acordo com os interesses dos grandes credores privados. Além disso, eles estão sugerindo que empresas privadas especializadas na reestruturação de dívidas devem ser utilizadas. Essas empresas privadas trabalham para grandes credores privados e não no interesse das pessoas que vivem nos países a que estão sendo cobrados de dívidas ilegítimas. Portanto, estas empresas privadas não oferecem nenhuma garantia de defesa dos interesses do povo do Sri Lanka.
Tradução: Alain Geffrouais