Chile: por que o Rechaço venceu?
Algumas considerações sobre a derrota do novo texto constitucional chileno.
A vitória do voto pelo Rechaço ao texto da nova Constituição chilena colocou diversas questões aos internacionalistas. Como a luta pela nova Constituição, que se impôs com o processo do grande levante popular de 2019 e foi seguida por uma vitória retumbante de quase 80% no primeiro plebiscito que abriu o processo constituinte, pode chegar pouco tempo depois a apenas 38% de aprovação popular?
Esta pergunta deve ser respondida da maneira mais precisa possível. A explicação deste resultado negativo nos dá uma lição, uma experiência de aprendizado para continuar a enfrentar os próximos desafios que surgirão no Chile e em outros países da América Latina. Certamente, este resultado não pode ser explicado por uma única causa, mas por uma combinação delas. Neste breve texto, expressamos alguns elementos que consideramos que devem ser levados em conta.
O primeiro elemento está no caráter do governo de Gabriel Boric, que não representa as aspirações que surgiram da mobilização popular de 2019. Vale lembrar que numa época em que o povo se mobilizava para pôr um fim ao que restava do antigo regime, expresso na exigência de renúncia do ex-presidente Piñera, Boric votou por um acordo constitucional com a direita para que uma reforma constitucional pudesse ser acordada. A proposta de nova Constituição nasceu então no “Pacto da Cozinha”, como ficou conhecido o acordo feito às escondidas das massas mobilizadas nos conselhos populares (cabildos) organizados por todo país.
Foi apenas no primeiro plebiscito que uma maioria de 80% dos votantes tanto aprovaram o início do processo constituinte como rejeitaram a proposta da Convenção Constitucional Mista (entre parlamentares já no cargo e novos deputados constituintes), optando com uma assembleia constituinte com mais poderes e que iniciaria seus trabalhos a partir da chamada “folha em branco”, sem dispositivos oriundos da Constituição pinochetista.
Durante o processo constituinte, que teve características inéditas como a paridade de gênero e a representação dos povos originários, ocorreram as eleições que levaram Boric ao poder e de alguma forma prenunciaram a derrota do último domingo. No primeiro turno, o ex-lider estudantil foi derrotado pelo candidato da extrema-direita (José Antônio Kast) e sua vitória na segunda volta esteve diretamente ligada aos mais de 1 milhão de eleitores que não haviam ido as urnas no primeiro turno.
Desde a formação de seu governo até o presente, sua política tem sido de conciliação com as classes dirigentes, sem confrontá-las com medidas concretas (que teriam que ser radicais) para resolver os problemas que o Chile está passando. O governo estava se desgastando em meio a uma inflação de 13% e um aumento no custo da cesta básica que despreza o valor dos salários. Como resultado, sua taxa de aprovação atual é inferior a 30%.
Consequentemente, sua política em relação à nova Constituição era contraditória, vacilante, e seu apoio era tímido. Coerente com sua política de conciliação, expressou suas reservas e, juntamente com os líderes da antiga Concertação, levantou a necessidade de que fossem feitas mudanças em seus regulamentos. Neste contexto, o voto pelo Rechaço é também um voto castigo contra o governo por sua incapacidade, ou seja, não é um voto consciente de apoio à direita. Vale ressaltar que uma parte importante da antiga Concertação, entre eles o Partido Socialista, foi pelo Rechaço.
Além disso, os deputados constituintes que foram eleitos não realizaram um processo constituinte apelando à população. A eleição dos constituintes foi o resultado do processo de mobilização chileno. Havia uma maioria de eleitores independentes e de esquerda e a direita não alcançou nem mesmo um terço dos assentos, proporção que daria poder de veto a este campo segundo o Pacto de 2019.
No país onde se multiplicaram os cabildos populares em 2019, o processo constituinte representou um desligamento com estas expressões de organização popular, aqueles eleitos pelo povo de certa forma se desligaram do povo que os elegeu. Eles não abriram um processo constituinte popular, ou seja, um processo de consulta popular com os cabildos de 2019, com as organizações de base dos trabalhadores chilenos. A anseio constituinte chileno buscava um processo que organizasse o poder popular, uma verdadeira alternativa de poder aos velhos partidos de direita e da Concertação. Mas isto não foi feito, as discussões foram reduzidas aos deputados constituintes e a pequenos setores da vanguarda justamente frente a uma inédita votação obrigatória que levou mais de 85% dos eleitores às urnas, gerando um resultado desastroso
Não se pode diminuir também o impacto da campanha midiática de desinformação contra a nova Constituição, que se utilizou de fake news e de ações de grupos minoritários para dar a tônica da campanha pelo Rechaço. Entretanto, esta ação esperada da burguesia chilena de forma alguma anula todos os problemas colocados acima. Se o processo constitucional tivesse sido construídodesde as bases seria muito mais provável que a nova Constituição se aprofundasse nos problemas da vida dos trabalhadores e do povo e tivesse eixos populares mais claros, principalmente sobre temas econômicos estruturais do país.
Isto não significa rejeitar os avanços propostas pelo novo texto constitucional, mas priorizar os aspectos que são mais profundamente sentidos pela classe trabalhadora e que abrem a porta para um novo modelo concreto de país. Apesar da derrota, também é fato que a velha Carta pinochetista está com os dias contados e um novo processo constituinte será aberto em breve, com Boric já errando novamente e sinalizando seu centro no parlamento e nos partidos do regime. E, para responder a esta situação, será necessário que a vanguarda mobilizada e as organizações da classe trabalhadora reacendam a chama dos conselhos populares de 2019.