As milícias e o Estado
De Bolsonaro à Daniela do Waguinho: como a milícia se mantém no poder
A recente indicação de Daniela do Waguinho para Ministério do Turismo do governo Lula causou certa comoção. Em meio à diversos nomes considerados pela maior parte de sua base de apoio, nomes progressistas – como Silvio Almeida e Anielle Franco – a nova ministra se destaca por um elemento oposto: sua relação com as milícias fluminenses.
Esposa do atual prefeito de Belford Roxo, Waguinho, Daniela foi a deputada federal mais votada no Rio de Janeiro e teve, também, como uma base de apoio diversos nomes já conhecidos pela sua relação direta com as organizações milicianas. Sua entrada no governo faz parte de um acordo dos petistas com o próprio Waguinho, que entrou na campanha do Lula no segundo turno, após um flerte com o bolsonarismo.
Essa indicação vai na contramão da vitória obtida por todos setores democráticos contra o Bolsonaro. Após a derrota de um governo que tinha como uma das suas principais bases os milicianos e que serviu como instrumento para um desenvolvimento político dessas organizações, temos como indicada diretamente ao novo governo uma política de uma família com ligações diretas às milícias. Isso é demonstração da complexidade desse tema: de como essas estruturas de poder milicianas permanecerão tendo uma relevância central no cenário político do próximo período. Por isso, é importante compreender de onde elas surgem e qual relação real que têm com o Estado também a partir de uma análise marxista.
De onde surgem são as milícias: uma perspectiva marxista
É inegável que existe um crescimento da importância política e social das milícias no último período. Nos últimos anos, cerca de 60% da cidade do Rio de Janeiro já poderia ser considerada área de comando dessas organizações, segundo dados da Geni/UFF. Esse fenômeno, inicialmente fluminense, também já vem se nacionalizando, tanto em relação às cidades e Estados onde está presente, como também em sua influência política, que vem aumentando a nível nacional e em diversos níveis regionais e estaduais.
Para compreender o que permitiu o sucesso das milícias não basta encontrar suas respostas no acaso – seu desenvolvimento político é fruto direto da relação de classes na sociedade e as crises políticas, econômicas e sociais que o Brasil tem enfrentado desde a década 90. Com o desenvolvimento do neoliberalismo, a desindustrialização, aumento dos índices de desemprego e a ofensiva sobre a classe trabalhadora feita pela burguesia nacional e internacional, a condição de vida nas periferias sofreu um grande abalo entre o final dos anos 80 e começo dos anos
90. Esse cenário é ainda mais relevante no Rio de Janeiro, onde a construção de um modelo econômico “oco”, onde os maiores centros industriais foram desmontados, construiu condições de vida cada vez mais duras para a maior parte da população fluminense.
Nesse período, consequentemente, também se amplia a quantidade de crimes, especialmente contra o patrimônio, em toda região. As taxas de roubo, por exemplo, nas regiões da Baixada Fluminense (um dos berços da milícia, onde inclusive fica a cidade de Daniela do Waguinho) crescem de forma considerável. Os dados, baseados em cada 100.000 pessoas entre 1991 e 2000 demonstram: houve um aumento de 226,62 para 710,85 em Duque de Caxias, de 174,60 para 375,66 em Nova Iguaçu e de 252,53 para 684,21 em Nilópolis.
Ou seja, junto com a precarização da vida, aumentam a violência e a insegurança patrimonial. O Estado, que já era ausente nessas regiões, passa a ser visto como insuficiente, em especial para os comércios locais, que buscam outra forma de garantir que essa instabilidade afete o menos possível seus lucros. Nisso se constroem os primeiros grupos de extermínio – organizações que se tornarão, em breve, as milícias – a partir de um acordo entre o capital comercial, o Estado e os indivíduos que participariam dessas organizações.
Essa relação é historicamente registrada, com diversas demonstrações de como os primeiros grupos de extermínio surgiram a partir da pressão de associações de comerciantes diretamente ao Estado. O primeiro grupo de extermínio registrado, criado pelo então chefe de polícia do Departamento Federal de Segurança Pública, Amaury Kruel, surgiu diretamente de seu departamento, como um grupo “informal” de combate à assaltos à mão armada, após sucessivas pressões feitas pela Associação Comercial do Rio de Janeiro (ACRJ). O mesmo acontece em Duque de Caxias, a partir do deputado Tenório Cavalcanti, que também coloca seu genro como presidente da Associação Comercial da cidade, cargo que ocuparia até 2017.
Ou seja, as estruturas pré-milicianas surgem como uma necessidade da burguesia de maior controle sobre as regiões que o Estado legal não vinha conseguindo assegurar uma segurança para o seu capital. A sua construção vem diretamente do Estado – composta prioritariamente por membros das próprias estruturas de segurança estatais, em especial, policiais militares. Com a transformação dos grupos de extermínio em milícias, essa relação vai se complexificando e se tornando cada vez mais intrínseca.
O modelo atual de milícias, que tem seu laboratório em Rio das Pedras, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, vai se fundamentando no domínio territorial e ampliando sua atividade, mas mantendo o mesmo caráter: cumprindo o papel que seria do Estado. Inicia, além de ser o responsável – de forma obrigatória e imposta – pela segurança local e adentrar em negócios como o transporte informal, a venda de gás e de “gatonet”, entre outras funções administrativas como a de síndico, de recolhimento de lixo entre outros.
Essa tomada do papel do Estado pelas milícias não é somente uma ocupação dos espaços deixados ausentes por este. Por meio de uma influência política cada vez maior, a milícia garante o apoio das estruturas do Estado para que siga exercendo seu poder, passa a ocupar espaços desde as subprefeituras até as grandes esferas da política, como forma de seguir possibilitando seu crescimento.
Seus resultados são efetivos. Em termos da repressão, por exemplo, somente 6,5% das operações da PM no Rio de Janeiro foram feitas em áreas de milícias ainda em 2021.
Mas seu papel na política é mais significativo – a partir dela começar a comandar projetos sociais (como parte do Minha Casa, Minha Vida), excluir a atuação do Estado em áreas onde ela mesmo possa assumir e lucrar – ou seja, ao mesmo tempo cria as condições de um domínio próprio, começa a se confundir com o Estado, criando condições cada vez mais difíceis de diferenciar onde acaba o Estado e começa a milícia. Permite, com isso, também uma forma de controle social, feita a partir dos interesses da sua aliança com a burguesia, com menor necessidade das concessões legalmente conquistadas, podendo manter a estabilidade da ordem social em seus próprios moldes, na ponta do fuzil.
Gramsci, em seu período preso pelo fascismo italiano, já definia o conceito de Estado ampliado como algo muito útil à compreensão das milícias: para manter o domínio efetivo da ordem burguesa, a classe dominante necessita de estruturas que se confundem com o Estado mas que não necessariamente estão formalmente conectadas a ele. É o caso da grande mídia, por exemplo. Os eventuais conflitos entre essas estruturas e o Estado podem se dar ocasionalmente – reflexo de como, segundo Pachukanis, a própria estrutura de dominação da burguesia é contraditória e composta de diversos subgrupos, fazendo com que haja disputa não só dentro do Estado ampliado mas mesmo do Estado formal, o que não nega que esse todo contraditória trabalha em conjunto na manutenção e ampliação da ordem burguesa.
As milícias funcionam nesse mesmo sentido, construindo laços fundamentais com a estrutura para existirem e por terem o mesmo objetivo final: conseguir manter a ordem burguesa e o desenvolvimento do capital em estabilidade. Em um reflexo de uma crise estrutural se tornam uma forma necessária dessa ordem para conseguir o que não seria possível por meio da estrutura formal estatal ou por meio democráticos.
Ou seja, as milícias e o Estado, na sua gênese e no seu funcionamento cotidiano, são um reflexo da crise estrutural que vive o capitalismo no Brasil, servindo como uma saída necessária para a burguesia de controle social na incapacidade da utilização só dos meios legais do Estado. É impossível conceber as milícias sem o Estado – seus membros, seu funcionamento e as condições de sua existência dependem dele -, mas conforme se amplia a crise social e o desenvolvimento das próprias organizações milicianas, se torna cada vez mais característico do atual período do capitalismo brasileiro que o Estado também necessite das milícias.
É nesse sentido que mesmo que essas organizações encontrem, em um projeto como o bolsonarismo, um espaço perfeito para seu desenvolvimento mais pleno e livre – sua presença no Estado não pode ser vista mais como incidental, mas como consequência estrutural de um atual período do desenvolvimento do capitalismo e do Estado brasileiro.
As milícias e o governo Lula
Esse elemento de relação estrutural com o Estado, porém, não responde concretamente como é possível que após um importante enfrentamento de diversos setores ao bolsonarismo e sua ligação com as milícias, pôde o governo Lula já iniciar sua composição ministerial indicando um nome tão diretamente ligado a essas organizações. Porém, compreendendo essa lógica de como surgem e como se desenvolvem essas organizações, temos os instrumentos necessários para chegar a diversas conclusões.
A composição ministerial de Lula é um reflexo de uma frente ampla formada durante a campanha eleitoral entre os diversos setores que rejeitaram o bolsonarismo – ao mesmo tempo que possui nomes que permitem a base social do PT construir uma narrativa de uma retomada do governo “ao povo”, diversos dos principais ministérios já são ocupados por nomes que são representantes diretos da burguesia – é o caso de Alckmin, no Ministério da Indústria, e de Tebet, no Ministério de Planejamento.
Ou seja, o peso da própria burguesia no governo não será pequeno. Na própria segurança, José Múcio, do PTB, demonstra essa tendência do governo ao ocupar o Ministério da Defesa. As eleições do Lula tiveram um papel fundamental para a derrubada do bolsonarismo – sua candidatura era a única viável naquele momento – mas sua constituição, reflexo de um projeto baseado numa perspectiva de conciliação de classes, foi o de estabelecer as pontes com todos setores possíveis que rejeitem o bolsonarismo. Um acordo que permitiu tirar o pior da política do país da Presidência da República, mas que não era capaz de combater as razões estruturantes que permitiram a Bolsonaro ser eleito e nesse sentido buscou se adaptar a elas.
Nesse sentido, entra Daniela do Waguinho e o papel de parte dos setores da milícia. Essa aliança improvável, vindo em meados do segundo turno, além do papel específico que teve para os interesses particulares do grupo político do prefeito de Belford Roxo, significou duas movimentações. A primeira, de Lula buscar base nesse setor político – que já buscava sair do barco direto de Bolsonaro para garantia de sua eleição e seu governo -, sinalizando que não necessariamente será um adversário central do desenvolvimento das milícias em si (algo que o PT já demonstrava no Rio de Janeiro, compondo com diversos governos do PMDB relacionados diretamente com os milicianos), mas também da própria milícia em mostrar sua adaptabilidade – o que importa é manter e ampliar seu poder, seja com aliança de quem for necessário.
É nesse sentido que surge a indicação de Daniela. Isso não significa, porém, que essa aliança deva ser naturalizada, pois também significa um maior espaço tomado nas estruturas de poder pela própria milícia – reforçando suas estruturas antidemocráticas de dominação. Diferentemente de Bolsonaro, o governo Lula, por partir de uma composição ampla de diversos setores da sociedade, pode (e deve) ser pressionado para uma mudança em sua indicação.
A recente invasão dos três poderes no dia 8 de Janeiro demonstra: a extrema direita segue viva e com importância política. Isso significa que seguirá importante aos anticapitalistas centrar a mobilização no combate ao bolsonarismo e apoiar o governo em suas medidas progressistas. Mas isso não significa uma carta branca: conseguir garantir que nomes como Daniela não sejam aceitos de forma natural também é parte das lutas democráticas necessárias que seguirão no combate à extrema direita no país e às razões estruturais de sua ascensão.
Nesse sentido, sem que cesse o combate às movimentações golpistas e as articulações da extrema direita – com o foco devido a luta contra a Anistia e a prisão imediata de Bolsonaro -, é importante também, de forma independente, pautar a não aceitação e naturalização de um nome como o de Daniela no governo. Por fim, a entrada de Freixo na Embratur em parceria com a ministra mostra a política que devemos evitar: a construção de uma esquerda que, a partir da unidade eleitoral que foi feita para derrotar Bolsonaro, confunde a tática com a estratégia e termina rebaixada a uma dominação pelos setores mais perigosos da nossa atual estrutura de poder.