Pouso de uma brasileira: um relato sobre as sensações do processo eleitoral na Argentina
Uma reflexão sobre o momento político argentino feita diretamente do país
Foto: Wikimedia Commons
No dia dois de outubro cheguei ao Aeroparque para começar o doutorado sanduíche por seis meses na Universidad de Quilmes, na Argentina. Ao pousar, ainda sem internet e sem a moeda local e com todas as minhas malas, recorri a um táxi oficial e perguntei se ele aceitaria a moeda real para me levar até o endereço, ele disse que sim, mas como teríamos que fazer uma parada, o valor seria cem reais. Eu achei bastante abusivo esse valor, considerando que já havia feito uma simulação pelo aplicativo e tinha dado trinta reais. Nessa conversa, ele argumentou que a moeda no país estava muito desvalorizada, que o país estava em crise e disse que era isso mesmo, com uma entonação nervosa e suplicante. Eu acabei aceitando pela condição e por ser um táxi oficial, do qual teria a quem recorrer caso algo acontecesse com os meus seis meses de malas recém chegadas no país.
Assim que eu entrei no carro, o taxista me disse: “isso vai acabar moça, agora em outubro vamos mudar o presidente e tudo isso vai mudar”. Eu perguntei o que exatamente ele acreditaria que seria diferente e ele soltou a palavra que, a meu ver, tem feito os argentinos sofrerem e alcançarem um patamar absurdo de 40% da população em situação de pobreza: a inflação. Argumentou que o Milei tem prometido a dolarização da economia, bem como investimentos nas empresas, cortes de impostos e sociais, abertura comercial para geração de empregos e assim, como uma mágica, resolver o problema econômico do país.
Eu perguntei acerca do Massa, até então o segundo colocado e candidato da continuidade. Ele disse que o presidente e a vice sumiram, ninguém sabia onde eles estavam, porque chegaram a uma conclusão de que o aparecimento dos atuais representantes iriam atrapalhar a campanha e ele acrescentou: “o país nessa situação e eles abandonam o povo?” O diálogo seguiu, assim como tantos que tivemos no Brasil, quando das nossas eleições, na tentativa singular de apresentar os contrapontos, sobretudo os objetivos e subjetivos, enquanto sobreviventes do governo Bolsonaro.
Assim que cheguei em minha casa provisória, meu interfone tocou, era a voz de uma mulher pedindo comidas ou roupas. Ao colocar o telefone no gancho, suspirei e cheguei a conclusão que o povo tem sofrido demasiado com toda a crise do capital gerada no país. Porque a crise do capital desenvolve figuras fascistas como Trump, Bolsonaro e Milei enquanto intensifica as desigualdades em seu processo produtivo e lucra com a desgraça do povo, restando a este somente ladesesperación.
Observa-se com isso que o sentimento das pessoas com relação ao Massa e sua possível continuidade no poder, estava similar a sensação que muitos brasileiros tiveram quando se estava entre o PT e o Bolsonaro: “mais do mesmo”, “necessidade de mudança radical”, “corrupção”, o que caracterizamos como uma das facetas do antipetismo e aqui se traduz em antiperonismo, trazendo também os contornos da polarização partidária.
No dia 08 de outubro assisti ao último debate presidencial televisivo e o primeiro ponto digno de nota foi que na Argentina os candidatos que não participam dos debates, tem sua propaganda eleitoral suspensa. Os argentinos acreditam, e endosso, que o debate é substancial para a construção da democracia, ou seja, fujões aqui não tem vez. Deveríamos aplicar essa normativa no Brasil… fica a dica. Os debates também podem ter platéias, desde que todos assistam em silêncio e sentados.
A dinâmica do debate também se difere do Brasil, é mais simples e objetiva, cada candidato é sorteado para começar a falar de temas sobre segurança pública, educação, inflação etce em cada bloco, foram dois ao total, os demais podem se inscrever para terem até cinco réplicas ao que está com a ordem da fala. Em relação aos ânimos, bom, isso foi bem parecido, com deboches, ataques e alterações nos ânimos.
Acho que uma diferença substancial que devemos aprofundar e alcançar nitidamente a discussão no Brasil é a questão da religiosidade no campo político estatal. Não há na Argentina a discussão dos valores conservadores cristãos ou lemas de “Deus acima de todos”, os assuntos são pautados para discussão de perspectivas acerca das pautas que o governo interfere e deve agir junto a população. E isso já é suficiente para alimentar o campo das discussões. Milei não usa Deus como escudo, mas se caracteriza por ser um candidato liberal em todo o seu possível extremo, anticomunista, conservador, armamentista e defende todas as políticas de fortalecimento do mercado e extirpação da classe trabalhadora, se coloca como uma figura que diz saber do que fala e no fundo não circula em seu sangue um respiro de humanidade.
Por outro lado, no Brasil, recorrentemente apareciam nos debates temas como o aborto, ou como vimos recentemente uma comissão aprovar a possibilidade de retirada de casamento da população LGBTQIPAN+. Estamos a todo o tempo enfrentando essa dinâmica conservadora religiosa dentro do Estado brasileiro, entrando pela porta da frente as discussões de valores arcaicos e a manutenção familista que ultrapassa o que deve se encerrar nas expressões individuais das crenças da população. Precisamos aprofundar e pautar com urgência a laicidade do Estado.
Dia 22 de outubro será o primeiro turno presidencial e é muito provável que aconteça uma segunda volta em novembro. Apesar do risco real de Milei sair vencedor dessa, torcemos que o fascismo não encontre terreno nos solos argentinos como encontrou no Brasil. Um déjà vu foi escutar em uma roda de conversa, as pessoas articulado possíveis planos B caso o Milei viesse a ganhar, assim como fazíamos pensando na chegada do Bolsonaro ao poder e os desejos é de que o país consiga se organizar para que sigam todos seus Planos As e assim reconstruam sua economia e sua história, marchando para o alcance da emancipação de sua classe trabalhadora.