A destruição e a morte não são naturais
Foto: Joyce Godinho

A destruição e a morte não são naturais

Há sempre um padrão nesses eventos: são os mais pobres e vulneráveis os mais atingidos.

Israel Dutra e Thiago Aguiar 23 fev 2023, 20:25

Durante o Carnaval, quando os festejos populares voltaram às ruas depois de 2 anos de interrupção por conta da pandemia, os trágicos acontecimentos no Litoral Norte de São Paulo chocaram o Brasil. Um volume de chuvas inaudito foi registrado em toda a região, particularmente sobre as cidades de Bertioga e São Sebastião, onde as precipitações superaram inacreditáveis 680 mm em apenas 24 horas, o dobro de toda a chuva registrada em todo o verão de 2022. Grandes deslizamentos de terra na Serra do Mar provocaram a destruição de comunidades inteiras e trouxeram grande dano à infraestrutura local. Até o momento, já foram identificadas 50 vítimas fatais. Há, ainda, dezenas de desaparecidos e milhares de desabrigados. No feriado, também houve chuvas intensas e danos em outras partes do país, como em São Gonçalo (RJ).

Como era de se esperar, as grandes dimensões dos deslizamentos e as mortes geraram uma forte corrente de solidariedade, com o recolhimento de doações e a comoção dos círculos governamentais, que visitaram a região. Lula e Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo, sobrevoaram o local na segunda-feira e anunciaram medidas. Se o roteiro de chuvas intensas no verão, deslizamentos, perdas humanas e danos na infraestrutura parece uma macabra repetição anual brasileira, fica a questão óbvia: poderia ter sido diferente?

Um problema de alcance global

Fenômenos climáticos e geológicos intensos, que terminam em graves crises sociais e humanas, tem-se multiplicado pelo mundo. Os recentes incêndios no Chile e, numa escala superior, o terremoto que destruiu parte da Turquia e Síria, conjugam tragédia e descaso dos governos, gerando resultados letais para os setores mais vulneráveis, nas periferias das cidades e do campo. O terremoto na Turquia e na Síria, por exemplo, desnudou o modelo autoritário do governo Erdogan, que tentou esconder e manipular as informações sobre o maior sismo ocorrido no século XXI, responsabilizando a “natureza” pela situação catastrófica enfrentada pelo povo, particularmente na região de minoria curda.

Há sempre um padrão nesses eventos: são os mais pobres e vulneráveis, por condições sociais e econômicas, os mais atingidos, enquanto os governantes manobram para sustentar privilégios, mantendo as populações trabalhadoras em condições precárias de habitação e saneamento, como o recentemente falecido pesquisador Mike Davis mostrou em seu “Planeta Favela”. Ao mesmo tempo, o aquecimento global tem causado grandes alterações no clima, numa verdadeira “emergência climática”, como alertam os especialistas, que indica riscos para a própria reprodução da espécie humana. É preciso inaugurar uma nova forma de relação entre os seres humanos, sua reprodução social e a produção econômica se pretendemos transpor o limiar do próximo século.

O social e o natural

Sabe-se que eventos naturais e climáticos trazem consequências por vezes imprevisíveis e catastróficas para a vida humana. No entanto, é plenamente possível, dadas as condições de progresso econômico e tecnológico, mitigar enormemente os efeitos de tais eventos e poupar milhares e milhares de vidas perdidas anualmente em todo o mundo por conta de chuvas, inundações, incêndios e deslizamentos.

Como já afirmamos, eventos como o do Litoral Norte paulista repetem-se todos os verões no Brasil e as respostas governamentais giram ao redor de entregas emergenciais de donativos e promessas de mudanças para o futuro. O Ministério Público, desde 2021, vinha alertando para o risco iminente de uma tragédia que “poderia ser evitada”. Aliás, em 1967, em Caraguatatuba, na mesma região agora afetada, ocorreu um desastre de grandes proporções após fortes chuvas e deslizamentos. A repetição talvez deva fazer-nos repensar o uso da palavra tragédia, como se se tratasse de evento simplesmente inédito e inesperado. Apenas no último ano, intensas chuvas, inundações e deslizamentos, com perdas de centenas de vidas, ocorreram em todo o Brasil: na região serrana do Rio de Janeiro, particularmente em Petrópolis, na região metropolitana de São Paulo, em Salvador, em Pernambuco, em Minas Gerais…

É preciso enfrentar o negacionismo climático e lutar por um programa de reforma urbana radical em nossas cidades e comunidades para que não se repitam mais as cenas de desigualdade vistas na Barra do Sahy e em outras praias onde se concentram imóveis de alto padrão da região: milionários saindo de helicóptero de fortificações luxuosas onde passam suas temporadas de veraneio, e destruição total dos bairros onde vivem os trabalhadores do turismo local, com seus baixos salários e moradias precárias. 

É preciso agir

É necessário exigir ação imediata de todas as esferas de governo. Desde o primeiro dia, nossa deputada estadual Mônica Seixas esteve na região levando solidariedade concreta. Sindicatos e a sociedade civil também estão mobilizados, recolhendo doações e cobrando providências. No curto prazo, é preciso ampliar a solidariedade e reivindicar o pagamento emergencial de benefícios para os atingidos, além do controle de preços nos mercados da região e abastecimento emergencial.

Mas isso não será suficiente: para realmente evitar novas perdas de vidas, é preciso uma mudança completa na urbanização de nossas cidades, começando pelas áreas de risco, por meio da construção de moradias decentes, em locais seguros, com saneamento e acesso a serviços públicos. Em São Sebastião, será preciso acompanhamento e luta para cobrar dos governos as promessas realizadas de construção de moradias do Minha Casa, Minha Vida para as famílias desabrigadas.

Ao mesmo tempo, é necessário tomar a luta pelo saneamento básico público com um direito e não um negócio para remunerar o rentismo. Trata-se de um dos grandes gargalos do país e o privatista Tarcísio já anuncia seus planos para vender a SABESP em São Paulo. Eventos trágicos como os dos últimos dias revelam que esse modelo de urbanização é insustentável. A esquerda e os movimentos sociais devem enfrentar essa questão, revelando suas relações com a crise climática e a responsabilidade de patrões e governos.


TV Movimento

Balanço e perspectivas da esquerda após as eleições de 2024

A Fundação Lauro Campos e Marielle Franco debate o balanço e as perspectivas da esquerda após as eleições municipais, com a presidente da FLCMF, Luciana Genro, o professor de Filosofia da USP, Vladimir Safatle, e o professor de Relações Internacionais da UFABC, Gilberto Maringoni

O Impasse Venezuelano

Debate realizado pela Revista Movimento sobre a situação política atual da Venezuela e os desafios enfrentados para a esquerda socialista, com o Luís Bonilla-Molina, militante da IV Internacional, e Pedro Eusse, dirigente do Partido Comunista da Venezuela

Emergência Climática e as lições do Rio Grande do Sul

Assista à nova aula do canal "Crítica Marxista", uma iniciativa de formação política da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco, do PSOL, em parceria com a Revista Movimento, com Michael Löwy, sociólogo e um dos formuladores do conceito de "ecossocialismo", e Roberto Robaina, vereador de Porto Alegre e fundador do PSOL.
Editorial
Israel Dutra | 21 dez 2024

Braga Netto na prisão. Está chegando a hora de Bolsonaro

A luta pela prisão de Bolsonaro está na ordem do dia em um movimento que pode se ampliar
Braga Netto na prisão. Está chegando a hora de Bolsonaro
Edição Mensal
Capa da última edição da Revista Movimento
Revista Movimento nº 54
Nova edição da Revista Movimento debate as Vértices da Política Internacional
Ler mais

Podcast Em Movimento

Colunistas

Ver todos

Parlamentares do Movimento Esquerda Socialista (PSOL)

Ver todos

Podcast Em Movimento

Capa da última edição da Revista Movimento
Nova edição da Revista Movimento debate as Vértices da Política Internacional

Autores

Pedro Micussi