Algumas palavras sobre as polêmicas que dividem o PSOL
No 8º Congresso do PSOL, a polêmica real está na estratégia que o PSOL escolherá para seguir com um caráter anticapitalista
Em uma das já dezenas de Plenárias do Congresso do PSOL, Diana Nascimento, dirigente do MES em Campinas/SP, começou sua fala relembrando o sentido histórico do partido. Em suas palavras, o partido é o “local que vai congregar toda a memória de organização e luta dos trabalhadores, é uma ferramenta que temos para enfrentar de forma coletiva e coesa os poderosos, aqueles que mandam no mundo, para enfrentar o capital.” Diante de tantas falas e defesas que parecem colocar o PSOL na vala comum da partidocracia que só pensa em eleições, achei uma excelente escolha começar a apresentação de nossa Tese 2 “PSOL Militante, Independente e Anticapitalista” assim. De fato, o sentido de partido para nós está além de uma vitória eleitoral, ainda que sejamos profissionais na tarefa de ocupar o parlamento como tribunos do povo, como, por exemplo, a atuação de Sâmia Bomfim na CPI do MST.
Mas ao continuar a avaliação das defesas de tese, chama atenção que o recorte histórico dos acertos do PSOL feito pela tese 3 do campo do “PSOL de Todas as Lutas”-PTL, e atual direção majoritária do partido (que só teve maioria com as manipulações envolvendo a prefeitura de Macapá e o governo burguês de lá), é a partir de 2016. Nem mesmo a imprensa burguesa conseguiu esconder o tamanho da importância dos 10 anos de Junho de 2013, mas aparentemente para a tese 3 tal data histórica não merece sequer a menção e/ou a reflexão do nosso partido. Será mesmo que não temos nada a aprender com Junho? Será mesmo que diante da crise que vivemos, novos Junhos não virão?
O que fez o PSOL chegar até aqui com o seu crescimento expressivo não se resume apenas às batalhas contra o golpe parlamentar de 2016 e as demais que enfrentamos até os dias de hoje. A sintonia do PSOL como expressão das lutas em curso não se explica se não considerarmos o acerto de termos sido parte ativa das mobilizações e de termos disputado Junho à esquerda. A candidatura de Luciana Genro à Presidência da República em 2014, mais bem votada do que a candidatura de Boulos em 2018, foi fundamental para construir o PSOL como a casa militante de tantas e tantas lutadoras que aprenderam a fazer política nas ruas e em escala de massas a partir de 2013. Não pode se explicar a o peso feminista, negra, LGBTQIA+ e da juventude sem conectá-las com a orientação militante, de mobilização permanente do PSOL junto à Primavera Feminista, à ocupação das escolas e a tantos outros processos construídos por fora da hegemonia da direção petista. A força de Boulos e do MTST também não se explica sem considerar os eventos relacionados com os ventos de Junho de 2013 e as lutas subsequentes. Recordo-me de uma camiseta do movimento Juntos! em 2014 com a inscrição: “A Copa do Povo é o Coração da Luta”, fazendo referência à ocupação liderada pelo MTST para exigir moradia ou não haveria Copa do Mundo no país.
Como uma expressão direta da Primavera Feminista, foi Sâmia Bomfim que, em consonância com esse processo, se apresentou como novidade do PSOL em São Paulo, abrindo portas para novas figuras se elegerem pelo partido. Ela conquistou a segunda vaga do PSOL e última na Câmara de Vereadores e posteriormente emergiu como a mais votada do partido em 2018 para Deputada Federal, superando até mesmo Ivan e Erundina. Se o partido alcançou a sua atual estatura parlamentar, ocupando o primeiro lugar nas pesquisas de São Paulo, isso não pode ser compreendido sem considerar o balanço desses acertos de construção e afirmação partidária em consonância com os principais processos de luta que eclodiram na última década. Em outras palavras, fomos a esquerda que apostou na luta fora dos gabinetes para nos fortalecermos, ocupando o espaço da mobilização como meio de alcançar vitórias.
No entanto, é um fato que o PSOL não estava preparado e à altura da brecha histórica aberta com Junho de 2013. Essa, talvez, deva ser uma de nossas principais preocupações: como nos preparar para estarmos mais fortalecidos, enraizados e prontos para novos levantes multitudinários e contraditórios que podem e vão emergir. Afinal, a crise iniciada em 2008 não se encerrou; pelo contrário, tem se complexificado cada vez mais, inclusive com o surgimento da extrema direita organizada.
O PT não poderia ter liderado Junho de 2013. Isso porque era o partido da ordem, o partido que ordenou a repressão, o partido que estava enfrentando os limites do próprio programa que havia implementado. O povo demandava mais direitos, e o PT respondia defendendo o status quo, acusando todos os presentes de serem infiltrados e/ou manipulados pela direita brasileira e mundial.
Junho carecia de uma nova esquerda para disputá-lo. Tivemos conquistas, ainda que específicas e parciais, que persistiram no método das ruas e das mobilizações, como na Primavera Feminista e nas Ocupações de Escolas. No entanto, em termos gerais, foi a direita com um simulacro a partir de 2015 que competiu, venceu e impôs uma situação defensiva no país.
Em algumas plenárias, é comum ouvir mentiras sobre nossa posição em relação à Lava Jato e ao golpe parlamentar. Me parece oportuno desviar o debate para esses temas táticos em detrimento do debate estratégico sobre o papel e a função do PSOL. Mas ainda em tempo, vale reforçar: não estivemos ao lado daqueles que pediam “Fora Todos”, ao contrário de alguns que hoje fazem parte do PSOL e estão autocríticos quanto a posições anteriores. Da nossa parte, lutamos pela tática de novas eleições gerais, para que pudéssemos debater e disputar ideias junto ao povo, diante da frustração do inegável estelionato eleitoral de Dilma. Quanto ao debate sobre a Lava Jato, condenamos a prisão política de Lula, mas também defendemos que a pauta da corrupção não deve ser monopolizada pela direita. A esquerda deve enfrentá-la, inclusive considerando seu potencial mobilizador para conscientizar as pessoas e denunciar concretamente o modus operandi do Estado burguês contra o povo.
Nas eleições de 2022, defendemos uma candidatura própria do PSOL no primeiro turno, tendo em vista a existência de dois turnos, e como forma de apresentar um programa distinto que marcaria a opinião do PSOL no enfrentamento da crise multifacetada que vivemos. No entanto, em nenhum momento negamos a possibilidade de retirá-la em apoio a Lula desde o primeiro turno. Simplesmente defendemos o debate de ideias e a demarcação de um programa à esquerda.
Nas Plenárias, muito se fala sobre a centralidade e a hierarquia do enfrentamento à extrema direita. Tentam cavar isso como o eixo que marca a polêmica dentro do partido. Porém, essa não é a divergência real. Ninguém pode nos acusar de não buscar unidade contra a extrema direita. A verdadeira polêmica, aquela que marca a disputa congressual, está na estratégia que o PSOL seguirá adotando. Para alguns o PSOL não deve se projetar a ser uma nova esquerda que rompa com os limites do programa e estratégia petista de gestão do Estado burguês. Para nós, unidade não pode significar diluição.
O governo de Lula luta para incluir o PP e o Republicanos, partido de Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo, em sua base de apoio, porque isso faz parte de sua estratégia para estabilizar o regime instaurado em 1988. Essa é a concepção de Lula sobre como derrotar a extrema direita e a direita em geral: incorporando-as em seus acordos de governabilidade.Ficaremos nós, do PSOL, rendidos e diluídos a essa política? Será esse o horizonte que o PSOL defende? De acordo com o que a tese 3 apresenta, sim, é isso que deve ser feito.
O cerne da avaliação e orientação da tese 3 reside em reduzir o PSOL à governabilidade petista, aos limites de suas táticas e ao seu programa de conciliação. Isso abarca desde as negociações eleitorais de gabinetes até as tensões para que o PSOL vote a favor do arcabouço fiscal. Basta observar quantas postagens os parlamentares do campo do PTL fizeram para politizar o debate sobre o tema e as razões do voto contrário do PSOL.
Não é por acaso que as defesas da tese 3 não abordam a contribuição que o PSOL poderia e deveria dar no combate à extrema direita, disputando o sentido anti regime e anti sistema, denunciando as mazelas que o capitalismo, especialmente durante a crise, impõe à maioria da população. Deveríamos fortalecer a confiança do povo na luta como instrumento para mudar a correlação de forças, muito além do simples voto eleitoral. Teria um impacto significativo contar com o peso e a influência de massas que o PSOL possui atualmente em prol dessa estratégia. Como lidar com a crise climática sem repetir erros como Belo Monte? Como enfrentar a crise econômica sem adotar a lógica de ajuste fiscal? Como envolver os jovens em uma consciência crítica quando a educação se pauta por um modelo neoliberal como o Novo Ensino Médio? Como enfrentar a precarização do mundo do trabalho, marcado pela alta informalidade e aplicativos? Essas questões deveriam ser o foco central do debate no congresso do PSOL, retirando a esquerda do isolamento dos já convencidos e elevando horizontes.
É claro que, diante dos anos recentes de bolsonarismo, tudo que vier, tendo isso como parâmetro, é melhor. No entanto, obviamente, não será o suficiente para derrotar permanentemente a extrema direita. Não elegemos Lula para simplesmente repetir como farsa os erros e as limitações da esquerda reformista que nos trouxeram até aqui. Elegemos Lula para ter melhores condições de lutar e expandir nossos horizontes. E não o horizonte do possibilismo parlamentar, mas sim aquele que busca mudar o estado de coisas. Ou alguém acredita que podemos derrotar a extrema direita impondo ao povo uma política econômica de ajuste fiscal? E, pior ainda, vendendo que isso seria uma vitória da esquerda, apresentando às massas isso como o melhor que podemos oferecer.
Em uma entrevista recente, o Professor Paulo Arantes da USP mencionou que uma das forças de Bolsonaro reside na verdade que ele fala ao povo. Creio que o Professor considera verdade as denúncias da ordem e da realidade opressora e exploradora que a maioria das pessoas vivencia. Bolsonaro o faz porque tem uma estratégia de transformar a ordem atual, e claro que para pior, buscando retornar a tempos de autoritarismo e supressão das liberdades democráticas. Contudo, não deveria ser a extrema direita a se apresentar como agentes de mudança e de mobilização permanente. Não poderia ser a extrema direita a dialogar com a exploração que enfrentamos e a propor um programa radical de ruptura com essa realidade. Não temos nós, a esquerda revolucionária, uma estratégia de poder? De transformação da ordem burguesa? De luta por justiça, liberdade e igualdade reais, que estão muito além do que a legalidade do Estado Democrático de Direito tem a oferecer?
Dessa forma, a divergência no Congresso do PSOL não gira em torno da unidade contra a extrema direita, e da defesa do governo Lula diante do golpismo desta. A verdadeira polêmica reside sobre qual estratégia o PSOL seguirá respondendo. E arrisco dizer que, se o PSOL se afastar da tarefa histórica de construir uma nova esquerda – a tarefa para a qual foi fundado –, isso reforçará a impressão lamentável que paira ao observar as forças em disputa no Brasil: a de que somente a extrema direita parece possuir uma estratégia de poder, uma estratégia de transformação da ordem.