Bolsonaro e a extrema direita não querem apoiar a Nicarágua
Discurso trazido à pauta das eleições brasileiras é oportunista e contraditório
Dentre as várias polêmicas que tomaram lugar no processo eleitoral – diga-se de passagem, a maior delas de forma grosseira e despolitizada – uma chama a atenção do ativismo: Bolsonaro tem se concentrado constantemente em atacar seu oponente, Lula, por conta de um suposto apoio à ditadura na Nicarágua. Não foram poucas as vezes em que Bolsonaro utilizou o espaço de entrevistas, lives, horário eleitoral e mesmo o debate para tocar no tema.
O objetivo dessa ofensiva retórica não é apoiar ou problematizar a crise política e social na Nicarágua. Bolsonaro e seu exército de trolls nas redes sociais querem consolidar a imagem de que Lula apoia ditaduras e, assim, neutralizar a crítica que os setores progressistas fazem a sua própria apologia aberta à regimes ditatoriais. Não esqueçamos que Bolsonaro defendeu o fuzilamento de “30 mil esquerdistas”, colocar os movimentos sociais na “Ponta da Praia” (antigo centro de tortura) e que tem como ídolo o sádico Brilhante Ustra.
Temos atuado ombro a ombro na campanha de solidariedade ao povo nicaraguense, denunciando as atrocidades do regime de Ortega, tendo a enorme oportunidade de conhecer inúmeros companheiros e companheiras daquele país. Nos parece importante não deixar passar esse tema, e defender nosso ponto de vista desde uma esquerda socialista e libertária, não deixando Bolsonaro se utilizar da justa e necessária luta contra Ortega para fazer proselitismo eleitoral.
Demagogia eleitoral: a hipocrisia de Bolsonaro
Bolsonaro e a extrema direita tentam trazer para a pauta das eleições brasileiras a crise política e social estabelecida pelo regime autoritário de Daniel Ortega. Fazem isso de maneira oportunista e, no mínimo, contraditória. Bolsonaro não economiza fotos com ditadores como Putin, às vésperas da invasão à Ucrânia, com o ditador saudita Bin Salman e com Viktor Orban, déspota que está fechando o regime na Hungria.
Bolsonaro não tem qualquer interesse em apoiar a luta contra as prisões políticas, contra o giro autoritário de Ortega e Murillo. Quer agitar nas redes sociais para imputar a imagem de “cúmplice” de ditaduras à Lula, desvirtuando a discussão de mérito. A tática de estabelecer confusão e, assim, interditar o debate público, é uma das principais artimanhas da extrema direita internacional, espalhando desde fake news até a distorção dos pontos de vista da discussão política, gerando mais desinformação e evitando se confrontar com as próprias contradições.
Bolsonaro e seu clã fazem parte da rede política da extrema direita mundial, que se articula ao redor de nomes como Trump e Steve Bannon. Estiveram envolvidos no golpe de Estado da Bolívia, apoiam publicamente o pinochetista Kast no Chile; Eduardo Bolsonaro esteve junto com o argentino Javier Milei – que defende publicamente os anos da ditadura genocida no país vizinho – e com os neofranquistas espanhóis do partido “Vox”.
Bolsonaro tem como estratégia fechar o regime, atacar as instituições e a sociedade civil, para impor um novo regime, mais autoritário e tutelado pelos militares. Sua prédica contra as urnas eletrônicas e as convocatórias de manifestações nos últimos dois anos na data do 7 de Setembro são parte de sua ambição em instalar um regime antidemocrático, que restringiria as liberdades e direitos civis.
Mais que isso, Bolsonaro abusa da xenofobia, utilizando de maneira absurda o caso das “meninas venezuelanas” para expor crianças e adolescentes com fins a incrementar seu discurso antiesquerda. Bolsonaro não se importa com a crise migratória, com o flagelo dos venezuelanos. Em 2019, usou a crise humanitária na fronteira para fazer proselitismo político, mas foi a Justiça que obrigou o país a adotar medidas concretas de abrigo e refúgio aos imigrantes.
E a esquerda?
O oportunismo do Bolsonarismo em usar o regime autoritário de Ortega contra a campanha de Lula não isenta a esquerda de se pronunciar.
A base real para as distorções de Bolsonaro reside no silêncio que setores da esquerda, na qual se inclui parte importante do PT, impuseram diante das atrocidades de Ortega; quando dos massacres em 2018; silenciaram nos sucessivos ataques às entidades de direitos humanos; quando das prisões de centenas de ativistas, entre eles, líderes históricos da revolução de 1979, como o combatente Hugo Torres, morte no cárcere; prossegue no silêncio frente a degradação do estado de saúde de Dora Maria Telles, vítima da escalada autoritária do regime de Ortega.
Infelizmente, o campismo, tendência da esquerda mundial, no qual se encontra o chamado “Foro de São Paulo” – espaço de que participam o PT e certos “governos progressistas” -, sustenta regimes como o de Ortega, seja pela omissão pura e simples, seja pela defesa desavergonhada de suas ações autoritárias.
Desde o PSOL, nossa corrente política, o MES, esteve na linha de frente da denúncia dos primeiros indícios do autoritarismo de Daniel Ortega e seu regime. Estivemos ao lado do povo nicaraguense, denunciando suas atrocidades e exigindo democracia. Animamos a caravana internacional de jovens nicaraguenses pelo continente em 2018; apoiamos o Comitê Brasileiro de Solidariedade com a Nicarágua – iniciativa organizada e desenvolvida por nicaraguenses em nosso país. Organizamos (com outros parceiros políticos como a IV Internacional e o MST argentino) uma caravana até a fronteira da Costa Rica com a Nicarágua para testemunhar as condições dos presos políticos do regime autoritário de Ortega.
Como parte da pressão internacional, chegam boas notícias de que o governo Boric condenou o regime de Ortega, bem como gestos do novo governo colombiano na mesma direção.
Ortega e Bolsonaro, afinidades eletivas
Na verdade, Bolsonaro eleito seria um passo à frente para os que defendem um regime de ditadura, de tortura e de perseguição.
Apesar da prédica anti-Ortega, Bolsonaro tem práticas parecidas com as do ditador nicaraguense: quer fechar o regime, atacar o movimento de mulheres, fazer apologia à intolerância religiosa, promover sua família e está envolvido em diversos escândalos de corrupção.
Poderíamos falar do conservadorismos de costumes, onde ambos, Ortega e Bolsonaro, se aproximam com discurso ligado aos setores atrasados do fundamentalismo evangélico, numa cruzada contra o aborto, perseguindo lideranças de outras religiões, numa narrativa “cristã” e negacionista.
Na questão ambiental, os partidários de Bolsonaro e do ex-ministro Ricardo Salles, que tem como programa “passar a boiada”, ou seja, ampliar a exploração predatória do meio ambiente, não ficam devendo em nada para os agentes do governo Ortega, que colocam na prisão ativistas ambientais e ilegalizando ONGs em defesa do meio ambiente, com um suposto discurso “anti-imperialista”.
Solidariedade irrestrita com o povo da Nicarágua
Reivindicamos a heroica luta do povo nicaraguense e da Revolução Sandinista que, em 1979, pôs fim à ditadura da família Somoza. Ortega traiu os ideais da geração revolucionária, se transformando no contrário: uma reencarnação política de Somoza e do somozismo.
Uma eventual eleição de Lula abriria um novo campo para disputa: por um lado a proximidade de Lula com figuras como Paulo Abraão (é um alento para ampliar a luta democrática continental); por outro, as relações do PT com o Foro de São Paulo, que podem ser realmente um entrave para uma linha mais direta de solidariedade à luta do povo nicaraguense.
Contudo, um regime mais fechado, o que seria possível com uma vitória eleitoral, em nada ajudaria a Nicarágua. Traria mais confusão e geraria tensões mais autoritárias no conjunto do continente, ampliaria o discurso xenófobo da extrema direita brasileira e lutaria contra as forças políticas de esquerda que apoiam uma visão socialista e libertária.
Portanto, derrotar e desmascarar a hipocrisia de Bolsonaro é uma tarefa articulada, sim, com a solidariedade internacional.
É preciso cercar a Nicarágua e seu povo de toda solidariedade, além de exigir que Daniel Ortega liberte todos e todas as presas políticas e cessem as perseguições à oposição.
Fazemos um chamado às organizações de esquerda e ao espírito democrático que permitiu a formação da frente democrática para derrotar Bolsonaro, que se some a campanha pela libertação imediata de Dora Maria Telles, “Comandante Dos”, da Revolução Sandinista.
Uma esquerda que não tem medo de dizer seu nome precisa condenar as ditaduras em qualquer parte do mundo, sejam elas diretamente neofascistas, sejam elas “pintadas de vermelho” para a falsa esquerda. Nossa bandeira está levantada nessa direção.