‘Homens e mulheres debatem coisas diferentes quando o tema é violência sexual’, diz Milly Lacombe
No segundo episódio do videocast “Fala Mesmo!”, Sâmia recebe uma das primeiras mulheres a conquistar espaço no jornalismo esportivo
Foto: Mandato Sâmia Bomfim/Divulgação
A contratação do técnico Alexi Stival, o Cuca, pelo Corinthians e sua demissão sete dias depois em meio a protestos por conta de um estupro do qual o futebolista foi condenado é o pontapé inicial da conversa entre Sâmia Bomfim e Milly Lacombe no segundo episódio do videocast “Fala Mesmo!”. A deputada convidou a jornalista esportiva para comentar o assunto que também diz respeito à participação de mais mulheres no esporte, políticas públicas que garantam essa presença e uma conscientização social sobre o que é violência de gênero.
“As coisas [no futebol], hoje, estão melhores do que já foram, mas ainda longe de serem ideais. Falta igualdade salarial, falta espaço em TV, falta mais apoio de patrocinador, falta base, falta demolir preconceitos”, lista Milly Lacombe, que também é roteirista, autora de livros e uma das pioneiras da atuação feminina no jornalismo esportivo. Com passagens pela Globo, Record e Folha de S.Paulo, escreve para as revistas Trip e TPM há 20 anos e, atualmente, também assina uma coluna no portal UOL.
No papo com Sâmia, a jornalista conhecida por aliar o trabalho à luta por direitos humanos mostrou-se otimista com um mundo mais igualitário no futuro:
“Ele acontecerá, sabe por quê? É isso ou acaba a espécie humana na Terra, está tudo interligado. O sistema econômico que explora, abusa, assedia, destrói as florestas e as espécies está ligado com o machismo, o racismo e a LGBTfobia. Então, ou a gente vence ou a gente se extingue, não há outra alternativa”.
Em relação ao futebol, a deputada do PSOL de São Paulo falou sobre projetos de lei que apresentou com o objetivo de fomentar a presença feminina nos estádios, tanto na arquibancada como em campo e nos bastidores. Entre eles, o PL 2448/2022 , que dispõe sobre o combate e proteção das vítimas em casos de assédio e sexual nas arenas, e também o PL 168/2023, que estabelece a meia-entrada para o ingresso de mulheres nos jogos.
Lacombe contribuiu sugerindo um PL que torne obrigatório para os clubes o ensino sobre o enfrentamento às diferentes forma de opressão:
“Assim como é importante levantar peso, correr em volta do gramado, treinar chute a gol e escanteio, é importante ensinar aos funcionários, comissão técnica, elenco, massagistas, nutricionistas e todo mundo envolvido no jogo o que é a nossa sociedade, a história do Brasil”.
Segundo a jornalista, a proposta promoveria a consciência de classe dos jogadores, que têm forte poder de influência na população do país.
“Cuca não é um monstro, ele é a regra”
O papo entre Sâmia e Milly foi gravado no dia seguinte ao desligamento de Cuca, após uma disputa que deu vitória ao Corinthians contra o Remo nos pênaltis, pela Copa do Brasil, em 23 de abril. Ao final da partida, ainda em campo, os jogadores do time paulistano deram um abraço coletivo no técnico, num suposto gesto de solidariedade pela pressão que ele teria sofrido desde sua contratação por parte de imprensa, patrocinadores e, especialmente, pelo elenco feminino e a torcida de mulheres corintianas. A jornalista classificou a cena como a “mais baixa de tudo o que já aconteceu no futebol brasileiro até hoje”.
Cuca foi condenado no final da década de 1980 por ter estuprado uma menina de 13 anos na Suíça, acompanhado de mais três colegas. Na época, o então jogador do Grêmio retornou ao Brasil e nunca cumpriu a sentença de prisão na Europa. Apesar da vítima ter reconhecido o jogador como um dos criminosos e da perícia ter constatado que havia sêmen dele no corpo da garota, o esportista insiste que é inocente e ainda ameaçou processar quem afirmasse o contrário.
Para Milly, o episódio mostrou que homens e mulheres discutem de forma muito distinta quando o assunto é violência sexual.
“Nós estamos debatendo morte, o direito de existir com dignidade, uma coisa que é fundamental. Eles estão debatendo uma ‘farrinha’. O foco não é o Cuca, não são os homens, somos nós, as crianças, o que é ser mulher nesse mundo”, reforçou a escritora. “Cuca é fruto de uma sociedade, ele não é um psicopata, um sociopata, um monstro. Ele é um homem que, lá atrás, tem um esqueleto guardado no armário, como muitos têm. O problema é social”, afirma.
A conversa também abordou outros aspectos da violência de gênero, como os altos índices de transfobia no Brasil e a naturalização do que Lacombe chamou de “dimensão pedófila da cultura heterossexual”. “A gente tinha um presidente que falou ‘pintou um clima’ para uma criança de 13 anos. A imagem da colegial de saia quadriculada e caderno na mão, pornográfica, erotizada, é base da formação subjetiva da masculinidade, é aceitável para eles. Precisamos falar sobre isso, são assuntos duros e a gente não pode se desimplicar”.
Assista à íntegra do episódio de “Fala Mesmo!” com Sâmia e Milly Lacombe no YouTube ou ouça pelo Spotify.