O inverno de luta da classe trabalhadora europeia
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O inverno de luta da classe trabalhadora europeia

As enormes mobilizações realizadas recentemente na Europa indicam um novo ciclo de mobilização da classe trabalhadora do continente.

Israel Dutra 4 mar 2023, 08:50

O inverno europeu anunciava uma maior preocupação com a inflação, o preço da energia e as consequências imprevisíveis da guerra. Agora, um outro fator decisivo se coloca em movimento. A entrada em ação de batalhões massivos da classe trabalhadora em luta, com seus métodos e seu programa, indica que está em curso uma mudança na conjuntura.

As bases materiais são a insatisfação causada pela crise econômica e social que escalou a partir das incertezas da guerra e amplificadas pela instabilidade permanente no âmbito dos governos. Podemos falar em “crise orgânica recorrente”, já que não existe um projeto unificador da burguesia europeia.

Na reunião anual de Davos, um diagnóstico ganhou força entre analistas econômicos, assustando a elite dos países centrais: estaríamos marchando para uma “policrise”.

Se há uma convergência de crises, por outro lado, há uma convergência de novos fenômenos na luta social caminhando ao lado do “despertar” da classe trabalhadora europeia. A ação de Greta Thumberg, encabeçando um protesto radicalizado contra a mineração na Alemanha, e a comoção social com as mortes de imigrantes gera uma polarização ao redor do tema com a extrema direita, dando contornos novos ao programa e à ação da classe nesse possível ascenso que recém começa.

A Europa se move

O processo de luta no âmbito europeu ganha força. Após a pandemia, com o “congelamento” do tempo político, a nova fase que estamos ingressando responde, além da crise múltipla e estrutural, às tentativas da burguesia de impor um novo regime de trabalho nas economias avançadas, dando passos na contrarrevolução neoliberal, retirando direitos, precarizando ainda mais.

A ponta de lança dos ataques, além da corrosão do salário através da inflação, é a reforma da previdência na França. Desde 1995, com o plano de reforma do serviço público, a burguesia francesa, através dos diferentes governos, vem tentando quebrar pilares da previdência pública, conquista do século XX, e assim desencadeando uma luta que polariza toda a sociedade. E a resistência aos ataques, protagonizada pela classe trabalhadora francesa, é, por seu lado, a ponta de lança da luta do chamado “inverno quente” europeu.

A última grande irrupção de massas na França e na Europa havia sido o movimento dos “Coletes Amarelos”, que polarizaram e radicalizaram o segundo semestre de 2019, sendo derrotados parcialmente e tendo, como já dito, a situação se “congelado” durante os dois anos duros de pandemia.

A expressão da crise orgânica na França levou Macron a vencer uma eleição renhida, na qual teve que buscar votos nas bases históricas da esquerda social para derrotar Le Pen, no segundo turno. Sua situação no terreno legislativo é extremamente desconfortável, acossado pela bancada de NUPES/Melenchon e pela extrema direita. Agora precisa impor um giro autoritário para aprovar sua reforma, amplamente impopular nas ruas. Uma luta muito dura, que opõe Macron à maior unidade sindical vista na história recente do país, a “Intersindical”, coordenada pelas oito grandes centrais do país. Foram convocadas, até aqui, cinco jornadas nacionais de mobilização, datas que chegaram à escala dos milhões de manifestantes. A primeira, convocada em 19 de janeiro, iniciou a experiência da unidade das oito centrais sindicais, tendo eco em nível nacional, colocando a “batalha da previdência” no centro da agenda política do país.

A luta contra os governos e seus planos de ajuste recorre no continente europeu, em que pese a multiplicidade de governos diferentes nos países, o que indica que a crise de hegemonia é bastante avançada. A luta contra o “centrista” Macron caminha lado a lado na luta contra os Tories no Reino Unido e mesmo com governos de caráter centro-esquerdista como Costa, em Portugal. As greves chegam também em países nórdicos, com menor tradição de radicalidade, sendo uma realidade que percorre a Europa.

O Reino Unido é, sem dúvidas, o segundo ponto alto das manifestações deste inverno. São as maiores mobilizações desde a “grande derrota” dos mineiros no ciclo do começo dos anos 80.

A onda de lutas não se restringe, contudo, ao ascenso anglo-francês. Portugal, que enfrenta um governo do PS com maioria absoluta, viu o irromper da luta dos professores, por fora das direções tradicionais. O país também vê se articulando um amplo movimento social contra o alto preço dos aluguéis. Bélgica e Grécia tiveram paralisações gerais no final do ano passado. O funcionalismo público do oeste Suíço está há semanas em greve. A Dinamarca teve uma greve geral contra a retirada de direitos e de um feriado histórico, conquista da classe nesse país nórdico.

A Alemanha não é parte da luta generalizada, mas teve greves importantes nos portos, aeroportos e entre os condutores do transporte público.

Na Espanha, a presença de greves e mobilizações no setor da Saúde é a maior em toda a história. Manifestações conhecidas como “marés brancas” levaram 500 mil pessoas a Madri, no começo de 2023, contra o governo direitista de Ayuso. A onda de lutas – que une trabalhadores da saúde, médico, usuários e comunidade em geral – se espalha, aos poucos, por todo o estado Espanhol.

Após a pandemia, a questão dos trabalhadores e trabalhadoras “essenciais” ganhou outra proporção; de todas as categorias que estão lutando, a vanguarda, sem dúvidas, são trabalhadoras e trabalhadores da Educação e Saúde.

O processo de lutas dá origem a uma lenta acumulação na reconstrução da subjetividade da classe trabalhadora. Como estava escrito num cartaz do sindicato RMT, durante uma manifestação em Londres: “Estamos de volta”

Convergência de crises, convergência de lutas

As lutas da classe trabalhadora – sejam elas contra as reformas, por aumento de salário ou melhores condições de trabalho – se inserem dentro da crise estrutural do capitalismo mundial, agudizada com os acontecimentos de 2008. A década seguinte teve uma série de “revoltas contra a austeridade” que derrubaram governos e tiveram seu epicentro na Europa mediterrânea – Espanha, Grécia e Portugal. O processo que se iniciou com a crise de 2008, contudo, teve como ator fundamental camadas médias e a juventude, com centro em movimentos como o dos indignados espanhóis ou a “geração à rasca” em Portugal.

O ponto mais alto da ebulição no que diz respeito à classe trabalhadora, aconteceu na Grécia. Após uma sequência excepcional de greves gerais, o Siryza assumiu um governo mandatado para romper com “Troika”, mas acabou traindo a votação popular num plebiscito e capitulando à União Europeia. O processo seguiu menos “social” e mais político, com o fenômeno Corbyn, Podemos, Melenchon. Apesar do fracasso da via de Podemos e Siryza, e da obstrução por parte da direção do Labour para o desenvolvimento do projeto Corbyn, a pulsão das ruas foi desviada, mas não foi derrotada.

O que estamos assistindo é a entrada em cena de uma luta mais abertamente classista, com uma agenda colocada na defesa do mundo do trabalho, com a classe organizada enquanto tal, com suas organizações sociais e seus métodos.

Há um caráter político nas manifestações, que ainda pode se generalizar: a pauta está concentrada nos salários e na defesa de direitos, mas se volta contra todo o mal-estar que se sente na sociedade – expressa na violência crescente, nas frustrações de setores de massa (que estão em disputa com a extrema direita, e nas altas abstenções nos últimos processos eleitorais). Sindicalistas afirmam que a diferença na pauperização está no endividamento das famílias, que atinge patamares históricos máximos.

Estamos com potências superiores às lutas dos anos 11-14. Foi memorável, à época, a greve geral ibérica em 14 de novembro de 2012, paralisando ao mesmo tempo Portugal e Espanha. Ainda não chegamos nesse nível de coordenação e radicalização do atual movimento da classe trabalhadora.

De alguma forma, a França será a prova dos nove para a dinâmica iniciada neste inverno. A chegada de contingentes de movimento estudantil e juvenil, como já se desenha na França, poderia criar condições para uma sinergia inédita desde o maio de 68. A greve geral marcada para o dia 7 de março terá, na sequência, uma greve no dia internacional das mulheres e um ato estudantil marcado para o dia 9 de março. Será uma jornada tripla para testar a relação de forças.

Uma classe mais diversa e potente: uma nova oportunidade para a esquerda radical

Bensaid apregoava, nos debates dos anos 90, a necessidade do “regresso da estratégia” para as discussões da esquerda radical; parafraseando o grande marxista revolucionário, que tanta falta faz, podemos afirmar que há um regresso da estratégia da ação – social, e que pode se transformar em política – da classe. Como ilustramos acima, a Europa está em movimento. O importante não só é entender a dinâmica geral do processo, como identificar as características da classe trabalhadora que luta nos dias de hoje.

Combatendo o neoreformismo e os “populistas de esquerda”, afirmamos que a classe trabalhadora está mais heterogênea e mais forte. Mais diversa, plural, mas com mais potencialidades a serem desenvolvidas.

Destacamos quatro condições essenciais para marcar a força e potência da classe que atua nas lutas do “inverno da esperança: as mulheres estão na linha de frente, a partir de postos estratégicos, sobretudo na área da saúde e educação; os imigrantes são a alma da própria composição de classe, politizando a luta contra a extrema direita e a xenofobia; há um salto na organização dos chamados trabalhadores “precários”, a partir da centralidade do “capitalismo de plataformas”, no caso dos entregadores e trabalhadores da Amazon; por fim, a concentração juvenil de novas camadas dos trabalhadores, auxiliando objetivamente numa nova espécie de “aliança operária juvenil”

Para além da solidariedade incondicional às lutas, é preciso tirar conclusões sobre o processo de recomposição de classe que apenas se inicia. Derrotas de experiências anteriores, algumas desmoralizadas pelo oportunismo, como o caso de Podemos, outras atravessadas por crises de projeto, como na esquerda francesa, devem servir de lição para a nova geração que estreia na luta política.

O calendário que está sendo chamado inclui a greve geral de 7 de março (que pode se estender), na França, as novas manifestações nacionais de professores em Portugal e a convocatória para um dia nacional de paralisações e protestos em todo Reino Unido, em 15 de março.

A aposta estratégica na classe trabalhadora, com novos contornos e feições, mas com a mesma pulsão transformadora, é renovada nesse inverno de lutas.


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