Audiência pública sobre trabalho análogo à escravidão aborda precariedade da terceirização
Segundo MTE, 90% dos resgates registrados são de trabalhadores terceirizados. Empresas têm responsabilidade sobre violações
Proposta pela deputada Luciana Genro (PSOL), a audiência pública que debateu casos de trabalho análogo à escravidão no Rio Grande do Sul ocorreu na manhã desta quarta-feira (22/03) na Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa. O tema se tornou urgente no Rio Grande do Sul diante do resgate de mais de 200 trabalhadores no final do mês de fevereiro em Bento Gonçalves, bem como de mais de 80 trabalhadores em Uruguaiana – sendo onze adolescentes.
Convidadas a participar, tanto a prefeitura de Bento Gonçalves quanto as três vinícolas que contrataram a terceirizada que mantinha os trabalhadores nas condições análogas à escravidão enviaram notas à Comissão, mas não compareceram. O poder Executivo municipal garantiu que está atuando ao lado das investigações, prestando assistência aos trabalhadores e que condenam as práticas. Ao mesmo tempo, destacou que as vinícolas não tiveram envolvimento no caso.
As três vinícolas envolvidas – Aurora, Salton e Garibaldi -, que contrataram a terceirizada, enviaram nota para justificar a ausência, afirmando não poder comparecer por estarem colaborando com as autoridades. Disseram que não concordam com as ações cometidas pela terceirizada e que estão cumprindo as obrigações trabalhistas.
Na abertura da audiência, Luciana Genro destacou que quase metade dos postos de auditor-fiscal do trabalho, carreira vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego e responsável por fiscalizar condições trabalhistas, estão desocupados.
“E mesmo assim tantos casos estão aparecendo. Isso demonstra que realmente é um problema muito disseminado. E é claro que está relacionado com o racismo que permeia nossa sociedade e com a xenofobia”, afirmou.
O governo Bolsonaro, entre 2018 e 2022, cortou recursos da rede voltada para os direitos trabalhistas, apontou a deputada federal Fernanda Melchionna (PSOL). Ela também destacou os prejuízos causados pela terceirização, que precariza a situação dos trabalhadores.
“Quem opta por contratar de forma terceirizada é responsável por correr o risco, no mínimo. Quando contrata, tem que ser responsabilizado por cada uma das violações de direitos humanos”, colocou.
Órgãos de fiscalização apontam ações sobre os casos
O gerente regional do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) em Caxias do Sul, Vanius Corte, destacou que em 18 anos de atuação nunca havia visto uma situação como a encontrada em Bento.
“Os trabalhadores tinham dívidas, eram anotados os valores de EPIs, não receberam nenhum salário, faziam compras em mercado indicado pelo empregador, eram agredidos, torturados, ameaçados, assim como suas famílias”, afirmou.
Vanius Corte destacou que as terceirizações trouxeram a possibilidade de se precarizar muito a situação do trabalho.
“As vinícolas inclusive têm centenas de trabalhadores cada uma, em situação regular, mas isso acontece com os terceirizados. 90% dos casos de trabalho escravo são de terceirizados”, apontou.
O procurador do Trabalho Lucas Santos Fernandes, coordenador regional do Conaete, destacou que o Ministério Público irá buscar aumentar os valores que as empresas devem ressarcir aos trabalhadores, e que a Defensoria Pública ainda pode também tentar subir esse valor. O acordo firmado inicialmente pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) garantiu R$ 2 milhões a serem divididos entre os trabalhadores resgatados em Bento.
Representando o Ministério Público gaúcho, a promotora de Justiça Gisele Müller Monteiro, coordenadora do Centro de Apoio Operacional dos Direitos Humanos, da Saúde e de Proteção Social, abordou o caso do vereador de Caxias do Sul que expressou opiniões xenófobas e racistas sobre o caso.
“Já foi ajuizada uma ação civil pública e já está conosco, não admitimos depois de tudo que esses trabalhadores sofreram ainda tenham que ouvir falas xenófobas, odiosas, um discurso de ódio”, relatou.
Em Uruguaiana, onde mais de 80 trabalhadores foram resgatados poucas semanas após o caso de Bento Gonçalves, o resgate só foi possível devido a um acidente de trabalho, conforme relatou Vitor Siqueira Ferreira, gerente regional do MTE.
“Um adolescente de 14 anos deixou de ir pra escola para trabalhar, trabalhou com sede, fome, sem banheiro, em função que exigia uma força que seu corpo ainda não tinha condições de responder, por isso acabou acontecendo o acidente”, relatou.
Foi quando o adolescente se machucou que a situação foi descoberta e os trabalhadores, resgatados.
“Muita gente questiona: por que eles não denunciam? Existe um grande movimento de naturalização da exploração. E existem também os grilhões da modernidade, se antes o que mantinha eram as correntes, hoje são a necessidade, hipossuficiência e a fome”, refletiu o representante do MTE.
Representando o Ministério dos Direitos Humanos, Andréia Minduca, da Coordenação-Geral de Erradicação do Trabalho Escravo, destacou que “o trabalho escravo retira a humanidade, transforma a pessoa em coisa, objeto para o lucro daquela corporação”.
A questão do racismo estrutural foi trazida por Felipe Teixeira, do Movimento Negro Unificado, que criticou os políticos e empresários que “inverteram a lógica”, colocando a culpa nos trabalhadores e inclusive pregando o fim da Justiça do Trabalho.
Marina Derman, presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos, também apontou que esse tipo de crime foi facilitado pela retirada de direitos durante o governo Bolsonaro. Daniel Mourgues Cogoy, defensor regional dos Direitos Humanos da Defensoria Pública da União, colocou a instituição à disposição.
“Infelizmente não participamos da operação, mas temos um grupo de trabalho voltado para esse tema”, afirmou.
Movimentos sociais destacam precarização do trabalho
Representantes de movimentos criticaram a forma como são feitos os Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) de casos desse tipo. Márcio Oliveira, do Conselho Estadual de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra (Codene) apontou que muitas vezes parecem ser “copia e cola”.
De forma semelhante, Onir Araújo, da Frente Quilombola, lembrou que o TAC no caso do assassinato do Beto isentou o Carrefour de responsabilidade.
“O Estado brasileiro começou a nos dever já em 1831. E o que o MP tem feito nesses TACs é um escárnio com meus ancestrais. Não se considera o fator racial dos crimes”, disse.
Rodrigo de Medeiros, do Conselho Estadual de Direitos Humanos, destacou a necessidade de se combater de forma mais direta esse tipo de trabalho, para que os casos não se repitam. Neste sentido, as entidades também apontaram a importância de se combater a precarização do trabalho.
“A terceirização é a constituição de um trabalhador de segunda categoria”, constatou Ubirajara Toledo, da IACOREQ (Instituto de Assessoria às Comunidades Remanescentes De Quilombo).
“Isso acontece em vários setores em que acontece a precarização e terceirização do trabalho”, afirmou Dilmair Monte, da UNEGRO. O mesmo foi observado por Paulo Farias, que representou a Central Única dos Trabalhadores (CUT):
“Por que as empresas não se preocupam com os trabalhadores? Eles fazem parte da cadeia produtiva e as empresas têm que ser responsabilizadas”.
Ele ainda lembrou que o Ministério do Trabalho havia sido extinto durante o governo Bolsonaro.
“Sabemos que os ventos escravocratas nesses últimos seis anos estavam varrendo nosso país. Fundamental é voltar a fiscalização do MTE com toda sua competência”, acrescentou.
Dilmair Monte, da UNEGRO, abordou a precarização generalizada do trabalho.
“Percebemos que direitos trabalhistas estão cada vez mais sendo extintos”, reforçou Richard Evandro Guterres Alves, da Associação Satélite de Prontidão.
A falta de reparação concreta às vítimas nesses casos foi abordada pela professora Jânia Saldanha, da Unisinos.
“Não houve, nesse caso concreto, o acesso efetivo das vítimas à Justiça”, apontou, ao destacar que as empresas e os entes públicos precisam adotar os princípios de direitos humanos estabelecidos pela ONU.
Para encerrar, Pérola Sampaio, do grupo Juristas pela Democracia, abordou a questão da nomenclatura. “É importante que se fale ‘escravização’, pois tem alguém que escraviza. A pessoa não é um escravo, ela é esvcravizada”, explicou, pedindo ainda que haja uma fiscalização mais rigorosa das empresas, que devem ser responsabilizadas.
Encaminhamentos
O deputado Matheus Gomes (PSOL), que é um dos proponentes da Comissão de Representação Externa que irá tratar também sobre o caso de trabalho análogo à escravidão no RS, mencionou o projeto de lei da deputada Luciana Genro sobre o assunto, que foi rejeitado na legislatura passada.
“Vamos ter que reverter essa lógica e observar o conjunto dos mecanismos, ver de que maneira a gente legisla, além de mobilizar a sociedade civil. Porque tem muitos aspectos que precisam ser revertidos de um legado reacionário construído no Brasil nos últimos anos”, reiterou.
O projeto de lei 50/2021 determina o cancelamento da inscrição no cadastro de contribuintes do ICMS das empresas envolvidas em trabalho análogo à escravidão ou trabalho infantil. Essa proposta também impediria que os sócios exercessem atividades no mesmo ramo por cinco anos.
Luciana Genro encaminhou que os depoimentos e propostas colocados na audiência sigam sendo debatidos na Comissão de Representação Externa, que já foi aprovada na Assembleia.
“Que a gente considere acolhidas as propostas para o debate da CRE, para que assim a gente possa remeter aos demais poderes públicos o que for de cada competência”, disse.