A direita brasileira e a democracia relativa 
Manifestação

A direita brasileira e a democracia relativa 

Uma reflexão sobre a falácia democrática da direita tradicional brasileira

Leandro Fontes 4 jul 2023, 11:05

Foto: Jonas Pereira/Agência Senado

O editorial do jornal O Globo de 01/07/2023 trouxe o seguinte destaque: “Decisão do TSE abre caminho à direita civilizada”. Não deixa de ser óbvio o eixo escolhido pelo Globo para tratar do dia seguinte da decisão do Tribunal Superior Eleitoral esperada por milhões de brasileiros. Afinal, o Grupo Globo, com todo seu poder e influência política, foi oposição ao governo Bolsonaro, embora tenha apoiado as medidas ultraliberais de Paulo Guedes. Todavia, a Globo se colocou contra as posições golpistas, antidemocráticas, de destruição da Amazônia e negacionistas do ex-presidente. Aliás, a Folha de S. Paulo, assim como outros setores de opinião da imprensa corporativa tomaram a mesma direção. Portanto, é um fato que esses setores que concentram a hegemonia da mídia, sobretudo o oligopólio Globo, incentivaram em seus veículos de comunicação de massa a inelegibilidade de Bolsonaro.

Tal posição coaduna com parte dos anseios das esquerdas e de setores críticos dos trabalhadores e do povo na luta contra o bolsonarismo. Por isso, não é menor o grau de importância dessa fração da burguesia para a conversão de mais uma derrota histórica de Bolsonaro e da extrema direita. Basta interpretarmos que figuras como o ministro Alexandre de Morais estão mais alinhadas ideologicamente aos editoriais do Globo e da Folha de S. Paulo do que a qualquer outra posição. No entanto, a unidade de ação com essa setores, contra um inimigo comum, não vai longe por uma razão simples: a diferença de projeto e concepção de país e de mundo.

Não é à toa que O Globo fala em “direita civilizada” com seis meses de posse do novo governo Lula, um governo burguês com Alckmin de vice e composto por uma frente ampla que agregou até setores desgarrados do bolsonarismo. Mas, não só. O cartão de visitas do governo foi o Arcabouço Fiscal (novo teto de gastos) de Haddad e Lula, que significou um compromisso visceral com o mercado em detrimento de mais recursos para políticas públicas que, a rigor, foram a vitrine dos governos petistas anteriores. Porém, mesmo sob essas condições, frações reacionárias e “civilizadas” da burguesia brasileira não toleram sequer um governo burguês de “roupagem humana” liderado por um ex-metalúrgico social-liberal. De tal maneira, a burguesia liberal que tentou, sem sucesso, construir um nome com a etiqueta de “terceira via” e teve que se contentar com um voto negociado no PT no segundo turno, agora busca ressuscitar do túmulo.

Para tanto, tenta-se, conforme direciona o referido editorial, separar “o joio do trigo” no conjunto dos setores políticos que representam à direita brasileira, para passar a ideia de que há uma direita democrática e “civilizada” e, outra, autoritária e tosca. Todavia, se observamos o que restou da direita “civilizada” fica difícil analisar os critérios adotados pelo Globo, levando em consideração que o bolsonarismo sugou boa parte dos políticos da direita, aniquilou o PSDB pelo caminho e os nomes cotados para ocupar o lugar de Bolsonaro no processo eleitoral são do próprio campo bolsonarista como Tarcísio de Freitas, Zema e Michele Bolsonaro. Por outro lado, Moro (outro da extrema direita) está desmoralizado e é carta fora do baralho. E emedebista Simone Tebet está no governo Lula, que, aliás, vem mantendo relações cordiais com governadores do espectro eleitoral do bolsonarismo, como Cláudio Castro, Ronaldo Caiado e Ratinho Jr. Portanto, quem seria o líder político para encabeçar e dar corpo a essa direita “civilizada” e democrática?

O problema é que os porta-vozes da direita clássica utilizam o conceito “democracia” ao seu gosto. Mas, as direitas, por sua natureza, não são democráticas. A razão é simples: a direita busca eliminar direitos sociais da maioria para favorecer uma minoria. Por isso, a democracia para a direita é em essência jurídica e não socioeconômica e de poder, tendo o Estado e suas instituições como superestrutura para a manutenção da sociedade dividida em classes e frações de classes. Isto é, uma sociedade desigual onde uma ínfima minoria se apodera de quase toda a riqueza produzida. De tal forma, para manter essa estrutura de democracia jurídica e de pouca democracia social, a direita “civilizada” (democrática/liberal) utiliza “a defesa das instituições” e do “Estado Democrático de Direito” como discurso.

Esse é o ponto que diferencia o bolsonarismo com o eixo do editorial do Globo. Uma vez que o bolsonarismo ataca parte das instituições (sobretudo o STF) e, se tivesse força, daria um golpe com apoio das Forças Armadas para mudar o regime. Portanto, se pegarmos a base do conceito “democracia”, utilizando o gabarito grego: “democracia = a governo do povo”, fica fácil de entender que Bolsonaro e sua horda de extrema direita neofascista são mais danosos ao povo brasileiro, já que sua proposta em essência é retirar direitos, as liberdades de organização e de opinião política dos trabalhadores, criminalizar partidos e movimentos sociais de esquerda, tudo isso balizado sob uma agenda conservadora dos costumes e de submissão ao imperialismo norte-americano. De tal forma, o bolsonarismo, isto é, a direita autoritária, é em forma e conteúdo um projeto aberto de destruição das condições de vida da maioria do povo e do regime político do país. A tentativa do golpe do 8 de Janeiro fracassou. Mas, o bolsonarismo segue vivo. 

Por sua vez, a direita “civilizada”, que tem a Globo como seu principal “partido” ideológico, defende o regime democrático burguês, pautado centralmente nas eleições, na manutenção da ordem de coisas como estão e também na submissão aos interesses do imperialismo norte-americano, topando concessões graduais como em relação aos direitos civis, no marco da representatividade da população LBTQIA+, das mulheres e da negritude. Entretanto, não custa lembrar que quem aplicou o golpe parlamentar para derrubar Dilma foi justamente a direita liberal “civilizada”, aliada ao Centrão e que contou com o apoio do então deputado Jair Bolsonaro. Essa direita “civilizada” é a mesma que defende a independência do Banco Central, a privatização das estatais, o teto de gastos, reforma da previdência para tirar direitos trabalhistas, é a favor do agronegócio e contra a reforma agrária e defende a hegemonia do capital financeiro.

Quer dizer, se por um lado o bolsonarismo defende redução da pouca democracia que existe no Brasil e para isso ataca parte das instituições, principalmente o STF, para convencer o povo desse objetivo. Por outro lado, a direita “civilizada” (democrática/liberal) defende as instituições para a manutenção da ordem e da pouca democracia que existe no Brasil. Mas, ao passo de qualquer ameaça de seus interesses, conforme a história brasileira comprova, a direita “civilizada” se alia a autoritária para esmagar através de golpes qualquer possibilidade de mudanças estruturais e até parciais no país.

Por isso, não deixa de ser sínica a crítica das direitas à fala fora do tempo e do espaço de Lula ao afirmar que a “democracia é relativa” para defender o regime de Maduro na Venezuela. Embora o editorial do Globo de 04/07/2023 reconheça textualmente o papel determinante de Lula para a derrota eleitoral e consequentemente sua inelegibilidade de oito anos de Bolsonaro, o mesmo não perde viagem e desce uma série de críticas a Lula por seu apoio a governos antidemocráticos supostamente de “esquerda”. Mas, qual é a moral do Globo em sua crítica? Ora, como já foi registrado, a Globo apoiou o golpe parlamentar contra Dilma, foi peça chave na vitória de Collor, perseguiu Brizola, foi absolutamente leal aos militares ao ponto de se posicionar como o “último dos moicanos” a abandonar a defesa pragmática e ideológica da Ditadura, isso está comprovado não só pela ocultação dos atos de massivos pelas Diretas. Mas, sobretudo, pelo editorial histórico – “Julgamento da Revolução” – de O Globo de 7 de outubro de 1984, onde Roberto Marinho faz o balanço político do regime que apoiava conforme mencionei no artigo movimentorevista.com.br/2021/11/o-grupo-globo-e-um-partido-politico (01/11/2021).

No entanto, penso que Lula errou duas vezes nesse episódio: primeiro que levantou uma bola para ser atacado pela imprensa burguesa num momento que Bolsonaro era a vidraça. E, segundo, que não dá para defender ou amortecer as críticas ao governo venezuelano. Não pelos argumentos seletivos da mídia, mas porque Maduro faz um governo que aplica medidas regressivas e antipopulares, além de atacar organizações de esquerda que se movem de modo independente como é o recente caso de perseguição ao Partido Comunista da Venezuela.

De tal forma, Maduro não pode ser comparado com Hugo Chávez, que derrotou um Golpe de Estado nos braços do povo, utilizando seu prestígio e poder de mobilização acumulado em processos radicalizados como o Caracazo. Mas, não só, a revolução bolivariana com Chávez à frente foi responsável por tornar a Venezuela em um país independente e com mudanças estruturais, como a diminuição real da pobreza e da mortalidade infantil, além de nacionalizar dezenas empresas de energia, telecomunicações, bancos e terras agrícolas. Sob seu governo foi cassada a concessão de Tv e rádio de empresas que apoiaram o golpe de 2002 e do ponto de vista internacional, buscou a integração latino-americana e uma relação de parceria solidária. Nessa combinação se fortaleceu novamente a resistência ao imperialismo e a identidade de independência latino-americana.

Por isso, não tenho dúvidas em afirmar que um cidadão negro e pobre da Venezuela viveu mais democracia no período Chávez do que um cidadão negro e pobre no Brasil, alvo predileto da repressão policial, do encarceramento e de todo tipo de preconceito social e racial. Assim sendo, é falsa a ideia da “democracia como valor universal” tendo modelo canônico as democracias liberais dos EUA, com seu bipartidarismo hegemônico e eleições indiretas, e de parte da Europa, que reúne repúblicas e monarquias constitucionais. Ou seja, chega ser tolo acreditar na agitação da direita “civilizada” no seu pedestal defendendo a sua própria democracia. Um tipo de democracia que é, a rigor, relativa e seletiva, que atende privilegiadamente aos ricos, a classe dominante e que tem como fim a manutenção da desigualdade entre as classes sociais.

Tal democracia é tão frágil que em uma pesquisa recente do Datafolha diz que 57% dos brasileiros creem que Bolsonaro deixou, total ou parcialmente, um legado positivo para o país e que 52% temem que o Brasil se torne um país comunista. Isso significa que o bolsonarismo acumulou e possui lastro no nível de consciência de amplas parcelas do povo, não só na classe média branca e em setores do proletariado dominado pelas igrejas neopentecostais. Nunca é demais lembrar, Lula venceu as eleições obtendo 59.563.912 votos (50,83% dos votos válidos), contra 57.675.427 votos (49,17% dos votos válidos) de Bolsonaro. De tal maneira, a luta contra a extrema direita deve seguir adiante tendo como próximo passo a prisão de Bolsonaro por todos os crimes que cometeu, sobretudo, por sua responsabilidade na tragédia da pandemia e por ser o chefe da tentativa de golpe do 8 de Janeiro. Contudo, isso não é suficiente para a derrota definitiva do bolsonarismo e pela conquista de mais democracia para a maioria do povo. 

Bolsonaro acumulou força porque se chocou com as instituições apodrecidas da Nova República tendo em vista a adoção de um programa reacionário, que pode ser interpretado como de ainda mais redução da pouca democracia existente no Brasil. A suposta direita “civilizada” defende o status quo para manutenção do “Estado Democrático de Direito” sustentado pelo sufrágio universal. Leia-se a democracia dos ricos que aprisiona negros e pobres aos milhares e deixa em liberdade fraudadores das Lojas Americanas como Lemann. Portanto, é um erro grosseiro das esquerdas, se restringir a defesa das instituições e “Estado Democrático de Direito” tal como existe. Essa posição já é sustentada pela direita liberal e pela mídia corporativa. Por isso, o papel da esquerda, sobretudo, da esquerda radical e anticapitalista, deve ser de disputar e organizar parcelas do povo que não acreditam nessa democracia dos ricos e que estão em busca de alternativas que se confrontam com o status quo como caminho de melhorias na condição de vida. Portanto, diferente do que está fazendo o governo Lula, o momento é de atacar os privilégios dos poderosos –  começando pela taxação das grandes fortunas – e de avançar na conquista da consciência da maioria dos trabalhadores e do povo. 


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Pedro Micussi