O desafio: taxar os mais ricos
Previsto pela Constituição, imposto sobre grandes fortunas se impõe como saída para crise econômica e combate à desigualdade
Um relatório da ONG Oxfam Brasil lançado durante o último Fórum Econômico Mundial, projetou o risco de mais de 250 milhões de brasileiros caírem na extrema pobreza. Em contrapartida, a fortuna dos bilionários teria aumentado o equivalente a 23 anos durante os primeiros dois anos de pandemia. O relatório “Lucrando com a Dor” cobra a implantação de medidas tributárias que incluam a taxação de grandes fortunas de forma emergencial, solidária e patrimonial como forma de reduzir a desigualdade econômica.
Não é uma sugestão nova. Previsto na Constituição, o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) foi tema de diversos projetos de lei para regulamentação, mas as iniciativas jamais prosperaram. Em outubro, durante a campanha eleitoral, o então candidato à Presidência Luiz Inácio Lula da Silva (PT) chegou a afirmar que que “chegou a hora” de taxar bilionários. Mas não foi uma bandeira que ele chegasse a empunhar – desencorajado pelo mercado, pela frente ampla formada com partidos burgueses para derrotar Jair Bolsonaro (PL) e pela tradicional má-vontade do Congresso Nacional.
Para Pedro Micussi, mestre em Sociologia e membro do grupo de pesquisa Macroeconomia Estruturalista do Desenvolvimento da USP, a falta de um governo comprometido com essa agenda é a responsável pela manutenção da desigualdade no Brasil.
“Embora a desigualdade seja um assunto recorrente na história do país, no geral, quando a gente avança para propostas mais ousadas de reforma estrutural da distribuição de renda, o debate é interditado, não avança como nós socialistas entendemos que deveria. Um caso clássico disso é a famigerada fala de Lula de que os empresários nunca ganharam tanto dinheiro como no governo dele, apesar de os governos do PT serem reconhecidos como os que mais trabalharam para a redução da igualdade no Brasil. Como é possível? Isso exemplifica um pouco os esforços que têm sido feitos no país desde a Nova República de alguma diminuição da desigualdade, mas mais pela base da pirâmide, com políticas transferência de renda direta, como Bolsa Família, programas de valorização do salário mínimo, mas que deixa intocada a concentração de renda do topo da pirâmide. Ainda que haja uma importante diminuição da pobreza e ganhos monetários e salariais por parte trabalhadora, no que se refere à renda e ao patrimônio dos 10% ou 1% dos ricos e super ricos a concentração é praticamente estática. É isso que precisaria ser mudado, e é preciso ter vontade política para ir contra os interesses de pessoas que são de fato muito poderosas no Brasil, tanto economicamente quanto politicamente. São pessoas influentes que se organizam e fazem barrar as diferentes tentativas que por ventura aparecem de taxação da riqueza e das grandes fortunas”, diz Micussi.
Conforme relatório do World Inequality Lab (Laboratório das Desigualdades Mundiais), que integra a Escola de Economia de Paris, no Brasil, a renda média nacional da população adulta, em termos de paridade de poder de compra (PPP, na sigla em inglês), é de 14 mil euros, o equivalente a R$ 43,7 mil. Os 10% mais ricos do país, com renda de 81,9 mil euros (R$ 253,9 mil), representam 58,6% da renda total do país. O estudo afirma que as estatísticas disponíveis indicam que esses 10% sempre ganharam mais da metade da renda nacional. Um benefício garantido por uma legislação que protege o patrimônio e a renda desses milionários, provendo não apenas baixos impostos, como também isenções – como a concedida para proprietários de iates e jatinhos. Demonstrativo da injustiça tributária, a taxação dos grandes capitais ainda costuma ser justificada pelo risco de fuga da riqueza para outros países.
O professor de economia da Unifesp e doutor em economia do desenvolvimento pela FEA-USP André Roncaglia afirma que estudos mostram efeitos heterogêneos entre países que aplicaram a taxação e trazem evidências de que o risco de fuga seja superestimado. Contudo, ele vê entre os grupos abastados mais do que capacidade de evasão, uma grande influência sobre a opinião pública, podendo também fazer pressão política para restringir a base de tributação, reduzir alíquotas ou a duração do tributo.
Pedro Micussi exemplifica esse poder citando a forma como a mídia tratou a PEC da Transição, primeira grande negociação de Lula com o Congresso para garantir o pagamento do Bolsa Família e o reajuste do salário mínimo em 2023. Alguns jornais rebatizar a emenda como “PEC da Gastança” ou “PEC do Estouro”, atribuindo escândalo a distribuição de renda aos mais pobres.
“E em nenhum momento, os jornais chamaram a questão da taxação das grandes fortunas. É um debate muito marginal. Os muito ricos são muito influentes na formação da opinião pública e muito influentes em Brasília, no trâmite das leis. Não fazem avançar essas propostas também contando com deputados e senadores que não estão comprometidos com essas pautas”, diz Micussi.
Reforma tributária
Urge a implementação de uma reforma que reduza a injustiça tributária no país, que pesa mais sobre o consumo em comparação a renda e patrimônio, afirma o sociólogo:
“O imposto sobre grandes fortunas é um imposto sobre patrimônio. incide sobre o total da riqueza que um indivíduo e uma família venha a ter. O imposto de renda é sobre o fluxo de renda que o indivíduo tem ao longo do ano. Já os impostos sobre consumo incidem no momento em que as pessoas compram produtos ou serviços. Comparativamente, se paga mais imposto no Brasil sobre consumo que sobre renda, o que faz com que as rendas das pessoas mais pobres sejam mais captadas por tributos que a renda das pessoas mais ricas. Uma pessoa de baixa renda vai ter, proporcionalmente, uma renda maior investida em pagar tributos, Isso vale também para a classe média, que paga mais tributos que os super ricos. A gente precisa da reforma para reverter essa lógica perversa da tributação regressiva”.
Em entrevista concedida em Davos, na Suíça, onde ocorre o Fórum Econômico Mundial na segunda-feira (16), o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou que, se depender do governo, a reforma tributária será votada no Congresso Nacional no primeiro semestre deste ano. Ele ainda comentou a existência de pelo menos duas Propostas de Emenda à Constituição (PECs) que vêm sendo discutidas pelos parlamentares, e que poderiam ser base para um “texto de consenso”.
Alguns dos projetos em debate no Legislativo foram escritos no auge da pandemia, quando o debate sobre a desigualdade veio à tona, contrastando com a alta da concentração de da riqueza em nível mundial.
“Há pelo menos dois projetos de lei no Senado que regulamentam a taxação para um período de calamidade, o que é muito aquém do que a gente deve perseguir. Há outros dois projetos, um do Paulo Paim (PT), outro do Plínio Valério (PSDB), que também regulamentam, mas os dois ainda me parecem muito tímidos. O do Paim prevê taxação sobre patrimônio líquido a partir de R$ 50 milhões, e o do Plínio, a partir de R$ 22 milhões”, conta Micussi.
Em 2008, o PSOL apresentou um projeto de lei que Micussi qualifica como o mais ousado até agora. Proposto pela então deputada federal Luciana Genro, junto com o Chico Alencar e o João Valente, a PEC propunha taxação de 1 a 5% para pessoas com patrimônio a partir de R$ 2 milhões (cerca de R$ 7,5 milhões, com correção monetária).
“Acho que mais do que defender uma ou outra proposta, seria interessante colocar esse debate para a sociedade como um todo. O ministro Haddad disse que uma das suas prioridades vai ser a reforma tributária. Vamos ver se a taxação das grandes fortunas vai entrar nessa proposta e como. Durante a campanha, o PT foi muito hesitante em relação a isso e a gente não sabe se o governo vai defender ou não uma proposta nesse sentido. Nosso papel é fazer pressão para que a taxação seja incluída na proposta e que a gente possa melhorar o sistema tributário brasileiro, que é muito injusto”, argumenta.
A discussão poderia ser apresentada de forma didática. Alguns estudos apontam que taxar 1% da renda do 1% mais rico do país significaria, em termos de arrecadação, 1% do PIB – algo em torno de R$ 80 bilhões. A termo de comparação: em 2023, o Ministério da Cidadania precisará de R$ 70 bilhões para pagar o Bolsa Família.
“Acho que esse caso é emblemático porque demonstra como o debate público, ou o debate que a mídia propõe, fica envolto em algumas questões que parecem sem saída porque não se pensa, de fato, em soluções políticas e econômicas que vão de encontro aos interesses da classe dominante no país”, diz Micussi.
Nesse sentido, segundo o sociólogo, em um contexto que apresenta um governo vacilante sobre a taxação de grandes fortunas e um Congresso com parlamentares, em geral, pouco comprometidos com as demandas populares, a tarefa do PSOL é clara.
“Temos de fazer pressão na sociedade civil, nos movimentos sociais organizados, junto à opinião pública, para tentar reverter isso que até o dia de hoje foi um consenso no Brasil, de que os ricaços não devem pagar o tanto de impostos que os pobres pagam”, afirma.