Milan Kundera, para além da memória
Uma homenagem ao escritor tcheco Milan Kundera, falecido neste mês de julho
No último 11 de Julho, faleceu em Paris, aos 94 anos, o grande escritor Milan Kundera.
Minhas duas experiências iniciais com Milan Kundera foram indiretas. Lembro que fui apresentado para “A Insustentável Leveza do Ser”, primeiro nas telas, com Daniel Day-Lewys e Juliete Binoche, na maravilhosa representação da obra de Kundera. Adolescente, recordo de assistir no cinema, perplexo com a história.
Também a leitura de Broué, em “A primavera dos povos começa em Praga”, me encantou e despertou a curiosidade para acompanhar e conhecer o escritor tcheco. A edição da Kairós, de capa amarelada, me levou longe no interesse e na imaginação.
Logo veio “O livro do riso e do esquecimento”. Um belo livro que me trouxe às voltas com a ironia fina e um estilo muito particular para traduzir a tradição e cultura da então Tchecoslováquia. O elemento do “esquecimento” como marca distintiva do regime stalinista, um “esquecimento seletivo”.
Mais tarde tomei atitude e devorei “A Insustentável”, uma das melhores experiências entre filosofia e política. Muito superior ao filme, o livro se divide em sete capítulos dinâmicos onde a trama entrelaça as relações afetivas, as opressões – gerais e particulares – indicadas como “peso” e “leveza”, as lições amplas de filosofia, com um incontornável pano de fundo das contradições da Tchecoslováquia do final dos 60.
Os grandes acontecimentos de 68, unindo a hipótese única de um levante repleto de desejo, liberdade e imaginação em diferentes partes do mundo mudaram para sempre a visão que a humanidade tinha de si. Kundera registra para sempre que 68 foi muito além da fotografia do “maio francês”
A ocupação dos tanques soviéticos que afogaram em sangue a Primavera de Praga também é entendida no bojo das grandes derrotas históricas e frustrações humanas. Seria o fim da chance imediata de um novo “salto no vazio”, da esperança do que chegou a ser chamado de “socialismo com rosto humano”.
Depois conheci “A vida está em outro lugar”. Mais seco e profundo, essa obra me adentrou ao ideário passado, da própria constituição anterior dos eventos de Praga, após a ocupação nazista, onde Jaramil, o personagem principal, é um jovem poeta querendo se colocar a serviço do novo mundo prometido pela mudança de regime.
O seu domínio da filosofia traduzido para a literatura – sem que, no entanto, ele tenha se arriscado no terreno acadêmico – fez de Kundera um autor singular. Boa parte de sua obra, felizmente, está traduzida para o português, sendo presença constante nas livrarias e sebos de todo o país. E, junto com Kafka, se inscreve como lenda literária da conflagrada e dinâmica região onde foi a Tchecoslováquia.
Sua literatura desvenda a potência e frustração de um projeto que polarizou o século XX e segue a nos assombrar, como fantasmas do regime stalinista em suas múltiplas facetas.