Neoliberalismo e bolsonarismo
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Neoliberalismo e bolsonarismo

Educação da cultura individualista e autoritária

Frederico Henriques 13 fev 2023, 13:00

No dia 8 de janeiro de 2023, fomos dormir pensando nas cenas de milhares de extremistas de direita entrando e atacando as sedes dos Três Poderes, em Brasília, com toda a conivência da polícia local e das Forças Armadas. Além de gerar uma reação enérgica do governo, do judiciário, da mídia e dos setores que derrotaram o bolsonarismo nas urnas no ano passado, também se avançou para um enfrentamento mais direto com a prisão de centenas de bolsonaristas e a busca de financiadores e dirigentes das tentativas golpistas.

Sem dúvida, a palavra de ordem “sem anistia” simboliza a necessidade do momento de ir fundo nas investigações dos golpistas e da extrema direita, simbolizando também a desbolsonarização da máquina pública que ficou durante quatro anos sob influência fascista. Já está evidente que a única garantia de derrota nesse primeiro momento dos golpistas é o julgamento e a prisão de todos, em especial do seu líder, Jair Messias Bolsonaro.

Apesar das tarefas iniciais já serem colocadas para o nosso momento, não podemos esquecer de investigar as raízes profundas dos motivos que fizeram a gente chegar na situação em que chegamos. Não é uma classe média e uma elite que não aceitam os pobres, até porque devem compor no máximo 5% de nossa população; ou uma manipulação da mídia e das igrejas neopentecostais que enganaram os pobres que votaram na extrema direita, por mais que possa ter influenciado em algo. Não cabe à esquerda radical tirar a iniciativa e o protagonismo destes setores da classe: tais sujeitos não são seres alienados ou passivos, mas produzem resistência e sobrevivem na nova lógica posta.

A forma elitista ou apenas a partir da superestrutura faz com que setores que buscam simplesmente apoiar o governo não consigam ver as dinâmicas que acontecem na estrutura da sociedade e o seu impacto no ascenso da extrema direita a nível mundial, em especial no Brasil. 

Neste texto, gostaria de apresentar algumas ideias importantes para ter uma perspectiva do neoliberalismo e do autoritarismo por meio das construções na estrutura da nossa sociedade. Assim, no primeiro momento, vou apresentar a ideia “neoliberalismo desde baixo” bem desenvolvido pela socióloga Veronica Gago. Em seguida, como a consequência desta transformação social intensificada nos anos 2000 culminou nos governos autoritários nos anos seguintes, a partir das ideias de Fabio dos Santos & Daniel Feldmann. Ao final, vou apresentar como o governo, a partir da composição do ministério da educação, mantém essa lógica dos primeiros governos, fortalecendo um projeto liberal e autoritário no médio prazo.

Resistência e neoliberalismo desde baixo

Setores da esquerda da ordem sempre observaram a luta contra o neoliberalismo como uma série de políticas públicas que visavam enfraquecer o Estado em detrimento do mercado. Neste sentido, o debate contra o imperialismo e as políticas impulsionadas pelo Banco Mundial ou o Fundo Monetário Internacional sempre foram os principais alvos neste debate. Os Fóruns Sociais Mundiais, assim como a primeira onda de governos de esquerda na América Latina no início dos anos 2000, carregaram junto a eles essa crítica, apesar de conseguir reverter pouco o avanço das políticas colocadas.

Porém, nesse momento começa a surgir de forma sistemática diversos autores que passam a questionar a forma de ver o neoliberalismo apenas como uma política relacionada ao Estado, mas veem os seus reflexos na sociedade civil e na forma como as pessoas passam a se comportar. O trabalho que ficou mais conhecido foi o de Christian Laval e Pierre Dardot, A nova razão do mundo, que apresentou o neoliberalismo como uma racionalidade, para além de uma doutrina econômica ou política, e como foi transformando de forma profunda a sociedade contemporânea.

Seguindo esta lógica, Veronica Gago vai adiante ao analisar estes impactos sobre a economia popular na Argentina. A falta de garantia de direitos burgueses tradicionais para estes setores, junto a um processo de financeirização da vida, formará um cenário no qual muitos destes setores vão negar o Estado que não os incorpora, garantindo sua sobrevivência pela mediação do consumo e das dívidas. No Brasil, a partir de 2016, surge uma série de pesquisas que apontam na mesma direção. A derrota de Haddad na periferia de São Paulo, lugar historicamente hegemonizado pelo PT desde a redemocratização, dá visibilidade à ideia de empreendedorismo popular e ao questionamento da intervenção do Estado na economia. Ou seja, estão postas as consequências da financeirização e da cidadania do consumo.

Essa mesma racionalidade não apenas se aprisiona numa nova forma de controle e de exploração, mas também abre passagem para novas formas de luta e de resistência: atropelando as burocracias sindicais, professores nos EUA e em Portugal, a partir de greves selvagens fortes, conseguem barrar desmonte de carreiras; a movimentação de trabalhadores da Amazon a partir de novas formas de organizar mostra capacidade de resistir perante as gigantes da logística e da tecnologia da informação; no Brasil cada dia se torna mais constante a mobilização de trabalhadores de aplicativos também por fora da estrutura sindical, desconstruindo a imagem de empreendedor e escancarando os processos de superexploração e de precarização do trabalho.

Financeirização, consumismo e autoritarismo

De longa data a relação entre neoliberalismo e a necessidade de uma sociedade mais autoritária é estudada e apresentada por diversos intelectuais e autores. Política de encarceramento em massa e a necessidade de aumento do policiamento ostensivo, no geral, estão relacionados a manter massas marginalizadas do centro de acumulação do capital circunscrito em determinados territórios ou em posições passivas. Inclusive, na Revista Movimento, Theo Lousada apresentou um artigo amarrando bem o papel das milícias no Rio de Janeiro no atual estágio de desagregação da sociedade brasileira, em especial a carioca.

No caso deste texto, quero destacar um autoritarismo distinto, não apenas esse físico e social, mas também o político. Fabio dos Santos e Daniel Feldmann, em seu mais recente livro o Médico e o Monstro, apresentaram como essa política de inclusão pelo consumo e os processos de financeirização dos setores populares durante governos progressistas na América Latina resultou na vitória de governos de extrema direita ou golpes nesses países.

Para os autores, a lógica que atua o progressismo na América Latina, em especial do Partido dos Trabalhadores no Brasil, é no sentido de ganhar tempo – ou seja, as políticas de transferência de renda condicionada ou a ampliação do crédito consignado – políticas focais condizentes com aquelas sugeridas pelo Banco Mundial e FMI – apenas contiveram durante um período o avanço da crise sistêmica que se postula a nível internacional.

A tese que guia os estudos dos intelectuais é a de que as diversas tecnologias utilizadas durante os primeiros anos do novo século não mitigaram a lógica neoliberal como os reformistas defendem, mas utilizaram o capital político para avançar no aprofundamento das fraturas sociais, porém de forma mais contida. Não é à toa que as características do neoliberalismo desde baixo avançaram neste período escancarando a cultura da ostentação e a teologia da prosperidade, ambas exaltando as conquistas individuais e a meritocracia, além de um apagamento da cultura da solidariedade e do coletivo.

A luta contra a corrupção é vista apenas como algo da moral dos indivíduos, sem observar o caráter sistêmico, servindo como instrumento oportunista por setores da elite para deslegitimar o público e os políticos que não vão até o fim com o projeto deles. Por consequência, o debate sobre controle social e a transparência como chaves para o combate desse problema estrutural são debilitados. 

É óbvio que os projetos da extrema-direita e do progressismo latino-americano são distintos, mas o que Santos e Feldmann conseguem apresentar com maestria é que longe de um giro repentino da política geral, a política desses governos foram a antessala dos programas autoritários que se ergueram no momento seguinte. Agora que eles saíram das casernas e das ruas, deve-se combater os problemas imediatos para estruturar o alicerce para uma outra sociedade, evitando o preparo de terreno que traga novamente – e ainda com mais força – a extrema-direita. 

O caso do MEC e a tragédia anunciada

Não temos o direito de repetir os erros anteriores. É por isso que mesmo iniciando o governo é fundamental apontarmos os problemas que reforçam o processo de desagregação social e que fortalecem as visões individualistas e autoritárias que preparam o terreno para a extrema-direita. É neste sentido que a educação tem um papel chave para a construção de uma contra-hegemonia liberal de médio prazo que finde o fortalecimento da extrema-direita.

Já é sabida a relação dos governos do PSDB e do PT com os processos de privatização da gestão e na relação com as organizações sociais, como é o caso da gestão da saúde de forma mais geral, ou na relação com setores financeiros no que toca a previdência. O que se vê em Minas Gerais, São Paulo e Paraná, por exemplo, é o avanço do debate de Organizações Sociais para a gestão também na educação, apesar da gravidade desse debate e a necessidade de combater esse modelo neoliberal no qual a Nova República se adaptou. E é na concepção de educação que quero dirigir a crítica neste grupo que hoje ocupa o MEC.

Ainda em meados de 2015, se inicia um debate sobre a “nova” Base Nacional Comum Curricular (BNCC) com a justificativa da necessidade de formar o estudante para a vida, passando a vincular os currículos escolares – sobretudo da escola pública – aos interesses do mercado. O principal eixo de mudança está na redução da carga para a formação geral básica (como português, artes, biologia e sociologia) e a criação de itinerários formativos com foco na aprendizagem de competências minimalistas exigidas pelo mercado. Além disso, a ideia de educação integral, como compreensão da formação do ser humano como um todo de forma crítica, foi reduzida para uma ideia de ampliação de carga horária na escola a partir dessas disciplinas ligadas ao mercado.

A lógica da individualização da educação, reforçando aspectos de preparação para o mercado, corrobora para o processo descrito anteriormente do neoliberalismo desde baixo a partir da formação do jovem. Com uma falsa ilusão de protagonismo que o jovem tem sobre a possibilidade de escolher trilhas a seguir, ele entrega apenas a visão meritocrática autoritária e individual de um mercado de trabalho precarizado onde só sobrevive quem consegue desenvolver suas competências.

Não são apenas nos Itinerários Formativos que estas características são expressas, mas também na elaboração das competências e habilidades das disciplinas da formação geral. O exemplo da sociologia é emblemático: uma matéria que tem o papel integrador do estudante na formação de cidadãos críticos, no fortalecimento de empatia com a diversidade e na solidariedade com culturas e grupos diferentes, é subvertida a uma propaganda liberal. Desde 2021, o Currículo em Ação – caderno do aluno de referência do Ensino Médio na Rede Estadual Paulista – tem na apresentação da disciplina da sociologia um debate sobre a carga tributária em cima de vídeo games, instrumentalizando de forma simplista uma discussão sobre a necessidade de intervenção mínima do estado e debate do consumo como cidadania.

Essa visão neoliberal de educação não surgiu agora. Ela é disputada e construída por setores empresariais e do mercado financeiro que, a partir de suas fundações e Ongs – simbolizados pela Fundação Lemann e o Todos pela Educação – vêm nos últimos vinte anos participando da elaboração das políticas de educação no país, tendo em estados como São Paulo e Paraná como laboratórios. Hoje são exatamente estes setores que ocupam os principais cargos no Ministério da Educação do governo Lula e que sofrem críticas de entidades sindicais dirigidas pelo próprio PT.

A necessidade de um novo projeto

No texto, procurou-se mostrar que o processo de combate ao Bolsonarismo tem diversas camadas, desde o mais imediato como a punição dos golpistas e genocidas, mas que vai além, sendo necessário combater a lógica neoliberal que reforça e fortalece o ideário autoritário na política geral. Um debate radical de exigência de uma reforma tributária regressiva que desonere os mais pobres e taxe os mais ricos, auditoria da dívida pública e combate aos rentistas são pilares importantes, mas a necessidade de ir além passa urgentemente pelo debate da educação do nosso País.

No caso do MEC, temos que exigir a saída do setor que desmontou a educação em diversos estados, como São Paulo, e normatizou o neoliberalismo desde baixo no ensino em nosso país. Assim sendo, é fundamental: rever as mudanças na BNCC, a fim de valorizar uma educação cidadã, crítica e integral; revogar a “reforma” do ensino médio; garantir que o Fundeb reverta em salário e não em bônus e subsídios, garantindo a valorização da docência no país; dinheiro público para a educação pública, revertendo subsídios e isenções para a educação privada; barrar os processos de privatização e gestão da educação pública de formas indiretas.

Para além de reconstruir os desmontes e punir os golpistas, faz-se necessário chegar às raízes do problema que nos trouxe até o fundo do poço em que chegamos. Com isso, é fundamental construir um novo projeto de hegemonia que combata em todos os níveis o neoliberalismo e o autoritarismo em nossa sociedade. A mudança começa agora exigindo do governo que elegemos que implemente a mudança que saiu das urnas em outubro do ano passado.


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Pedro Micussi