Argentina: uma análise das eleições e a necessidade de combater a extrema direita

Argentina: uma análise das eleições e a necessidade de combater a extrema direita

Análise das eleições argentinas

Nicolas Calabrese e Vitor Cesario 3 nov 2023, 16:09

As recentes eleições gerais na Argentina foram acompanhadas por muita gente no mundo inteiro, e principalmente no Brasil. Isto se deve ao crescimento de um candidato de extrema direita, uma tendência global, e que, na Argentina, estava demorando para acontecer, se compararmos com outros países.

O resultado acabou sendo um choque para a extrema direita, porque foi superada de forma contundente pelo candidato governista Sérgio Massa, apesar do mesmo ser o atual Ministro da Economia no meio de uma forte crise econômica e desvalorização da moeda nacional, o peso. Isto se deve a que os votos são definidos mais pela negação de um projeto ou um candidato, do que pelo apoio ou concordância com alguns dos projetos políticos ou candidatos.

A eleição foi disputada por 5 chapas: em primeiro lugar e numa virada comovente ficou o atual ministro da economia Sergio Massa. O candidato “progressista” recebeu 36,68% dos votos, uma surpresa depois da votação morna que recebeu nas primárias. Em segundo lugar, com 29,98% dos votos, ficou o candidato neofascista, uma espécie de Bolsonaro argentino. O terceiro lugar foi ocupado pela direita tradicional, a coalizão chamada Juntos por el Cambio, com diferentes partidos da velha direita e figuras simbólicas do status-quo argentino, ficaram  com 23,83% dos votos. O quarto lugar foi ocupado pelo peronista de centro-direita Juan Schiaretti. A esquerda ocupou a quinta posição, recebeu quase 3% dos votos.

O resultado do primeiro turno na Argentina foi uma boa surpresa para todos que se preocupam com a democracia no continente latinoamericano. Essa tese não se dá pela virada de Sergio Massa em si, mas pela “queda” de Milei, que sai do topo do pódio eleitoral e como o grande perdedor da primeira volta. O triunfo do peronismo é um triunfo da democracia, que se recusou a aceitar o programa neo-fascista e entreguista do candidato de extrema direita Javier Milei. Após o resultado das primárias, Milei se sentiu à vontade para esbravejar seu programa máximo. Provocou instituições democráticas, debochou de mortos e desaparecidos durante a última ditadura militar argentina, cutucou as instituições financeiras e comemorou a desvalorização do peso numa jornada de alta do dólar. Os discursos inflamados, anti-democráticos, negacionistas e fascistas de Milei foram os maiores aliados de Sergio Massa e do peronismo para essa virada no primeiro turno.

Eleitoralmente, a virada se deu em algumas provincias como Tucuman, Corrientes, Entre Rios, La Rioja, La Pampa, Rio Negro, Santa Cruz e Tierra del Fuego. Em algumas províncias a virada chegou a um aumento de 10 pontos percentuais em relação às primárias. Já em outras províncias, como Jujuy, Chaco, Salta, Santa Fe, San Juan, Mendoza, San Luis, Neuquén, Chubut e província de Buenos Aires, o oficialismo não chegou a virar a eleição, mas houve uma crescente significativa na quantidade de votos e foi possível diminuir a diferença com Milei. Entre essas províncias todas citadas, destaca-se a província de Buenos Aires, onde o peronismo já havia saído em primeiro lugar nas primárias mas conseguiu aumentar a distância do segundo colocado, muito pela expressiva votação do candidato, reeleito já no primeiro turno, Axel Kicillof, também peronista, da mesma coalizão de Sergio Massa.

Um dado que chama a atenção é a elevada taxa de ausentismo. Os 26% de eleitores empadronados que não compareceram às urnas foram os responsáveis pela maior porcentagem de ausentes numa eleição desde a redemocratização. A crise econômica e a desconfiança com os partidos/frentes tradicionais e a pouca expectativa com o novo-velho discurso de Javier Milei não empolgou a quase 30% dos eleitores. Além disso, esse número seria a terceira força na eleição, superando inclusive o Juntos por el Cambio, direita com história secular no país. O ausentismo é, também, um sintoma da crise global das democracias representativas e do Estado de bem-estar social.

Interpretação dos resultados:

O voto no Milei nunca foi um voto em seu projeto completo e muito menos um apoio incondicional ao seu campo politico. Sempre se tratou de um voto marcado pela desesperança e bronca popular, um voto rebelde em alguém que denuncia a casta política (ainda que faça parte dela) e uma tentativa desesperada de estancar a 

crise econômica que assola os “hermanos”. É sempre importante lembrar o teor histórico da crise econômica argentina que tem sua origem no governo militar e se aprofunda nos governos neoliberais dos anos 90/2000 e com o governo de Mauricio Macri (2015-2019). O peronismo tampouco foi capaz de solucionar o problema, o atual presidente Alberto Fernandez e seu atual ministro de economia e candidato a presidente do peronismo, entregarão o país com uma inflação que passa os 120% e uma forte desvalorização do peso. A crise econômica é o principal problema da Argentina e na insuficiência do governo peronista, o discurso extremista de Milei ganhou força.

O voto no peronismo, mais precisamente em Sergio Massa, tampouco significa um apoio incondicional ao Massa e ao seu projeto – que é um projeto de acordos com o FMI e de mais ajuste – mas bem significa um voto anti-Milei, um apelo democrático contra a extrema direita que o candidato do peronismo conseguiu capitalizar. A reserva democrática argentina, o trabalho de memória sobre a ditadura militar, principalmente, frearam o avanço da extrema direita, pelo menos momentaneamente. Mas não nos podemos deixar enganar, Massa representa a direita do peronismo e não há, ainda, uma empolgação generalizada frente a sua campanha, não é um dirigente sindical. O jogo segue aberto e a eleição não está ganha apesar do alívio momentâneo de perda de força do candidato fascista.

A crise da democracia representativa na Argentina, como em todo o Brasil, afetou, principalmente, a direita tradicional. A coalizão Juntos por el Cambio foi um fracasso eleitoral, tendo em vista todos os recursos que manejam. Os dois partidos principais que compõe a frente – Unión Cívica Radical (UCR) e Propuesta Republicana (PRO)  – estiveram em crise durante toda a campanha. Agora, tendo em vista os candidatos que disputarão o segundo turno, a crise aumenta e se mostra cada vez mais difícil de se estancar. Por um lado uma ala mais democrática do PRO e a UCR dizem “Milei no”, enquanto que outra parte significativa, principalmente do PRO, incluindo o nome que representou a coalizão eleitoralmente (Patrícia Bullrich), já afirmaram que vão se juntar à necropolítica e declararam apoio a Milei. Entre os principais representantes da ala que apoia a Milei está o ex presidente Mauricio Macri, responsavel pela contração de uma dívida ilegítima e ilegal com o Fundo Monetario Internacioal. Macri é representante, também, da crise interna do Juntos por el cambio, muitos dirigentes da UCR denunciaram pós resultado do primeiro turno que ele jogou mais para Milei do que para Bullrich. Além disso, Macri exerce forte influência sobre Milei, ambos compartilham a mesma cartilha econômica, responsável por colocar metade do país em situação de pobreza. Assim, podemos afirmar que se escreve Milei, mas se pronuncia Macri. São muito parecidos, mas Milei ainda consegue mover, pelo menos de forma mais explícita, ideias anti-democráticas.

Diante de tanta polarização e com a democracia em risco, a esquerda obteve uma votação pouco expressiva. Ainda assim, conseguiu manter o percentual de eleitores das últimas eleições e, no âmbito parlamentar, conseguiram obter uma boa votação. Pela primeira vez a esquerda Argentina vai ter 5 deputados nacionais, uma grande trincheira na luta de classes de um país com uma conjuntura tão complexa. Infelizmente, a esquerda ainda não conseguiu se apresentar as massas como uma alternativa na Argentina, e num cenário de polarização as votações não chegam a representar a influência que exercem nos movimentos sociais, movimentos de bairro e na capacidade de mobilização.

De frente ao segundo turno:

Milei acena a todos e o discurso anti-casta, muito forte e que levou muitos votos num outsider, caiu por terra (até para a esquerda ofereceu ministério, que respondeu “com Milei nao vamos nem na esquina”). A entrada dos setores mais “casta” do Juntos por el Cambio desestabilizou uma parte do partido de Milei. Essa semana uma deputada eleita e fiel militante do programa de Milei afirmou em rede nacional que abandonaria a campanha depois que o candidato se juntou à casta política do Juntos por el Cambio. 

Se bem que Milei sai com a derrota e Massa com a vitória, a eleição segue em aberto: Schiareti, Bullrich e Milei somam 60% dos votos numa eleição onde a régua se moveu para a direita – inclusive Massa não é a parte mais progressista do peronismo.

No Brasil já tivemos a experiência de um governo de extrema direita, que além de causar milhares de mortes e aprofundar a pobreza, provocou um enorme retrocesso na consciência política e de classe do povo brasileiro, situação que ainda é um obstáculo para a construção de uma saída real para a crise e a profunda desigualdade social. Por isso defendemos o voto crítico em Sergio Massa contra Milei, ainda sabendo que seu governo representará ajuste ao povo argentino.

É necessário derrotar culturalmente a extrema direita e o negacionismo antidemocrático de Milei. E, para isso, o terreno eleitoral não é suficiente. É preciso ocupar as ruas e contra o retrocesso, retomar a confiança do povo com políticas de massas, apoiando uma saída pela esquerda e anti-capitalista. Nosso contra-ataque deve ser nas ruas para além das urnas.


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Pedro Micussi