Prisões seguirão a lógica do lucro
Privatização do sistema carcerário é pauta de audiência pública no Rio Grande do Sul
Foto: MPRS/Divulgação
A privatização do sistema carcerário ganhou força com o Decreto 11.498, editado pelo governo federal. No Rio Grande do Sul, o governador Eduardo Leite já vinha operando neste caminho, e agora com mais força. Para combater este modelo, que significa transformar o encarceramento em um grande e lucrativo negócio, foi realizada uma audiência pública sobre a privatização do sistema carcerário no Rio Grande do Sul. A solicitação foi feita pelos deputados estaduais Luciana Genro (PSOL) e Jeferson Fernandes (PT) e aprovada na Comissão de Cidadania e Direitos Humanos.
A audiência teve como objetivo debater a privatização do presídio de Erechim, a primeira parceria público-privada do sistema carcerário no estado. Um leilão no mês passado definiu a concessão a uma empresa privada dos serviços de construção, manutenção e apoio à operação desta nova penitenciária. Dias depois, a empresa foi desclassificada por não cumprir o edital, mas com a oportunidade de apresentar a documentação necessária no prazo.
Dados trazidos pela pesquisadora Christiane Freire apontam que os custos das unidades prisionais terceirizadas do país partem do valor de R$3,8 mil por preso a cada mês; todavia, os números de Erechim se mostram superfaturados.
“Sairá quase R$ 7mil por preso! Em 12 meses, são R$ 8,4 milhões se a cadeia estiver lotada e em 30 anos serão R$ 2,5 bilhões”, denunciou.
Dentre os encaminhamentos tirados pelos presentes, está o requerimento ao Ministério Público de Contas e ao Tribunal de Contas para que se fiscalize o negócio em andamento, com a garantia de transparência no processo. Ainda, a construção de um manifesto a ser assinado por autoridades gaúchas denunciando o decreto federal 11498, que abre a possibilidade das privatizações, bem como a construção de um relatório com dados sobre as experiências nefastas das parcerias público-privadas em outros estados.
“Acredito que quando trazemos esse tema ficam evidentes tantas outras questões que fazem parte do drama que é o sistema prisional. O sistema prisional, a justiça penal do Brasil, são extremamente injustos, seletivos e reprodutores das desigualdades da sociedade. Na busca para evitar a privatização, estamos levando em conta todo o contexto, com a consciência de que a privatização não tem por objetivo resolver os problemas, mas abrir um leque de negócios, com a mercantilização da vida,” declarou Luciana Genro.
A deputada federal Fernanda Melchionna destacou que o decreto federal permite a terceirização da segurança, mas também da educação e da saúde pública, relatando que o PSOL propôs a revogação da medida.
“Se for de fato privatizada, a prisão seguirá a lógica de lucro, atingindo em especial a população preta periférica. Precisamos de um movimento social e político para reverter a o processo de hiperencarceramento em massa visando o lucro para determinadas empresas”, denunciou a parlamentar, que colocou seu mandato à disposição.
A co-deputada em São Paulo, Karina Correia (PSOL) compartilhou a realidade vivenciada pelo seu estado no que tange o sistema carcerário e destacou que essa luta precisa ter o antirracismo como base, uma vez que a maioria da população carcerária é formada por jovens negros e periféricos.
“É preciso dar nome para o que acontece com o sistema prisional: presídios são as novas senzalas. Precisamos debater não só quanto custará para o Estado, mas o impacto na vida dessas pessoas, fora ou dentro das cadeias”, finalizou.
Profissionais contra a parceria pública-privada
Christiane Freire complementou afirmando que o governo Leite aproveitou a oportunidade, mas o problema real é o decreto do governo Lula, que permite não só a privatização do sistema prisional, como das áreas da saúde e educação, por exemplo. Para ela a situação vai em encontro da teoria do encarceramento em massa, da filósofa Angela Davis, que reflete sobre as cadeias serem cada vez mais superlotadas, visando apenas o lucro gerado por cada preso.
Representando a Defensoria Pública do Estado, a defensora Mariana Py Muniz pontuou os diversos problemas já relatados em outros estados, como o monopólio da defesa dos apenados através de contratação da própria empresa gestora dos presídios, a ausência de autonomia dos profissionais, além de registros de presos trabalhando mais de 24 horas sem qualquer remuneração. Em nome da Associação das Defensoras e dos Defensores Públicos do Estado do Rio Grande do Sul, Mario Silveira Rosa Rheingantz reforçou o compromisso destes profissionais na luta contra essas parcerias que têm sido tão danosas no restante do país.
O presidente do Sindicato da Polícia Penal (Sindppen-RS), Saulo Basso, reforçou o compromisso dos profissionais penais contra esse projeto.
“Precisamos que essas questões sejam tratadas com seriedade, considerando não apenas o impacto financeiro, como também nas carreiras dos servidores,” explanou.
“Esse é o momento mais crítico do sistema penitenciário do Rio Grande do Sul, em que se observa a destruição de um serviço público como um todo, que atinge em cheio a questão penal”, afirmou Rogério Motta, pela Associação dos Técnicos Penitenciários (Apropens).
“O sentimento é de que somos tratados pelo Estado e sociedade como os próprios prisioneiros. Nós sabemos o que vai gerar de efeito social, de trauma para as famílias e para a própria sociedade um sistema prisional sem perspectiva de ressocialização e garantia dos direitos humanos destas pessoas privadas de liberdade,” declarou Luciane Engel, ex-presidente da Apropens e psicóloga no sistema prisional.
Ana Paula de Lima, que faz parte do Núcleo do Sistema Prisional do Conselho Regional de Psicologia, fez um apelo à comunidade, destacando que não são apenas números escandalosos que a privatização escancara, mas a vida de pessoas que estão em jogo: “as pessoas vão parar no sistema prisional a partir de um projeto para a juventude periférica, extensão do processo de escravização do nosso país. Por que existem países fechando prisões e nós queremos prender mais?”, questionou.
Leandro Walter, representando o Conselho Regional de Psicologia complementou, reforçando que a psicologia tem o compromisso da defesa irrestrita dos direitos humanos e reivindicou a ampliação das equipes técnicas multiprofissionais, buscando a ressocialização e o desencarceramento.
A psicóloga Ana Paula de Lima fez um apelo: “por que existem países fechando prisões e nós queremos prender mais?”
Comunidade envolvida nessa luta
Rodrigo Sabiá, do Reciclando Vidas, refletiu que a mesma porta que a sociedade fecha para ex-apenados, o crime abre do outro lado.
“É preciso também pensar no egresso e em medidas para que essas pessoas não voltem para dentro da prisão, para que tenham oportunidades, para de fato acabar com esse ciclo que mata ou prende os jovens pretos periféricos”, colocou.
Capelão prisional que ficou detido por 29 anos, Lacir Ramos contou sua trajetória e o desejo de uma real ressocialização, com oportunidade de estudar e progredir. Salientou a importância de se pensar a estrutura das casas prisionais de forma que contemplem essa ideia, contando com salas de aulas e para cursos profissionalizantes, buscando a libertação não somente das grades, mas da mente.
A Irmã Marta Maria reafirmou a posição da Pastoral Carcerária, que se colocou contra qualquer tipo de mercantilização que não seja do sistema, mas das pessoas.
“Quando tornamos a pessoa mercadoria, devemos nos perguntar que tipo de civilização temos e fazemos parte. É preciso pensar, ainda, no sucateamento das carreiras dos profissionais penais e nas políticas de desencarceramento e ressocialização,” disse.
O Conselho Estadual de Direitos Humanos do RS, o Comitê Estadual Contra a Tortura, a Comissão de Direitos Humanos da OAB, o Conselho Regional de Psicologia e o Sintec também estiveram presentes e se uniram no combate às parcerias público privadas em presídios visando o lucro, a superexploração e a diminuição de investimento para a ressocialização das pessoas privadas de liberdade.