Um balanço do ano de 2023
Palestinians inspect the damage following an Israeli airstrike on the El-Remal area in Gaza City

Um balanço do ano de 2023

No último editorial de 2023, resumimos, em 9 tópicos, os temas marcantes e desafiadores que envolveram as principais disputas políticas.

Israel Dutra 22 dez 2023, 19:01

O ano está terminando em meio a muitas batalhas que foram dadas e outras que acabam de começar. A força da manifestação contra as medidas do ultrarreacionário Milei indica a dialética entre tensão e esperança que percorreu 2023 e será ainda mais amplificada no ano que virá. No último editorial de 2023, resumimos, em 9 tópicos, os temas marcantes e desafiadores que envolveram as principais disputas políticas.

1) O ano mais quente da história e os sinais do colapso socioambiental

A grande marca de 2023, para bilhões de seres humanos, foi o verdadeiro caos socioambiental que segue se impondo na vida cotidiana. Meteorologistas em todo o mundo apontam que este foi o ano mais quente da história de que se tenha registro. A combinação entre os fenômenos conjunturais como “El Niño” e o novo salto no aquecimento global, agora chamado de “fervura global”, resultaram em acontecimentos de largo alcance no Brasil e no mundo.

Em nosso país assistimos a três graves níveis de devastação: a destruição dos biomas, iniciada no período Bolsonaro, e que segue se desenvolvendo pelas mãos do chamado “agrobolsonarismo”, num país onde o número de cabeças de gado é maior do que o da população inteira segundo o último censo; o encontro entre “tragédias” causadas por chuvas e enchentes, como as que conhecemos ao longo do ano no Rio Grande do Sul ou diretamente crimes ambientais, como o legado da Braskem que destruiu a vida social em quase um quarto da cidade de Maceió; e a onda de calor que quebrou os paradigmas anteriores da temperatura e do clima, gerando dias insuportáveis para a maioria da massa trabalhadora, ainda desacostumada com o novo “normal”. Não há saída sem uma mudança drástica, nas condições de vida e da política. A COP28 em Dubai foi insuficiente, em relação à ampulheta do colapso total, restando aos que se preocupam com a vida na Terra combater o negacionismo da extrema-direita e levantar uma alternativa ao capitalismo verde e ao extrativismo campista. Temos até a COP30 na Amazônia brasileira, um exíguo prazo para levantar um programa de emergência que assente as bases para um ecossocialismo de combate e de massas, que fale e alcance aos milhões.

2) Um ano de guerras e um genocídio em curso

As portas da barbárie estão sendo abertas em Gaza e na Cisjordânia. A ofensiva sionista de direita representa um salto na política de guerra, pois é ao mesmo tempo uma trincheira ideológica e internacional da extrema-direita, com Netanyahu, Trump e os seus satélites, promovendo uma guerra cultural para afirmar sua posição supremacista, e uma das maiores limpezas étnicas da história recente contra o povo palestino, com a cobertura dos governos ocidentais e o apoio aberto de Biden. Desobedecendo a todas as resoluções e recomendações da ONU, o Estado de Israel está disposto a ir por uma “solução final”, ocupando Gaza por terra e ampliando a presença de colonos ilegais na Cisjordânia para concretizar o sonho de Netanyahu do “Grande Israel”. Já foram assassinados mais de vinte mil palestinos, em sua ampla maioria crianças e mulheres, causando revolta e comoção nas massas do mundo, sem entretanto uma ação decidida dos principais governos do mundo com fins de parar o massacre. Uma derrota ou vitória de Israel condicionará os próximos anos no mundo: de um lado, um novo momento na luta anticolonial, rebelando as centenas de milhões de imigrantes do mundo a serviço da causa da liberdade; do outro, a “banalização do mal”, em uma versão ainda mais perversa, autorizando um massacre de todo um povo. O governo brasileiro deve mudar de postura e finalmente encabeçar a ruptura de relações e contratos com Israel, convocando uma reunião ou frente de países para isolar os assassinos que mantém a ofensiva mesmo nos últimos dias do ano.

No outro teatro de operações, a invasão russa da Ucrânia, a situação segue dramática. A heroica resistência ucraniana segue isolada internacionalmente, em parte pela permanência do pensamento campista na esquerda e centro-esquerda internacional, que dirigem entidades e sindicatos e, em parte, pela hipocrisia das grandes potências como os Estados Unidos, que cedem à chantagem da ala direita dos Republicanos que teimam em isolar Kiev. Acreditamos que segue atual a resolução aprovada na última reunião da IV Internacional e adotada por unanimidade na VIII Conferência Nacional do MES, que conclama a luta em apoio ao povo palestino, ucraniano e contra o colapso ambiental.

3) O despertar da classe nos Estados Unidos

Até a imprensa tradicional teve de destacar que, nos Estados Unidos, coração do capitalismo mundial, há uma importante mudança na consciência de classe. O país onde a ideologia liberal está tradicionalmente mais arraigada, com força da ética individualista e empreenderora, 2023 conheceu um ápice de greves e ações coletivas. A onda de greves gerou uma enorme solidariedade, arrastando, de forma inédita, até Joe Biden para um piquete operário. Houve, ainda, a greve de Hollywood, envolvendo roteiristas e atores, fazendo com a que onda de paralisações chegasse à indústria cultural de massas: um pronunciamento em defesa do trabalho, colocando no centro da discussão o problema da Inteligência Artificial e suas consequências. As greves chegaram aos centros das novas formas de trabalho, com a juventude trabalhadora do Starbucks e da Amazon realizando suas primeiras experiências na luta de classes. E, por fim e mais importante, a grande greve da indústria metalúrgica a que nos referíamos, com novos e radicalizados métodos, deixando uma bandeira para toda a classe trabalhadora estadunidense, influenciada pelo reformismo nos seus setores mais organizados e pelo trumpismo nas camadas mais atrasadas. Uma nova direção sindical começa a ser testada e os resultados vitoriosos indicam o caminho da consciência e solidariedade de classe.

Esse tema se relaciona com outros dois: a força de Trump e da extrema-direita, e a disputa interimperiaralista, no âmbito geopolítico, com a China e o “campo” que ela busca liderar. A ação do movimento estudantil em solidariedade à Palestina, que teve nos judeus antissionistas um motor decisivo, também confere à sociedade estudanidense um dinamismo político à esquerda, como há muito não se via. O ano de 2024 terá eleições, mas também fóruns de debate e ação, como o Labor Notes, onde a esquerda radical militante segue trabalhando sobre as bases operárias, com nosso grupo irmão “Pão e Rosas”, atuando por dentro do DSA e dos sindicatos.

4) Extrema direita, resiliente e presente

O fenômeno da extrema direita é profundo. Não se pode afirmar que seja efêmero e, menos ainda, que apenas eleitoralmente poderá ser derrotado e banido. 2023 comprovou nossas teses, quando polemizamos com setores da centro-esquerda que afirmavam que, no terreno eleitoral e com alianças com o establishment, dderrotaríamos Bolsonaro no Brasil e a extrema-direita no mundo. A vitória de Milei na Argentina, a rede de apoio ao massacre em Gaza (com sinistras ramificações que vão das big techs aos governos), os avanços da extrema direita na Europa e a liderança de Trump nas pesquisas nos Estados Unidos são exemplos vivos do que estamos falando. Aqui no Brasil, o bolsonarismo segue vivo, apesar de enfraquecido.

Compreender que a extrema direita é um fenômeno oriundo da desilusão com as alternativas sistêmicas e a negação dos avanços democráticos é vital para melhor enfrentá-la. A responsabilidade dos sucessivos fracassos de governos ditos “progressistas” é flagrante na popularidade dos líderes neofascistas no mundo. O exemplo argentino ilustra muito bem essa condição. Sob os escombros da tragédia peronista, Milei utilizou uma prédica anticasta, populista e demagógica, para angariar o sentimento massivo de revolta e indignação. Queremos avançar para a realização de uma ampla conferência antifascista e contra a extrema direita.  

5) As duas derrotas de Bolsonaro (eleitoral e em 8 de janeiro)

O ano começou com um respiro democrático essencial. Bolsonaro foi derrotado nas eleições de outubro de 2022, dando fim ao pesadelo que nos governou durante quatro anos. Essa foi uma derrota real da extrema direita, evitando que, num novo mandato, o aparelho de Estado fosse utilizado para fechar o regime. Proporcional ao tamanho da derrota foi o sentimento de vitória encarnado pelos milhões que elegeram Lula para livrar o país do risco autoritário. Alguns dias após a posse de Lula, a imitação barata e caricata do ataque ao Capitólio levou alguns milhares de neofascistas a Brasília, numa tentativa de invasão dos poderes, contida após algumas horas. O 8 de janeiro, uma intentona bolsonarista, deixou a extrema direita ainda mais na defensiva (ainda que tenha significado um grave alerta, também, de até onde um setor está disposto a ir), abrindo caminho para fazer valer a palavra-de-ordem gritada na vitória e na posse de Lula: “Sem anistia”.

O ano seguiu, com a extrema direita buscando protagonismo, no congresso e na vida política, sem grande capacidade de levar milhares às ruas como em outros momentos.  A CPI do MST foi o principal ponto de embate, sendo escalado Ricardo Salles, à época com pretensões eleitorais, para liderar o bolsonarismo na Comissão Parlamentar de Inquérito. As investigações sobre desvio de dinheiro e corrupção também avançaram sobre a o clã Bolsonaro, deixando Jair e seu entorno mais próximos de condenação. Infelizmente, a maior parte do movimento social não encampou uma campanha agitativa para levar Bolsonaro para a prisão. Mesmo a UNE, em seu congresso, na resolução de conjuntura aprovada, sequer mencionou tal bandeira. É dever da esquerda combater o bolsonarismo não só nas urnas, mas principalmente nas ruas, para levar para o banco dos réus Bolsonaro, Pazuello e a malta de golpistas que responde em liberdade, bem como punir e isolar os setores políticos e empresariais que financiam os genocidas.

6) A CPI do MST como palco das principais contradições

O grande embate público do ano, em um Congresso cada vez mais desprestigiado e marcado por emendas e negociatas comandadas por Arthur Lira, foi a CPI do MST, aposta do Bolsonarismo para, a um só tempo, polarizar ideologicamente e perseguir os movimentos sociais que lutam no campo. A CPI reuniu mais uma vez os representantes do agronegócio e a extrema direita, num contexto de aumento dos conflitos no campo e avanço sobre direitos de quilombolas e de terras indígenas, como se viu na aprovação do “marco temporal”. O ataque ao MST foi uma tentativa de calar os movimentos sociais do campo e dar uma demonstração de força da extrema direita, apesar da derrota de Bolsonaro.

Apesar de muitos setores à esquerda não terem dado a devida importância para essa luta, a CPI terminou sendo uma grande derrota para o bolsonarismo. Sâmia Bomfim teve um papel destacado nessa luta e mostrou concretamente nossa política de luta contra a extrema direita e independência do governo. Não por acaso, foi escolhida como a melhor deputada federal do país em 2023 pelo júri e pelo voto popular do Prêmio Congresso em Foco.

7) O fiscalismo do governo e o ajuste de Haddad

O novo governo Lula revelou a continuidade de uma estratégia fiscalista e de austeridade com “arcabouço fiscal” de Haddad e a busca pelo “déficit zero” para atender à pressão da Faria Lima, das agências de rating e dos especuladores internacionais. Tal estratégia foi consagrada pela aposta num acordo para governar com Arthur Lira e o “centrão”, que mantiveram o sequestro do orçamento público e aumentam seu poder clientelista com dezenas de bilhões de reais em emendas parlamentares. Como consequência, espera-se em 2024 a discussão do fim dos pisos constitucionais de investimento em educação e saúde, enquanto outras medidas nefastas já estão no cardápio do governo, como a ausência de reajuste para o funcionalismo, a priorização de PPPs como forma de promoção do investimento e até mesmo a privatização de presídios.

Diante da fragilidade da esquerda e de um adesismo muitas vezes acrítico à orientação do governo, levantaram-se vozes importantes, como a do economista David Deccache, que tem se esforçado para esclarecer o ativismo sobre o conteúdo das medidas do governo. Fernanda Melchionna e Sâmia Bomfim atuaram em conjunto com Glauber Braga, na bancada do PSOL, no enfrentamento a essas medidas e na luta para que o partido tenha uma política independente.

8) São Paulo entre privatizações, lutas e alternativas

No contexto nacional, vale destacar que São Paulo tem sido um importante epicentro da luta política, já que o governo estadual transformou-se na principal trincheira bolsonarista do país, por meio do qual Tarcísio de Freitas pretende construir-se como uma alternativa para a eleição de 2026, especialmente após a inabilitação de Bolsonaro. Para isso, busca impor um plano de “choque” com privatizações e enfrentamento aberto ao serviço público, aos trabalhadores e ativistas. 2023 também trouxe, ao mesmo tempo, importantes lutas contra os ataques do governo, especialmente dos trabalhadores do Metrô, da CPTM e da Sabesp, entre outras categorias, que encabeçaram greves e manifestações contundentes. Trata-se de um conflito que seguirá no próximo ano. Não por acaso, o governo Tarcísio organiza a perseguição dos ativistas, como as demissões de dirigentes sindicais metroviários e a perseguição aos estudantes que se manifestaram na ALESP durante a votação da privatização da Sabesp.

Também em São Paulo, o PT está debilitado e a disputa municipal de 2024 será muito importante, tanto que Lula e Bolsonaro têm-se dedicado diretamente a influenciar na montagem nos palanques da capital. Por tudo isso, a derrota programática do neoliberalismo e do bolsonarismo no estado mais rico e populoso do Brasil é uma tarefa imprescindível.

9) Conclusão: construir uma alternativa necessária

A principal alternativa construída nos últimos vinte anos também está em discussão. Em outubro, ocorreu o 8º Congresso Nacional do PSOL. As discussões mostraram a consolidação de uma ala que pretende vincular-se diretamente ao governo Lula e a sua política. Desse modo, o partido fica enfraquecido para ter uma intervenção independente, que se contraponha à falta de iniciativa para punir o bolsonarismo, à estratégia fiscalista e à relação com a direita parlamentar fisiológica, que tem marcado a orientação de Lula.

A situação política internacional e as contradições em curso, como buscamos mostrar aqui, não permitirão que tal equilibrismo siga por muito tempo e o governo enfrentará dificuldades para enfrentar a extrema direita em 2024 e 2026. Por isso, seguiremos lutando para colocar de pé uma alternativa contra a extrema direita e em defesa dos interesses do povo e dos trabalhadores. Faremos isso nas ruas, nos conflitos que virão e na montagem de nossas candidaturas a prefeito e vereadores em todo o país. 2024 será um ano de atividade concentrada e novidades, que buscam projetar o alcance das diversas ferramentas da Revista Movimento. Desejamos um ano novo de força e saúde para nossas/os leitoras/es com a certeza de que nos encontraremos nas lutas!


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Pedro Micussi