Argentina em Crise (parte 1)
Uma reflexão sobre a crise argentina.
Um governo contra as cordas
O final de semana foi movimentado no cenário político argentino. Martin Guzman, então titular da pasta da Economia, renunciou como parte da agudização da crise política. Após idas e vindas, o presidente Alberto Fernández anunciou uma Silvana Batakis como substituta. Na abertura dos mercados, nesta segunda-feira, o dólar paralelo, chamado blue, disparou. A semana promete ser agitada.A crise escala. Se pode notar a dimensão utilizando do tradicional senso de humor portenho. Ao começarem os boatos sobre se Alberto chegaria à eleição de outubro de 2023, alguns comentaristas fizeram o seguinte chiste: “Alberto pode não chegar a outubro… agora”. Ou seja, ainda que não esteja colocada para além do deboche a queda do governo, sua fragilidade é explícita.
A base da debilidade do governo – agora, abertamente, “contra as cordas” – são duas contradições fundamentais: a crise social-econômica derivada do acordo do FMI e a disputa dentro do próprio governo, com Cristina e Alberto “duelando” de forma permanente. Apresento de forma resumida o contexto nesse breve texto, parte de uma série de quatro artigos sobre a situação geral da Argentina e como isso poderá condicionar a luta política latino-americana nos próximos anos.
A Argentina e o continente
A Argentina é decisiva para a situação política continental. Uma crise no país tem efeitos políticos e econômicos de longo alcance. A recente derrota de Macri colocou os limites de uma política mais direta de ajuste. Anos antes, a rebelião popular de 2001 abriu o caminho para um novo ciclo político de caráter mais amplo, a chamada “primeira onda” do progressismo na América Latina.
No atual cenário, a hipótese de uma crise mais combinada é real. O pêndulo político da América Latina está marcado por um deslocamento à esquerda, ainda que nos marcos de uma polarização crescente. As mais recentes vitórias populares foram a de Petro e Francia, na Colômbia, e o levante indígena que obteve conquistas no Equador.Com o agravamento da crise econômica e da inflação, com a escalada da guerra (invasão russa) na Ucrânia, a possibilidade de novas explosões sociais cresceu pelo globo. E a disputa entre projetos que representem uma oposição ao neoliberalismo também se acirra.
A derrota de vários governos e representantes da extrema-direita como Kast (Chile), Keiko Fujimori (Peru) e Hernandez colocou uma nova agenda. Sem deixar de combater os setores mais reacionários, como Bolsonaro, no Brasil, e Millei, na Argentina, a questão é dar resposta aos temas sociais mais sensíveis, com a fome voltando ao mapa do continente. O aparecimento de uma corrente de direita com traços neofascistas na Argentina foi tardio. Enquanto Trump e Bolsonaro se consolidaram anteriormente, Millei é uma novidade relativamente recente. O peso da luta democrática, fruto da ruptura revolucionária com a ditadura militar, impôs aos militares uma defensiva importante, ao contrário do que ocorreu no Brasil durante a transição.
A Argentina, assim, está sintonizada com o resto do continente, dentro da ofensiva recolonizadora do capital e do imperialismo, que quer nossos países como grandes fazendas para o extrativismo e os produtos primários. Mas com uma ressalva importante de particularidade: na Argentina, a experiência com um governo de centro-esquerda pode e deve ser disputada para uma superação voltada para a maioria social.
Um país dividido e redividido
A situação é temerária. A inflação está entre 60% e 70% ao ano. O dólar paralelo está subindo sem parar, caminhando para a desvalorização brutal da moeda argentina. O acordo com o Fundo Monetário, celebrado por Guzman no começo do ano, renegociou 44 bilhões da dívida argentina. Assim caminha a crise, com seus aspectos econômicos e políticos.Outra característica do humor portenho é a sua tendência ao exagero. Uma gíria muito usual é colocar o prefixo “re” como forma de exaltar determinada questão. Uma pessoa legal seria “re’legal”, uma coisa interessante seria “re’interessante”. Assim podemos afirmar que a Argentina está “re”dividida. Desse modo, não é demais afirmar que o país está dividido e (re)dividido. De 2001 a 2019, foi comum o uso da expressão “Grieta” (fissura) para enquadrar a polarização após a “normalização” que um setor da burguesia impôs com os governos K – primeiro Nestor e depois Cristina.
A partir da saída de Macri, motivada pelo desgaste e por uma luta que se materializou na semi-rebelião do final de 2017, Alberto foi eleito para governar com um pacto entre as forças peronistas. Cristina seria sua vice com poderes especiais. A piora nas condições econômicas e a linha do governo de “voltar ao FMI” detonou a atual fase de crise.Hoje, temos elementos mais fracionados e diversos na superestrutura política que apenas a tradicional “fissura” entre o kirchnerismo e a oposição, verificada ao longo de quase duas décadas. A principal força de oposição é o campo ligado ao ex-presidente Mauricio Macri, o Juntos pelo Câmbio (JxC). Porém, dois elementos novos aparecem, dificultando a condição de estabelecer uma hegemonia sólida: novas forças políticas se instalaram no tabuleiro nacional e o campo do governo está dividido frontalmente.
As duas forças que se consolidaram e ganharam teor nacional são a Frente de Esquerda (FITU) e a irrupção de Javier Millei, parte da extrema-direita que flerta com posições fascistas. A FITU tem uma representação parlamentar de quatro deputados, e saiu como terceira força nacional no último pleito parlamentar, conservando entre 5% e 8% nas preferências de voto, segundo as pesquisas eleitorais. Já Millei e seu projeto, “Libertários”, apelidado de “Liberfachos”, têm crescido na cidade de Buenos Aires, projetando chegar o centro da agenda política nacional, com sua linha anti-movimentos sociais, “pro-vida” e de um “superneoliberalismo”.
A luta interna no governo é outro fator desestabilizador. A presente crise só se explica nessa chave. Alberto Fernández está cada vez mais sem apoio. A queda de Martin Guzman, o homem responsável pelo acordo com FMI, foi um golpe duro contra Alberto. A entrada de Silvana Batakis, economista ligada aos círculos kirchneristas, é um sinal de que Cristina ganhou poder nas decisões gerais do governo. A pugna teve um salto de qualidade na aprovação do acordo, quando deputados e senadores kirchneristas optaram por votar contra o acordo ou se abster. A aprovação só foi possível com os votos da oposição, de JxC e do macrismo.
Hoje, a sustentação do governo está se equilibrando, de modo frágil, entre três setores: Alberto, cada vez mais sem poder; Cristina, que joga tudo nessa ofensiva para manter vivo seu espaço político, querendo evitar o desgaste de um ajuste mais severo combatido por sua base social; e, por fim, Sérgio Massa, mais ligado à Embaixada Americana, que atua como “poder moderador” na luta interna peronista.
O lugar da Esquerda
No quadro exposto, outra particularidade importante na Argentina é o peso da esquerda radical, herdado desde os anos 80, com o velho MAS. Não cabe aqui desenvolver sobre o histórico da esquerda radical, suas limitações e avanços. Dedicaremos um artigo à hipótese de uma confluência entre a esquerda radical e um setor do movimento de massas, a partir de uma ação histórica independente. O que queremos por agora é grifar o papel da esquerda no atual impasse.
- Vale dizer que a maior conquista da esquerda “radical” argentina é que ela é referida como “esquerda”. Ao contrário de outros países como o Brasil, onde o termo é compartilhado entre setores da esquerda socialista, setores moderados, centro-esquerda e projetos nacionalistas, na Argentina “esquerda” é sinônimo da esquerda radical.
- No último período agrupados dentro da FITU, os principais partidos da esquerda argentina avançaram, ainda que com os limites que marcam a cultura do trotskysmo, a saber, uma cultura ainda muito sectária e auto proclamatória.
- Os maiores avanços se deram no terreno eleitoral e no movimento popular. A FITU se expandiu nacionalmente e hoje aparece nos grandes debates nacionais, a partir de suas bancadas; a última eleição levou a FITU a ter presença em tradicionais bastiões do peronismo, como os municípios e bairros periféricos da Grande Buenos Aires, onde a esquerda radical, pela primeira vez, teve vereadores eleitos.
- O outro avanço, em especial de partidos como o PO e o MST, é a presença entre movimentos de desempregados, os piqueteiros. O PO dirige hoje a principal frente de mobilização nacional, a Unidade Piqueteira, que chega a movimentar 50 mil pessoas nos atos centrais. Um verdadeiro salto no enraizamento, ainda que com as dificuldades estruturais do movimento popular, muito mais exposto à precariedade das condições materiais do que o movimento operário clássico.
- O desafio fundamental é coordenar a luta diante da contradição principal: a luta contra o acordo com o FMI. Essa é a única receita para ampliar o espaço do FITU, entre as amplas massas populares.
É possível derrubar o acordo do FMI?
A tensão vai seguir. Os mercados vão exigir mais ajuste e respeito ao acordo com o FMI. A nova ministra já declarou que seu objetivo é manter o acordo, fazendo pequenas alterações. Silvana Batakis ficará sob fogo cruzado.A postura que o kirchnerismo teve diante do acordo foi errática. Deputados foram tímidos na denúncia, alguns se abstendo e outros votando contra. Maximo Kirchner renunciou à liderança do bloco governista na ocasião. Contudo, é bastante progressivo o sentimento, nas bases e quadros médios do kirchnerismo, de repúdio ao acordo.A FITU convoca, junto a outras organizações e espaços políticos, uma marcha no próximo sábado, dia 9 de julho, aproveitando a data alusiva ao Dia da Independência, relacionando o acordo como um passo na ingerência imperialista no país. Então, se pode afirmar que sim, se pode derrubar o acordo com o Fundo Monetário Internacional.
Para tanto, é preciso aproveitar a brecha que se abre na crise nacional e impulsionar dois movimentos: a coordenação entre setores da esquerda e kirchneristas que estejam dispostos a marchar e serem consequentes com as posições contrárias ao acordo e a possibilidade de colocar em movimento setores mais amplos da classe e do povo.Isso significa combinar a luta contra o plano do FMI às reivindicações mais sentidas do povo. Um ato massivo no próximo sábado tensionaria pela esquerda a situação nacional e colocaria um novo patamar na luta contra a ofensiva neocolonizadora do Fundo Monetário Internacional.Isso abriria uma nova discussão na sociedade argentina sobre saídas de fundo, e seria um exemplo internacional para os países em crise com a escalada da guerra, da inflação e dos preços dos combustíveis.