‘Um convite à ação, à mobilização, e à novas leituras’
Fernanda Melchionna lança “Tudo isso é feminismo?” neste sábado, na Feira do Livro de Porto Alegre
Fotos: Divulgação
Receber provocações não é algo lá tão surpreendente no dia a dia da deputada federal Fernanda Melchionna (PSOL-RS). Em uma Câmara de Deputados coalhada de parvos, misóginos, racistas e machistas, volta e meia ela ouve um “chiste” e responde com um petardo. “Mulher de faca na bota”, diriam os gaúchos.
Mas nem toda a provocação é uma afronta e nem toda a resposta é furiosa. É o que prova “Tudo isso é feminismo? – Uma Visão Sobre Histórias, Lutas e Mulheres”, que marca a estreia da parlamentar como escritora. Publicada pela Editora de Cultura, a obra será lançada na Feira do Livro de Porto Alegre neste sábado (11), às 19h.
Fernanda conta que se sentiu desafiada quando o escritor Caio Riter, um dos responsáveis pela Coleção Inquietações Contemporâneas – que trata de vários temas de forma introdutória e didática – a convidou para escrever sobre um tema que ela conhece, estuda e milita desde os primeiros anos de juventude.
“Eu me senti desafiada, porque, óbvio, foi um trabalho conciliar a vida de atividades, de militância, na câmara, as agendas aqui [no Rio Grande do Sul], com a escrita de um livro. Mas eu aproveitei, já que fui convidada e disse que ia fazer, para sintetizar um pouco do que eu estudei ao longo dos anos”, relata.
No livro, Fernanda dialoga com diversos autores para compor um cenário que descreve como as mulheres sobreviveram através dos séculos em uma sociedade patriarcal; como e onde brotou o feminismo, suas transformações e a ameaça que hoje representa para conservadores e a extrema direita.
Na entrevista a seguir, a deputada fala sobre o livro, e troca reflexões sobre política, capitalismo e feminismo.
Revista Movimento – Como sua experiência de militante ajudou a dar forma ao livro?
Fernanda Melchionna – Comecei a militar há muito tempo. Num tempo em que o feminismo, digamos, não estava em alta. Claro que sempre teve mulheres feministas, mas nós não estávamos, digamos, no interregno entre os assensos de luta das mulheres e uma situação mais de refluxo no auge do neoliberalismo e tudo que vivi naquela época. Comecei a estudar com as minhas companheiras de organização do MES e, depois de movimento estudantil, na universidade e fora dela. E quando há essa virada, lá nos anos de 2013 no Brasil – que foi parte de uma virada mundial -, evidentemente, aqueceu o coração e muita produção teórica foi sendo feita, em várias vertentes do feminismo. E eu aproveitei para sintetizar essa experiência com uma visão. Por isso que dei o título “Uma visão sobre histórias, lutas e mulheres”. Embora eu seja fidedigna com momentos importantes e personalidades importantes, eu tenho uma visão política de um feminismo de um feminismo classista, de um feminismo marxista e a defesa de uma totalidade. Então, por isso, a gente sintetizou num debate introdutório do feminismo, mas também com uma visão sobre histórias, lutas e mulheres.
O livro está dividido em alguns capítulos. Primeiro, as notas sobre o patriarcado, que acho que é importante para a gente pensar a origem e refletir sobre essa história de opressão contra as mulheres. Então eu pego o Engels, que teve uma contribuição enorme do ponto de vista do livro “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”. Depois eu pego a Gerda Lerner, que pesquisou 20 anos para publicar o livro sobre a questão da opressão [“A Criação do Patriarcado: História da Opressão das Mulheres pelos Homens”], e faz uma compilação histórica muito boa. Aí, eu pego vozes femininas da história, que tem um peso da narrativa ser contada por mulheres das altas classes, talvez num início do feminismo liberal, que teve sua contribuição no sentido de propor o tema de mulheres – como Olympe de Gouges, pós-Revolução Francesa, Mary Wollstonecraft – mas ao mesmo tempo, não quer dizer que foram as únicas mulheres que lutaram. Ao contrário. As mulheres participaram da Revolução Francesa, na Revolução Russa e eu trago um pouco essa participação; pego as ondas do feminismo, primeira, segunda, terceira e quarta ondas, e coloco também os problemas que tem na produção teórica que problematizam essas ondas. como se [o movimento] fosse estático e só naqueles momentos houvesse tido lutas das mulheres, ignorando movimentos desiguais e combinados em outras partes do mundo. Então essa ideia de uma história oficial ser contada sempre da perspectiva dos países da Europa, centralizada sempre em mulheres das classes altas – sem as mulheres trabalhadoras, sem as negras, sem as latinoamericanas – eu vou problematizando. E a quarta onda, que começa em 2013, e tem um debate sobre se ela continua viva. Eu acho que ela continua latente e o livro trabalha com essa hipótese.
Revista Movimento – Como o livro apresenta as dicotomias como, por exemplo, as diferenças entre o feminismo marxista para o feminismo liberal?
Fernanda Melchionna – Eu falo no livro que eu definiria o feminismo liberal, hoje, como feminismo neoliberal. São representações dos que defendem a manutenção desse modo de produção capitalista. Ou seja, mulheres que defendem mais igualdade desde que seja no modelo meritocrático, com mais mulheres explorando mulheres no mercado do trabalho. “Faça por você mesma”, como diz um dos slogans desse tipo de feminismo; e, ao mesmo tempo não vão à raiz do problema que é também um modo de opressão, de exploração, que é o capitalismo, que nos mantêm subalternizadas justamente para aumentar a superexploração sobre a maior parte da classe trabalhadora, que são mulheres. E se pegar ainda as intersecções de opressão, às mulheres negras mais ainda.
É evidente que a opressão das mulheres não nasceu com o capitalismo, mas foi potencializada por ele para manter uma lógica de superexploração, pagando menos para mulheres que exercem a mesma função dedos homens, de superexplorar ainda ainda mais as mulheres negras em comparação com os homens brancos e, ao mesmo tempo, fazer uma divisão sexual do trabalho dentro de casa extremamente funcional ao capitalismo. Eu acho que é a Silvia Federici que fala que é uma lógica o trabalho doméstico é uma fábrica de mão de obra, porque no capitalismo a mão de obra é a mercadoria mais valiosa. Tem que haver superexplorados para ter a mais valia. Quem é que cuida, quem é que cria, quem é que gera? Por que o trabalho não pago, tido como trabalho doméstico, é responsabilidade das mulheres? O trabalho mal pago das trabalhadoras domésticas – a maioria, negras -, as cuidadoras? A gente sabe que tudo isso é extremamente funcional ao capitalismo. Então, o feminismo classista é fundamental para debater a questão da igualdade real, e a igualdade real também só pode vir estruturalmente com um modo de produção que seja baseado na solidariedade, na igualdade, nas necessidades dos povos e não na exploração pela classe minoritária dos capitalistas contra a ampla maioria da população. Por isso, eu termino falando do feminismo dos 99% contra 1%.
Revista Movimento – As brasileiras se uniram muito nas eleições de 2018 pelo #EleNão e foram determinantes na derrota de Bolsonaro nas urnas no ano passado. Como você avalia a união feminina na luta por direitos no Brasil?
Fernanda Melchionna – Acho que essa expressão da luta das mulheres no Brasil é parte da nova onda de luta das mulheres que começa em 2013, no Brasil com mais peso, em 2015.No enfrentamento ao Bolsonaro, se pode ver que as mulheres foram hegemônicas ou foram a maioria na contestação de um projeto de negacionista e de morte. E tem várias condicionantes, como os impactos da crise econômica. Em 2008, ela afetou diretamente as mulheres porque se elas são as que menos ganham, quando há um rebaixamento global de salários, aumento do custo de vida, desemprego, pandemia isso as afeta mais. E atingiu mais as mulheres tanto do ponto de vista da violência quanto do ponto de vista da perda de trabalho para poder cuidar dos filhos. Há uma sobrecarga quando a crise é pesada e isso recai de forma pior sobre as mulheres, que passam a ser parte da resistência contra essa crise e as expressões mórbidas geradas pela crise do capitalismo. Entre elas, a extrema direita, se a gente pensar que a extrema direita é além de uma reação conservadora a todas as nossas conquistas, também é uma expressão do capitalismo mais virulento, uma saída reacionária de fechamento das liberdades democráticas para impor de novo um modelo de acumulação dos grandes capitalistas. E as mulheres foram linha de frente dessa resistência, e não só no Brasil. Há muitos outros exemplos internacionais, como o movimento das mulheres nos Estados Unidos contra o Trump. Um dia depois da eleição do Trump, elas fizeram uma passeata gigante; se a gente pegar a convocatória do 8 de março de 2017, que teve expressão em mais de 50 países. Em alguns lugares, e conseguiu fazer uma greve, mas só o fato de haver mobilizações massivas, como foi no Brasil como o #EleNão, a maior manifestação feminista da nossa história, acho que podemos apontar o feminismo como o motor da resistência. E além de resistência, porque, inclusive, a gente conseguiu vencer eleitoralmente o Bolsonaro, mas precisa derrotar o bolsonarismo politicamente, e as mulheres também terão que dar o passo adiante. E para ser o motor da construção de um programa de totalidade para o futuro da humanidade, diante de aquecimento global e uma série de problemas humanitários gerados por essa lógica capitalista e opressora. As mulheres têm que ser ponta de lança da construção de um feminismo 99%. Para que seja um feminismo real, tem que ser um antirracista, antitransfóbico, tem que ser um feminismo latinoamericano, tem que ser um feminismo indígena, tem que ser um feminismo classista e tem que ser um feminismo que tem um programa de totalidade para o conjunto das mulheres da ampla maioria da população com os homens que também são explorados por esse modelo de nominação capitalista.
Revista Movimento – Você interpreta o recrudescimento do conservadorismo sobre questões femininas, como liberdade reprodutiva, por exemplo, como uma resposta a “ameaça” do feminismo?Fernanda Melchionna – Eu acho que por um lado a extrema direita é uma reação conservadora às nossas conquistas. Uma reação conservadora. A extrema direita se expressa organicamente, né? Os machistas que não aceitam o avanço das mulheres, os lgbtfóbicos, os racistas… Enfim, são os pontos de vista da composição orgânica desse movimento da extrema direita reacionária. Claro que, eleitoralmente, tem muita gente que comprou gato por lebre. Eu digo sempre: não é que em 2018 todos os eleitores do Bolsonaro eram machistas racistas e LGBTfóbicos, mas todos os machistas racistas e LGBTfóbicos eram eleitores do Bolsonaro. Porque, claro, houve uma confusão ali combinada com uma crise econômica profunda, uma crise de representatividade com a democracia liberal e uma esquerda que foi adaptada ao sistema político vigente. Como diz Gramsci, quando o velho ainda não morreu e o novo ainda não nasceu os elementos mórbidos aparecem como expressão política. Bolsonaro é isso. Mas a extrema direita é uma reação conservadora e, ao mesmo tempo, que eles são essa reação conservadora eles tentam retroceder em todas as nossas conquistas. Na mesma entrevista em que o [deputado] Gustavo Gayer foi super racista falando sobre a África, e foi muito criticado, ele disse que o feminismo é a pior coisa que aconteceu e precisa ser derrotado, porque incluiu nas mulheres a ideia de que a carreira é mais importante que a família. Eles organicamente são uma reação conservadora às nossas conquistas porque têm uma visão reacionária da sociedade porque eles também sabem da potência do feminismo para enfrentar a extrema direita e construir uma outra sociedade. Por isso, tentaram criminalizar o meu mandato e das companheiras que enfrentaram o marco temporal; por isso, eles sempre miram no movimento de mulheres, nas mulheres que se destacam, nas mulheres que defendem mulheres. Mas se eles sabem a nossa força, nós também temos de saber a nossa força. Nós elegemos o Lula para termos liberdades democráticas para lutar, mas o movimento de mulheres tem de seguir lutando para não retroceder no Estatudo do Nascituro, mas também para avançar, para discutir a questão da descriminalização do aborto num país em que mulheres pretas e pobres morrem diante de abortos ilegais e inseguros e as mulheres ricas têm condição de fazer; temos de seguir enfrentando o machismo e a misoginia em um país em que a cada seis horas uma mulher é morta, vítima de feminicídio; seguir enfrentando a cultura do estupro que, lamentavelmente é corriqueira. E você deve ter visto os nudes falsos feitos em um colégio particular em que os alunos diziam que nada aconteceria com eles porque eram brancos e ricos e atacaram 22 meninas. E, além disso, seguir enfrentando um modelo que faz com que as mulheres ainda recebam menos em um país que teve um rebaixamento global dos salários com Reforma Trabalhista, Reforma da Previdência, com uma agenda econômica antitrabalhador. Por isso considero que o livro é um convite à ação, um convite à mobilização, e um convite à novas leituras.