O que esperar da nova ‘Onda Rosa’ e de Lula?
Retomada da “esquerda” nos governos latino-americanos precisa ser encarada com realismo.
As últimas eleições na América Latina e as pesquisas de intenção de voto no Brasil indicam uma tendência: o continente será governado nos próximos por presidentes e partidos autodenominados de esquerda. O processo lembra o que ocorreu na virada do milênio, quando governos conservadores que implementaram políticas neoliberais foram sucedidos por governos de esquerda, fenômeno que foi chamado por alguns de “Onda Rosa”. O que esperar, então, dessa segunda Onda Rosa? Que lições podemos tirar dessa natureza aparentemente pendular das eleições nacionais na América Latina?
Recapitulando a primeira Onda Rosa
Não estamos de acordo com aqueles que analisam os governos latino-americanos supostamente de esquerda do início do século XXI como um bloco homogêneo, fruto de um processo histórico único e linear. Na verdade, observamos que os governos dessa época podem ser separados em duas categorias: bolivariano e social-liberal.
Na primeira categoria, estiveram os governos da Venezuela (liderado por Hugo Chávez), Bolívia (liderado por Evo Morales) e Equador (liderado por Rafael Correa). Trata-se de governos que, ainda que tenham sido vitoriosos em processos eleitorais, não ancoraram seu poder unicamente nas eleições, mas em mobilizações populares que chacoalharam seus países e colocaram a classe dominante contra a parede. Ainda que em nenhum desses casos o movimento tenha avançado ao socialismo propriamente dito, ocorreram expropriações e mudanças no regime político que alteraram sensivelmente a forma de dominação de classes, constituindo um importante freio ao avanço do neoliberalismo.
Já na segunda categoria, estiveram os governos dos demais países, como Brasil, Argentina e Uruguai (na América do Sul, apenas Colômbia e Chile continuaram sendo governados pela direita). Apesar de serem comumente reconhecidos como de esquerda, sua natureza foi distinta daquela do bolivarianismo não só em intensidade como em qualidade, isto é, não eram apenas “menos radicais” mas apresentavam um programa de classes diferente ou até mesmo oposto. Ao invés do enfrentamento, os governos social-liberais buscaram a conciliação de classes.
As reformas neoliberais dos anos 1980 e 1990 deixaram profundas marcas sociais, como desemprego, precarização do trabalho, carestia, inflação etc. Uma vez que os partidos conservadores se mostraram incapazes de sustentar politicamente esse padrão de exploração, os partidos social-liberais ofereceram uma nova fórmula para manter a hegemonia burguesa: conceder pequenas melhorias no padrão de vida dos mais pobres em troca de manter os pilares fundamentais do neoliberalismo e as estruturas de poder de sociedades que ainda conservam muito das relações de poder do período colonial. Dessa forma, a melhoria nas condições de vida dos mais pobres esteve, principalmente, atrelada à transferência de renda direta e à concessão de crédito, em acordo com a política sugerida por órgãos como o Banco Mundial e o FMI, de substituir a garantia de direitos sociais por parte do Estado pelo poder de consumo individual. A ligeira flexibilização da disciplina fiscal foi compensada pela garantia do cumprimento do “tripé macroeconômico”, que é a essência da política econômica neoliberal. E, no caso do Brasil, por exemplo, a governabilidade do presidente metalúrgico foi garantida pelo vice empresário e pela aliança com herdeiros diretos do coronelismo, sem falar da passividade em relação ao crescimento de grupos fascistas, como as milícias e os evangélicos neopentecostais ultraconservadores.
Aliás, cumpre lembrar que a melhora econômica sentida entre os anos 2000 e início dos anos 2010 só pôde ocorrer em função da política econômica voltada para a exportação de commodities, que sofreram uma grande alta nos preços em função do aumento da demanda por parte da China. Se essa política alavancou a renda, por um lado, por outro, aumentou a dependência do Brasil em relação a potências estrangeiras, agudizou o processo de desindustrialização e empoderou as antigas elites agrárias e extrativistas do país. Em outras palavras, houve crescimento econômico com regressão das forças produtivas.
Portanto, ainda que em quase toda a América Latina tenham emergido governos de esquerda como reação ao neoliberalismo, a natureza dessa reação foi bastante distinta, sendo de enfrentamento e reformas estruturais antineoliberalismo, em alguns casos, e conciliadora em outros.
E agora? Como estamos?
Novamente, a superfície do fenômeno (isto é, o fato de que a esquerda retorna ao poder) esconde diferenças essenciais. No caso da Venezuela, a Revolução Bolivariana não avançou e viveu o seu “Brumário”. O alto oficialato do exército apropriou-se da burocracia estatal e encerrou as possibilidades de socialização dos meios de produção. Nicolás Maduro (sucessor de Hugo Chávez) reprime indistintamente qualquer oposição política, seja progressista ou reacionária. Ao invés da promissora redução da desigualdade vista nos tempos de Chávez, a Venezuela tornou-se mais uma vez sinônimo de crise e fome.
No caso da Bolívia, o bolivarianismo sofreu uma tentativa de golpe por parte da direita reacionária, mas conseguiu se restabelecer com apoio popular. Apesar de não possuir mais o mesmo vigor dos anos 2000, o movimento pode extrair uma energia renovada após tamanha demonstração de resiliência.
Já o Equador está (junto com Paraguai, Brasil e Uruguai) entre os quatro únicos países da América Latina governados por presidentes de direita – Guillermo Lasso, um banqueiro semelhante a João Doria, eleito em 2021. No entanto, o governo de Lasso enfrenta frequentes e poderosas rebeliões populares contra suas políticas neoliberais.
Por falar em rebeliões populares, a mobilização popular chilena arrancou uma nova constituinte que, ainda que limitada, enterrou parte do entulho histórico deixado pelo pinochetismo.
No Brasil, Bolsonaro aprofundou ainda mais a infiltração das milícias e dos setores econômicos mais atrasados e criminosos (como o garimpo) na sociedade brasileira, mas exerceu um governo amplamente impopular que foi confrontado por mobilizações populares e denúncias de corrupção. Ainda que o presidente preserve parte de sua base social, em termos gerais, é possível dizer que a experiência das massas brasileiras com o fascismo foi negativa, o que está refletido nas pesquisas de intenção de voto que apontam Lula como amplo favorito.
É impossível não citar, também, a histórica vitória da esquerda nas eleições da Colômbia. Num país tomado por milícias e pelo narcotráfico, feito satélite pelos Estados Unidos, em que criou-se um senso comum que associa a esquerda às práticas mais corruptas e violentas, é fascinante que uma coalizão de esquerda tenha vencido as eleições – por mais que o presidente esteja mais próximo da linha conciliatória do social-liberalismo.
Portanto, nota-se que a política neoliberal e o poder burguês não encontram-se mais em risco, como ocorria no eixo bolivariano na virada do milênio. De lá para cá, ocorreram recuos importantes do ponto de vista da esquerda em nosso continente, como a vitória da direita no Equador e o fortalecimento das milícias fascistas no Brasil. Mas o continente segue sendo palco de rebeliões populares que podem redundar em novos e inesperados arranjos do regime político e econômico.
Afinal, o que esperar da nova Onda Rosa?
A perspectiva otimista para a esquerda pode levar àqueles que se identificam com essa matriz ideológica a pensar que basta esperar passivamente pelas eleições e início dos próximos governos para revivermos os áureos tempos das décadas de 2000 e 2010. É comum que, ao vermos mais um absurdo ocorrer em consequência da política bolsonarista (como o aumento dos preços ou o desaparecimento de ambientalistas na Amazônia), algumas pessoas comentem nas redes sociais coisas como “mal posso esperar pelo ano que vem” ou “em breve isso tudo vai acabar”.
Lamento destruir esperanças, mas isso não vai acontecer. Primeiramente, a situação econômica é outra. Muitos economistas têm apontado que o impressionante crescimento econômico chinês parece ter atingido um platô. Ou seja, a não ser que algo inteiramente novo e inesperado aconteça, não teremos um novo “boom das commodities”. O que não significa que a situação econômica não possa melhorar em nada. Desde 2015, quando o Brasil foi atingido pela crise internacional, todos os governos (Dilma II, Temer e Bolsonaro) adotaram políticas contracionistas – ou seja, que privilegiam o controle de gastos para manter a meta fiscal ao invés de investir para dinamizar a economia, como, por exemplo, cortes de investimentos em infraestrutura e direitos sociais, teto de gastos, reforma da previdência etc. Justo no momento em que a economia precisava da iniciativa do Estado para retomar o crescimento, os governos resolveram “enxugar gastos” levando o país para uma crise ainda mais profunda que parece não ter fim.
Talvez não seja ingênuo esperar que Lula ao menos reduza a sanha contracionista desses últimos anos, o que pode trazer reflexos positivos. Mas não é possível ter esperanças de que qualquer mudança de rota mais substancial vá ocorrer pois, até o momento, nada de concreto foi apontado nesse sentido pelo pré-candidato. Aliás, não é possível ter praticamente nenhuma expectativa já que sua campanha é conduzida de maneira dúbia: ora com bravatas radicais feitas para plenários lotados por militantes de movimentos sociais, ora com promessas de moderação feitas aos amigos de seu vice, Geraldo Alckmin. O que, com toda certeza, não se pode esperar é a repetição simples da situação econômica vivida na Era Lula já que ela não foi consequência puramente deste governo. Da mesma forma, não se pode esperar que as milícias que avançaram nos últimos quatro anos irão recuar só por causa da troca de governo. Ou que um país que, nos anos 1980, quase teve o maior narcotraficante do mundo como presidente da República se tornará um paraíso democrático só porque o presidente reivindica-se de esquerda.
Afinal, o que esperar então? Talvez o melhor seja não esperar nada. Não esperar, mas “esperançar”, como diria Paulo Freire, isto é, lutar para construir condições concretas de se realizar as esperanças. Obviamente, eleições são importantes. Não ignora-se a urgência da tarefa de tirar Bolsonaro da presidência, a importância que foi eleger a esquerda na Colômbia, a enorme derrota que foi deixar um banqueiro assumir a presidência de um país (Equador) que anos antes realizou a auditoria da dívida pública etc. Mas elas não definem tudo. A política é uma guerra com uma enorme diversidade de batalhas. A eleição é uma das principais, mas não a única. Assim como não se pode apenas enxergar a derrota eleitoral no Equador sem observar a força das manifestações populares, não se pode acreditar que um governo Lula, Petro ou Boric conduzirão reformas em prol da classe trabalhadora se não forem pressionados a isso – o que não é possível fazer quando opta-se pelo adesismo puro, celebratório e acrítico.
Esses governos serão governos burgueses, como quaisquer governos de um Estado burguês. Portanto, mais cedo ou mais tarde, entrarão em choque com a classe trabalhadora. Quem quiser ser aliado dessas lutas e ver reformas estruturais acontecerem a partir delas, precisará manter sua independência de classe.