Porque o “Feminismo Radical” é reacionário
Contribuição de uma ativista feminista
O “Feminismo Radical” destaca-se pelo embasamento teórico e político fundamentalmente transfóbico, que manifesta-se desde apenas adjacente a preocupações compartilhadas por outras feministas até em transfobia explícita. A mistura de tópicos importantes – como a feminilidade compulsória e abusos da indústria pornográfica- com manifestações de ódio atordoa preocupados com violência de gênero. Discutiremos aqui motivos para compreender o radfem como um movimento reacionário e conservador. Serão apresentadas bandeiras da vertente (citando textos que a defendem) e analisadas suas fundamentações, buscando identificar seus objetivos concretos.
Um pilar radfem é defender a definição “mulher” de mudanças teóricas e políticas. É advogada uma conceituação que conecta fixamente gênero ao sexo biológico, originada em teorias feministas que ignoram pessoas trans (em geral, mais antigas) ou que ativamente as discriminam. É comum, no contexto radfem, definir “mulher” enquanto “fêmea adulta” ou até “produtora de gametas grandes”. A atualização do conceito “gênero”, nessa visão, esvazia a luta: “as mulheres são apagadas quando ser mulher pode ser qualquer coisa”, diz um texto criticando linguagem inclusiva. “Qualquer coisa”, aqui, se refere a mulheres trans. O anseio por uma conservação conceitual pode derivar, em parte, do desafio que a experiência trans apresenta ao feminismo tradicional: são necessárias mudanças profundas em teorias que não incluem esse grupo.
Essas mudanças podem ser desconfortáveis para quem o movimento foi desenhado para servir. Feministas cisgênero, acostumadas a lutar em interesse próprio, se deparam com esforços políticos que não beneficiam diretamente quem não sofre transfobia. Também foi desconfortável, por exemplo, para mulheres brancas encarar o racismo presente no movimento sufragista. Se exigissem desde o início o voto para todas, sua conquista dependeria da superação de obstáculos racistas. Para essas sufragistas, garantir seus objetivos foi preferível a complexificar uma luta e compô-la com pessoas com menos poder institucional.
O feminismo radical vai além de resistir a atualizações que contemplem pessoas trans: sua pauta central é a rejeição dessas identidades, e, por consequência, a exclusão dessas pessoas da sociedade. O movimento é contra, por exemplo, a presença de mulheres trans não somente na luta feminista, mas também em banheiros femininos, políticas públicas voltadas à mulheres e centros de acolhimento a vítimas de violência doméstica; assim como é contra qualquer reconhecimento legal do gênero de pessoas trans. De diversas formas, o radfem, conjuntamente com outras forças conservadoras, contribui para a manifestações concretas de institucionalização da transfobia.
Vulnerabilidades sociais de pessoas transgênero – amplamente reconhecidas em estudos demográficos – são contestadas com frequência, em postura francamente negacionista. Assim, além de excluí-las de políticas voltadas à mulheres, iniciativas especificas para pessoas trans podem ser vistas como desnecessárias.
Em relação à saúde menstrual, por exemplo, é insistido que não sejam mencionados homens trans e pessoas não-binárias – afinal, para radfems, todas as pessoas que menstruam são mulheres. Transmasculinos são tratados similarmente à máxima evangelizadora “ame o pecador e odeie o pecado”: Alegam acolhê-los enquanto negam suas identidades e tratam-nos como “mulheres confusas pela ideologia de gênero”. Se propostas radfem fossem levadas às últimas consequências, homens trans precisariam se dizer mulheres para acessar espaços e recursos associados à saúde reprodutiva.
Outra forma que esse discurso influencia políticas de exclusão é em nome de uma suposta defesa da infância. Esse movimento argumenta que reconhecer pessoas trans pode confundir crianças “normais” que desviem de expectativas tradicionais de gênero. A organização “Gays pela Abolição de Gênero” (anteriormente, “Gays AntiQueer”) argumenta que crianças expostas ao transativismo foram convencidas que são trans e “nunca poderiam saber como a vida teria sido para elas se tivessem sido permitidas a amadurecer naturalmente”. Uma defesa da infância natural, imperturbada pela existência de grupos específicos, não tem nada de novo ou original.
O argumento é similar ao dos que bravaram contra o “kit gay”, defendendo que o mero conhecimento sobre a possibilidade de não ser hétero transformaria crianças em LGBT+. Em ambos casos, alega-se a proteção de crianças que, de formas superáveis, desviam um pouco do comportamento respeitável – a distinção é que em um desses movimentos, ser gay é assimilado como respeitável. A linha da normalidade é traçada no limite que os inclui e então defendida a unhas e dentes.
Uma culminação possível dessa agenda é a repressão da diversidade na educação – desde a censura de materiais que abordam a transgeneridade até a proibição em ser abertamente trans na escola, efetivamente excluindo esse grupo também desse espaço. Uma lei similar ao “escola sem partido” , proibindo professores de conversar sobre gênero e sexualidade com alunos, foi aprovada nos EUA com apoio da direita e de feministas radicais. O texto “Sua escola está ensinando a pseudociência da ideologia de gênero?” foi publicado por um coletivo radfem norte americano e traduzido pelo “QG feminista”.
Saúde pública para demandas trans também é ameaçada por esse movimento. A partir de mentiras sensacionalistas – como fake news descrevendo cirurgias em crianças – é minada atenção médica que pessoas trans necessitam, sujeitando-as a auto-hormonização perigosa e desamparada. Se alinhado ao discurso radfem, acompanhamento psicológico para pessoas trans se tornaria uma forma institucional de impedi-las de transicionar. Alguém sofrendo com disforia encontraria, ao invés de acolhimento, orientações como: “A disforia de gênero é, em última instância, um pensamento. Um desejo por algo que não pode ser alcançado. Você pode tentar de qualquer maneira, mas se não por milagre, você irá falhar.”. Essa citação, como as demais apresentadas, é de um texto radfem (“Alternativas à transição”), mas não parece difícil encontrar algo idêntico em manuais fundamentalistas religiosos de “cura gay”.
No feminismo radical, a necessidade genuína de emancipar-se de estereótipos de gênero é combinada a uma aversão a causas que não as próprias. A experiência trans é complexa: há necessidade de desconstruir gênero e lutar pela possibilidade de expressá-lo autênticamente – o que, no mundo atual, passa por ser reconhecido enquanto homem, mulher ou pessoa não-binária. Compreender essa complexidade pode causar estranhamentos, principalmente em quem é cis. Em radfems, a indisposição a alteridade se converte em um discurso superficial e preconceituoso, que violentamente responsabiliza pelo patriarcado sujeitos especialmente fragilizados por esse sistema – e milita por sua exclusão da sociedade.
A existência de “demandas válidas” não é suficiente para defender um movimento cujo principal objetivo é a exclusão de grupos socialmente vulneráveis. Identificar, por exemplo, como a população enxergou no fascismo soluções para problemas reais- como a corrupção e questões de segurança pública – é um exercício constantemente necessário na esquerda. No entanto, não aceitamos que entender essas demandas passe pela validação do fascismo em si. Da mesma forma, é necessário, simultaneamente, entender o que atrai pessoas ao radfem e combater o que ele é em sua base: um projeto de conservadorismo e ódio.