O comunismo reformista

O comunismo reformista

Como segue vivo no Brasil e no mundo um “comunismo” sem perspectiva de revolução.

Theo Louzada Lobato 17 mar 2023, 15:19

Nos primeiros meses do governo Lula, a votação da reforma da previdência marcou uma transição que já vivia o projeto do PT e de seus aliados no país – a busca pela eleição e depois pela governabilidade a qualquer custo, fez com que o partido, que tinha surgido como representante (contraditório) das lutas dos trabalhadores, fosse o principal aplicador de uma medida de retirada de direitos, consolidando seu papel dentro da ordem burguesa.

Essa votação também serviu como motivo para a ruptura de setores importantes da esquerda contra o governo, no qual se destacam os fundadores do PSOL. Figuras como Luciana Genro, que já vinha elaborando sobre a falência petista, se posicionaram firmemente sobre a necessidade da construção de uma nova alternativa de esquerda no país e teorizaram sobre as semelhanças entre as mudanças do PT e a decadência do reformismo que apoiou a primeira guerra mundial.

Ao mesmo tempo em que se consolidava a ruptura à esquerda, não foram todos setores que se reivindicavam comunistas que decidiram adotar uma postura crítica. Aldo Rebelo, dirigente do PCdoB e liderança do governo na Câmara foi um dos principais articuladores dessa reforma. Ou seja, ele seguia a política que o partido vinha desenvolvendo no último período, que nas palavras do então vice-presidente Renato Rabelo deveria ser a de serem integrantes do governo, sem apresentar uma alternativa à esquerda.

Esse momento não foi um desvio de percurso: do final dos anos 20 até os dias de hoje, diversos partidos comunistas por meio de uma estratégia baseada no arcabouço político da contrarrevolução stalinista adotaram uma estratégia reformista. Esse setor que foi se consolidando a partir das necessidades da União Soviética que, buscando uma sobrevivência em uma estratégia em um país só, incentivou uma cultura política conciliatória pelos PCs do mundo que existe até hoje.

O apoio de diversas organizações comunistas – ou ao menos a falta de posição – a governos como o de Daniel Ortega na Nicarágua ou até mesmo de Putin na Rússia, são exemplos dessa degeneração e afastamento das bases da independência de classe. É importante refletir, portanto, como se desenvolveu essa história e como essa política se dá hoje em dia, como forma de refletir os caminhos necessários para a construção de uma nova esquerda internacional.

Socialismo Num País Só e as razões das políticas conciliatórias

O reformismo e a falta de perspectiva revolucionária sempre estiveram como parte nas disputas internas do movimento comunismo. Já no início do movimento anticapitalista e do socialismo utópico, as visões de um socialismo construído sem a tomada do poder apareciam como parte da discussão. A ideia de um rumo ao socialismo por meio de reformas tem sua versão mais definida com Bernstein e a II Internacional, tendo Lenin e Rosa Luxemburgo um papel fundamental na polêmica contra esse setor, defendendo uma linha revolucionária para os partidos sociais-democratas e, a partir do partido russo, garantindo a primeira revolução proletária, derrotando os reformistas mencheviques no processo.

Com a Revolução Russa e a falência moral dos partidos sociais democratas relacionados a II Internacional após o assassinato, por mãos do governo social-democrata alemão, de Rosa Luxemburgo, uma nova era de fundação de partidos comunistas por todo mundo se iniciou, reunindo uma vanguarda internacional – ainda muito diversa e desigual – que se organiza a partir da ideia de uma revolução socialista internacional.

Com a morte de Lenin e a contrarrevolução stalinista, o foco do partido comunista russo e da recém-fundada III Internacional vai, progressivamente, se desviando da construção de uma revolução internacional para a manutenção do regime soviético e dos interesses de sua burocracia. Essa virada se expressa pela teoria do “socialismo em um só país”, formulada por Bukharin e posteriormente apropriada por Stalin, dando início a um período na qual toda estrutura internacional do comunismo se voltaria não para a defesa do povo trabalhador de todo o mundo, mas para a manutenção do Estado Soviético.

Essa teoria justificava portanto toda manobras do regime stalinista – desde o pacto de não agressão com a Alemanha nazista aos acordos da Conferência de Ialta, na qual a União Soviética entrava uma divisão de influência territorial combinada com as potências capitalistas, reprimindo e desacoselhando os partidos fora de sua região acordada que tentassem fazer revoluções (como foi o caso da Grécia em 1949).

Nesse sentido, vai se formando, por meio de reestruturações dos partidos comunistas por todo mundo, com inspiração e influência direta do Estado soviético, um arcabouço de práticas e teorias políticas elaboradas para tentar garantir uma inconciliável manutenção de um Estado operário solitário em um sistema socialista. Para isso se adotou uma estratégia que buscava o máximo possível evitar confrontos. Ou seja, se constrói toda uma armação política para os partidos comunistas internacionalmente baseado na conciliação de classes, com a diferença que, para manter a aparência do legado da revolução russa, as elaborações vindas dos soviéticos teria que manter uma “forma” que não se dissesse abertamente reformista.

Sendo assim, os partidos vão elaborando suas teorias não a partir dos interesses da classe trabalhadora no seu país e no mundo, mas a partir de respostas que precisam dar para a matriz soviética. Nisso, três consequências dessa política valem certo destaque. A primeira é o ressurgimento do etapismo – a política defendida pelos mencheviques russos de que somente era possível uma revolução socialista em um país atrasado após uma revolução burguesa. Mesmo provada como contrarrevolucionária na prática pelos bolcheviques essa teoria volta a ser debatida e aprovada no VI Congresso da Internacional Comunista em 1928, como instrumento que permitiria os PCs a apoiarem diretamente partidos burgueses caso fosse interesse da URSS.

No mesmo sentido surge a prática do frentismo: a ideia de frentes entre setores diferentes da sociedade, já adotada em outros momentos pelo movimento comunista, torna-se quase uma regra permanente a diversos PCs pelo mundo, especialmente nos países que estivessem com boas relações com a União Soviética. As frentes que, antes serviriam de forma pontual para defender determinada pauta ou combater determinado inimigo se tornam uma justificava para uma aliança entre os partidos comunistas e as burguesias nacionais, muitas vezes sem pauta em comum ou inimigo definido: não se marcha separado e golpeia junto (como Trotsky defendia que deveriam ser as frentes políticas quando necessário), mas se utiliza desse instrumento para se confundir e se adaptar à outra classe.

Por fim, consequência internacional dessa política conciliatória é o campismo. A ideia de que o mundo está dividido entre os interesses do “imperialismo internacional” e os da União Soviética. A oposição de esquerda russa, desde o processo de degeneração do Estado soviético já defendia que contra uma agressão imperialista era necessário defender a URSS, apesar de quaisquer contradições que tenham, como forma de defender o que restou do legado da revolução. Porém, isso não significa, por exemplo, defender os governos burgueses com que a União Soviética pudesse se alinhar, ou ir contra as populações que se rebelam em países como a Hungria e Tchecoslováquia. A bússola do comunismo está com os trabalhadores, não com a burocracia – o campismo servia para mudar essa perspectiva.

Enfim, essas três concepções serviram ao stalinismo e à burocracia soviética após sua morte como qualquer teoria serve a essa corrente política – não como um instrumento de mudança em busca de outra sociedade mas como justificativas das necessidades imediatas de seus aparatos. Da política de uma conciliação aberta com os setores burgueses latino-americanos até o desmonte de revoluções com a política de frente ampla que levou ao massacre de milhares de militantes comunistas chineses em 1927, o período stalinista consolidou não uma teoria em abstrato, mas uma tradição política que sobreviveria muito além de Stalin e mesmo da União Soviética.

Com o fim do dito “socialismo real”, diversos partidos comunistas pelo mundo seguiram utilizando essa tradição conciliatória para se tornar mais abertamente partidos dos regimes capitalistas. Partidos Comunistas como o partido chileno ou japonês souberam se adaptar com relativa facilidade, passando de uma “conciliação até o socialismo” para uma conciliação sem nenhuma perspectiva real de ruptura com o capitalismo. Buscava-se, agora, reformas graduais e fechava-se o ciclo da contrarrevolução com uma adaptação completa à social-democracia, mantendo só a burocracia interna e, quem sabe, o palavreado comunista.

Comunismo reformista” no Brasil – Da fundação do PCB ao fim da ditadura

O primeiro partido comunista no Brasil foi o PCB, fundado em 1922. Segundo Anita Prestes o reformismo no partido já começa se expressar cedo, com influência da teoria etapista e da sua aprovação no já citado congresso da IC de 1928. Essa formulação, na prática, vai ser parte fundamental da política brasileira do comunismo oficial, primeiro como uma influência para depois se tornar uma estratégia. Após idas e vindas, a aventureira Intentona Comunista de 1935 e a severa repressão sofrida pelo governo Vargas, o partido passa por uma reformulação, a partir da entrada na segunda guerra do Brasil, junto com os EUA e a URSS contra o nazismo.

Em 1947, o ex-preso político Luiz Carlos Prestes divide o palco com Getúlio Vargas, como expressão de uma suposta “aliança democrática” contra o imperialismo. Essa aliança marca um período de um caminho para uma maior definição na estratégia do partido que se apresenta na formulação de 1958 da “Declaração de Março” do partido, na qual defende que ao invés da busca por uma revolução que a derrubada do governo de JK, deve-se lutar por um governo nacionalista e democrático, nos marcos do sistema burguês.

Ou seja, o PCB, que já inicia sua história com a influência conciliatória stalinista se adapta, ainda nos anos 50 a uma lógica cada vez mais próxima de tendências reformistas. A ideia de que o Brasil ainda precisava passar por uma etapa de uma revolução capitalista burguesa em conjunto com a tática de influenciar os governos burgueses em uma “frente” contra o imperialismo, permitiu o PCB a adaptar pouco a pouco suas posições, mesmo ainda com setores mais à esquerda no partido que disputavam contrária a linha reformista da direção majoritária.

Com a morte de Stalin e posteriormente o início da ditadura, diversas rupturas marcam novas experiências para a história dos PCs brasileiros. Com influência de Mao Zedong e da defesa do legado de Stalin, surge o PCdoB como um racha de um setor relevante no partido. Setores da esquerda do PCB, após o golpe de 1964 também se distanciam, alguns, como Carlos Marighella, foram construir guerrilhas urbanas pelo país.

Nesse sentido, a linha do partido vai se deslocando à direita, com seu jornal, Voz da Unidade chegando, no final da ditadura, a atuar contra a greve dos metalúrgicos, defendendo uma democracia acima das classes. Eventualmente esse giro à direita chega ao ponto da saída de Luiz Carlos Prestes e a transformação da sigla do partido, já nos anos 90 em PPS – o atual Cidadania. O etapismo e a conciliação de classes já adotados no final dos anos 20 foi se tornando preponderante até o ponto de uma adesão completa ao capitalismo. Somente em 1995 o partido seria refundado, buscando, em parte, uma visão crítica de seu passado recente.

A redemocratização e o comunismo “governista”

Outras experiências, porém, seguiram buscando reafirmar o “formato comunista” em uma política conciliadora, tanto no fim, quanto após a ditadura. O Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8), inicialmente uma cisão universitária do PCB que se tornou na ditadura um grupo guerrilheiro, buscou, com a redemocratização, se adaptar aos novos tempos.

Com o fim da ditadura militar, ingressam no PMDB, se tornando base do empresário Orestes Quércia, que chegou a ser governador de São Paulo entre 1987 e 1991. Ainda possuindo influência no movimento estudantil, vão se adaptando por meio da lógica formal adquirida do stalinismo para uma adesão completa aos representantes da burguesia. O movimento futuramente se iria reconstruir como PPL, que em 2019 se fundiu com o PCdoB.

O Partido Comunista do Brasil, porém, talvez melhor sintetize essa transição dos PCs após o fim da União Soviética. Após uma ruptura com o PCB, o partido nunca deixou de reivindicar o comunismo. Porém, com o fracasso da guerrilha do Araguaia e uma necessidade de reencontro do partido no cenário nacional e internacional, suas posições vão se adaptando a uma linha progressivamente mais próxima ao reformismo.

Chegando a apoiar o Sarney e o Itamar em parte de seus governos, a lógica frentista do PCdoB se torna uma marca importante em sua história. Suas principais polêmicas no findar da ditadura são com o próprio PT – ao mesmo tempo que o acusam de ser um partido social-democrata e reformista, polemizam centralmente por não estarem apoiando os governos burgueses pós-ditadura na defesa da democracia, na mesma lógica de “frente amplas” que resgataram do stalinismo.

Com a primeira experiência eleitoral em 1989, que trouxe ao partido vitórias expressivas nas urnas por conta da aliança com Lula e PT, o PCdoB foi se tornando uma base importante para o projeto petista. Suas alianças foram ampliando de marcos, também coligando com partidos burgueses onde julgavam necessário – aos poucos ia se tornando um partido que também fazia parte do regime.

Em 2003, o início do Governo Lula coloca o PCdoB em outro patamar – a entrada em Ministérios e em 2005 na Presidência da Câmara, demonstra uma fusão da estratégia do governo reformista de Lula com a do PCdoB. Sem negar diretamente o comunismo como ideia, o partido vai se adaptando ao regime burguês, tentando utilizar a China como uma referência de um tipo de “socialismo desenvolvimentista”.

O “comunismo reformista” hoje em dia e o campismo

A história é importante para que se possa compreender como existe atualmente no mundo diversas correntes que se reivindicam dentro do espectro do comunismo mesmo tendo uma estratégia reformista. Mas é necessário ir além, compreendendo como esse legado do “socialismo real” ainda afeta as esquerdas hoje em dia.

Desde a atuação contra as greves metalúrgicas do MR-8 ao apoio de “comunistas” por todo mundo a Putin, o papel central de organizações que seguem essa tradição política tem sido a tentativa de mediação das mobilizações populares com uma saída conciliatória. Ou seja, a busca por frear as lutas populares para encontrar saídas dentro do regime.

Essa política se apresentou por exemplo a partir da atuação da UNE (dirigida pela UJS) em 2015 de buscar não se mobilizar contra os cortes do então governo Dilma, ou mesmo do próprio apoio desses setores à construção de Belo Monte em 2016, usina hidrelétrica que devastou comunidades indígenas do Rio Xingu, como forma de dar respaldo a uma política de um suposto “desenvolvimentismo” do governo petista, mesmo que a custo das populações originárias.

Além disso, em cenário internacional, o campismo surge como um tema muito relevante. Cheguei a escrever em 2021 um texto sobre essa leitura internacional e suas consequências, mas aqui vale um breve resumo: a divisão entre dois “campos” políticos onde mais vale o sucesso de determinados governos que a luta dos povos segue como uma prática política mesmo com o fim da União Soviética. Isso leva às posições que vários partidos do comunismo oficial seguem, como a defesa da Rússia na invasão ucraniana, simplificando que todos que são contra essa oposição seriam “nazistas” – mesmo artifício que Stalin usava contra a oposição de esquerda na sua época.

A polêmica recente sobre Daniel Ortega e o caso da Nicarágua explicitam ainda mais essa contradição. Uma parte considerável da esquerda brasileira ainda defende esse regime, que há anos reprime, faz presos políticos e serve aos interesses do capitalismo no país. A ideia de ser um governo “anti-imperialista” (ou melhor, contra os interesses especificamente do imperialismo norte americano) estava acima da adaptação do regime à burguesia nacional e internacional e da repressão direta aos trabalhadores nicaraguenses. O próprio PCdoB, ainda em 2021 saudou a eleição de Ortega, muito depois da repressão brutal à oposição e aos trabalhadores se iniciar e, desde então, não tem mais se pronunciado.

Nesse sentido é necessário apontar um novo caminho para a esquerda brasileira e internacional. O fim da União Soviética e do “socialismo real” significou um fim de um ciclo que demonstrou que as políticas perpetuadas em todo mundo pela tradição stalinista falharam em manter o socialismo como uma alternativa viável. Não existe socialismo em um país só e também não existe uma forma de chegar a novas revoluções com as mesmas práticas políticas – a conciliação, o etapismo, o campismo, a frente como estratégia e não tática etc.

A crise do capitalismo segue forte em todo mundo. Espaço para novas alternativas existe e se expressa nas lutas populares que assombram os governos capitalistas, mas é preciso construir um novo caminho. Apostar nas lutas populares, definir um programa de ruptura com o sistema capitalista, defender a classe trabalhadora internacionalmente e não se confundir com a classe dominante são princípios básicos que podem nortear a construção de uma nova alternativa para os trabalhadores.

Não é só a denominação de comunismo que basta para encontrar esse novo rumo. A classe trabalhadora precisa ser disputada para a independência de sua classe. Essa é uma batalha que só pode ser travada na prática. O caminho até o socialismo ainda está para ser percorrido, nisso será necessário uma reconstrução da esquerda internacional. Ao mesmo tempo que é um percurso que deve ser de novas sínteses (uma nova alternativa construída não só de rupturas, sectarismo e fragmentações, mas de uma elaboração comum que busque novas fusões, incorporações e ações dos setores revolucionários) ele deve ser feito com uma estratégia clara de ruptura com o capitalismo. Para isso é importante não só aprender com os erros do passado e do presente, mas construir uma referência que os superem para o futuro.


REFERÊNCIAS

PRESTES, Anita Leocádia. A ESTRATÉGIA NACIONAL-LIBERTADORA E O REFORMISMO NA HISTÓRIA DO PCB. 2012. <https://pcb.org.br/portal2/2664>

SALES, Jean Rodrigues. Entre a revolução e a institucionalização: a participação eleitoral do PC do B na história recente do Brasil. 2008.

SALES, Jean Rodrigues. O Partido Comunista do Brasil e a crise do socialismo real. 2008

SALES, Jean Rodrigues. Entre o fechamento e a abertura: a trajetória do PC do B da guerrilha do Araguaia à Nova República (1974-1985). 2007

LOBATO, Theo Louzada. Da Síria a Hong Kong: o que é o campismo e por que temos que combatê-lo. 2021 <https://movimentorevista.com.br/2021/02/da-siria-a-hong-kong-o-que-e-o-campismo-e-porque-temos-que-combate-lo/>

SORRENTINO, Walter. PC do B saúda a FSLN: nota da SRI. <https://pcdob.org.br/noticias/pcdob-sauda-a-fsln-nota-da-sri/>

GENRO, Luciana. A falência do PT. 2006.


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