Para começar a entender a Polônia
Um brevíssimo resumo da história polonesa para ajudar a compreender seu atual cenário político.
Para compreender as características da política polonesa é preciso primeiro voltar à história polonesa. As origens do país remontam o século XI, quando foi fundado o Reino da Polônia que durou mais de 700 anos. No século XVIII, a então monarquia eletiva é derrubada e o território do país é dividido entre a Prússia, a Rússia e a Áustria, voltando a ser uma nação independente somente no final da Primeira Guerra Mundial, em 1918.
Duas décadas depois, a Polônia perde novamente sua independência após o acordo entre Hitler e Stalin firmado no Pacto Molotov-Ribbentrop. Invadida a oeste pela Alemanha nazista e a leste pela União Soviética, o país foi proporcionalmente o mais afetado pela Segunda Guerra Mundial, perdendo mais de 6 milhões de habitantes (metade deles judeus) ao longo da guerra. Em seu território foram instalados grandes campos de concentração nazistas como Auschwitz, Treblinka e Chelmno, nomes conhecidos mundialmente como cenários de atrocidades indescritíveis. A Insurreição do Gueto de Varsóvia em 1943 e o Levante da cidade em 1944 foram exemplos heróicos de resistência popular contra os nazistas, mas foram dizimados e tiveram como consequência a destruição da capital, que foi totalmente reconstruída após o fim da guerra .
Os territórios ocupados por Stalin também foram palcos de enormes crimes, dos quais o mais expressivo foi o Massacre de Katyn. Em 1940, a polícia secreta soviética comandada por Lavrentiy Beria assassina na floresta de Katyn mais de 22 mil poloneses – militares prisioneiros de guerra, acadêmicos, advogados, artistas – com o objetivo acabar com a elite intelectual e militar do país que poderia resistir à ocupação.
Após a Segunda Guerra Mundial, a Polônia novamente independente passa à esfera de influência soviética e sua capital torna-se sede do Pacto de Varsóvia, mas as relações entre a República Popular da Polônia e a União Soviética sempre foram tensas, principalmente após a morte de Stalin em 1953 e o período do chamado “degelo”. Em 1956, na cidade de Poznań, uma massiva revolta de trabalhadores exigindo melhores condições de vida termina com aproximadamente cem mortos e força uma mudança no governo em outubro do mesmo ano, trazendo novamente ao poder Władysław Gomułka.
Gomułka era um dirigente tido como moderado que havia dirigido o Partido dos Trabalhadores Poloneses entre 1943 e 1948 e sido derrubado pela fração stalinista do partido. Em seus discursos, Gomułka denunciava os crimes stalinistas, criticava a coletivização do campo e prometia mais liberdades civis. Seu retorno ao poder (que ficou conhecido como o Outubro Polonês) não foi simples e tropas soviéticas chegaram inclusive a avançar dentro do país para manter o controle do poder nas mãos dos setores pró-Moscou. Entretanto, após negociações com o governo de Khrushchev e o estabelecimento de compromissos entre as duas partes, a Polônia não foi invadida e a ascensão de Gomułka foi aceita.
Este exemplo contrasta com os eventos na Hungria no mesmo ano, quando o governo de Imre Nagy buscou reformas similares mas teve como resposta a invasão soviética no desfecho do episódio que ficou conhecido como a Revolução Húngara de 1956. Também é interessante notar que, em 1968, Gomułka enfrentou enormes protesto estudantis e se posicionou radicalmente contra as movimentações do presidente tchecoslovaco Alexander Dubček durante a Primavera de Praga, que também terminou com a invasão dos tanques russos.
Em 1970, outra revolta de trabalhadores poloneses contra o aumento dos preços explodiu nas cidades bálticas do norte do país (como Gdańsk e Szczecin) e, após violenta repressão, a situação fica insustentável e Gomułka é substituído do poder. Os protestos deste ano são o embrião do futuro sindicato Solidarność (“Solidariedade”, em português), que nos 1980 mobilizará milhões de trabalhadores por todo país.
O Solidarność foi o primeiro sindicato independente em um país do bloco soviético, um amplo movimento social oriundo da base que enfrentou a burocracia de então lutando por melhores condições de vida e pela autogestão das fábricas. Seu programa ficou conhecido como as ”21 Demandas do MKS (Comitê de Greve Interfábricas)” e entre elas estavam pontos como a aceitação de sindicatos livres, garantia do direito de greve, liberdade de expressão, readmissão de trabalhadores demitidos por fazer greve, aumento dos salários, diminuição das vendas de produtos para o Ocidente (o que desabastecia o mercado interno), jornada semanal de 5 dias de trabalho, aumento do período de licença maternidade, entre outros.
Este programa, que soaria bem aos bolcheviques do começo do século, e as mobilização de massas que o apoiava obrigaram o governo polonês a firmar os Acordos de Gdansk e permitir a existencia legal do Solidarność. Esta crise levou à substituição do então presidente Edwark Gierek por Stanisław Kania em agosto de 1980 e iniciou um novo processo de abertura que durou até o próximo ano. Entretanto, as extensas mobilizações de 1981 levaram à derrubada de Kania, que é substituído pelo general linha-dura Wojciech Jaruzelski e declara a lei marcial no país, prendendo mais de 5 mil membros do Solidarność em uma única noite. Como o sindicato buscava se manter dentro da legalidade e não tinha nenhuma estrutura clandestina, a brutal repressão desmontou boa parte de sua liderança. Nos próximos anos houveram novas ondas de prisões, mas o Solidarność se manteve em operação na clandestinidade, distribuindo jornais (muitos dos quais eram impressos pelos trotskistas franceses da IV Internacional) e realizando outras atividades de resistência.
Após a restauração capitalista, muito se disse sobre o papel da Igreja Católica em conjunto com o Solidarność para a derrubada da “Polônia Popular” mas, segundo seu ex-dirigente Zbigniew Kowalewski, na verdade o papel da Igreja naquele momento ia justamente no sentido de buscar moderação entre os trabalhadores, sem de forma alguma questionar o regime. Ele cita como exemplo interessante o fato de que a primeira vez que uma homilia foi transmitida pela TV no país foi justamente em 1981, quando o arcebispo de Gniezno (primaz da Igreja Católica Polonesa) chamou os trabalhadores à moderação perante o governo.
Obviamente, o Solidarność não era uma organização de caráter socialista. Seu principal líder, Lech Walessa, havia tomado parte nos protesto de 1970, tornando-se depois colaborador do regime, rompendo definitivamente com este e sendo demitido de seu emprego em 1976. Católico, visitou o Papa em 1981 e recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1983, após passar quase um ano preso. Tinha enorme popularidade entre os trabalhadores e a utilizou por diversas vezes para manobrar as posições do sindicato a seu favor, mesmo contra seus próprios estatutos. Obviamente também o governo dos EUA se aproveitou deste cenário inclusive financiando a oposição polonesa de forma indireta, através da federação sindical AFL-CIO e de partidos políticos. Mas é interessante notar que, mesmo tendo acesso à informações reservadas sobre o governo Jaruzelski, não houve nenhum aviso por parte dos serviços de inteligência norte-americanos sobre a repressão que se instalaria em 1981.
A restauração capitalista no final dos anos 1980 teve como consequência uma mudança de sinais no cenário político quase incompreensível para observadores externos. Segundo o deputado Maciej Konieczny, do partido Razem (”Juntos”, em polonês), foi um momento bastante contraditório no qual toda a esquerda polonesa se girou ao neoliberalismo enquanto a pauta de direitos sociais se encontrou defendida por setores à direita no aspectro político. A nomeclatura e os símbolos socialistas tornaram-se impossíveis de serem utilizados devido à pesada herança do regime burocrático anterior, situação que de certa forma se mantém até hoje, ainda que nas últimas décadas tenha havido uma reorientação sobre o tema dos direitos sociais.
Mas a situação continua bastante contraditória. O partido PiS (Lei e Justiça), da direita nacionalista atualmente atual no governo, realizou uma série de medidas sociais que garantem sua popularidade ao mesmo tempo que desenvolveu uma política extremamente conservadora. Com um discurso anti-imigração, contra os direitos das mulheres e da população LGBT, o PiS se alinhou com a extrema-direita internacional de Trump, Marine Le Pen e similares, inclusive assinando a Declaração Sobre o Futuro da Europa em 2021.
Também contraditória é a posição destes setores após a invasão russa à Ucrânia, afinal esta extrema-direita europeia sempre foi simpática a Putin e até mesmo financiada por seu governo, como no caso de Marine Le Pen. Com a crise dos refugiados que se sucedeu, o presidente do PiS, Andrzej Duda, foi obrigado a mudar sua política e abriu as fronteiras aos ucranianos alguns meses após ter deportado violentamente refugiados da África e Oriente Médio que haviam cruzado a fronteira através do vizinho Belarus. É importante notar que as relações entre Polônia e Ucrânia sempre foram tensas, com disputas territoriais que remontam há séculos.
Esse contexto influencia profundamente as posições da esquerda polonesa, que se vê entre um cenário político bastante conservador, espremida pelo imperialismo ocidental de um lado e acossado pelo vizinho imperialismo russo de outro. Aprofundaremos este debate em um próximo artigo.