O naufrágio constitucional da extrema direita chilena
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O naufrágio constitucional da extrema direita chilena

A derrota da extrema direita na votação constituinte de dezembro passado manteve o impasse no cenário político do país

Karina Nohales 16 jan 2024, 09:50

Via Punto de Vista Internacional

Em 17 de dezembro, o Chile votou contra a proposta de uma nova Constituição elaborada por forças conservadoras de direita e de extrema direita. Assim, pela segunda vez em quatorze meses, naufragaram duas alternativas opostas para substituir a atual Constituição do país, que teve origem na ditadura de Pinochet.

Deve-se lembrar que o primeiro processo constitucional ocorreu entre outubro de 2020 e setembro de 2022, cuja origem remonta ao acordo assinado em novembro de 2019 pelos partidos políticos com representação parlamentar – com exceção do Partido Comunista -, como uma solução institucional acordada como resposta à gigantesca revolta social que estava ocorrendo no Chile naquele momento e cuja contestação colocou em risco todo o sistema político e as representações partidárias das últimas três décadas.

Nesse primeiro processo, houve um plebiscito inicial para consultar a população sobre se ela queria ou não uma nova Constituição e, em caso afirmativo, que tipo de órgão deveria redigi-la. Com cerca de 80% dos votos, prevaleceu o “eu aprovo” (uma nova constituição) e um órgão 100% eleito para redigi-la. Esse órgão, eleito alguns meses depois, foi composto de forma paritária, plurinacional e com a participação de representantes populares de setores sociais historicamente excluídos, que pela primeira vez participaram da elaboração de uma proposta de Constituição, impregnando-a de uma orientação marcadamente antineoliberal. Essa proposta foi rejeitada no plebiscito de 4 de setembro de 2022, com uma votação esmagadora de 62% contra ela.

Em um contexto de derrota eleitoral, de pós-pandemia e desmoralização dos contingentes sociais organizados, o presidente do país, Gabriel Boric, decidiu convocar um novo processo constitucional, desta vez de natureza mista: a proposta de uma nova Constituição seria redigida por um pequeno comitê de especialistas indicados pelo Congresso, e um órgão eleito poderia fazer modificações e sancioná-la. Esse segundo processo foi, em todos os sentidos possíveis, uma negação e um punição do processo anterior. O órgão eleito era composto por uma maioria de partidos de direita, com hegemonia da extrema direita, que fizeram da proposta uma espécie de retorno à versão original da Constituição de Pinochet de 1980, despojando-a das várias modificações que sofreu desde 1990 até hoje, durante a chamada transição democrática.

O processo ocorreu em um clima de descontentamento geral por parte da população, reforçado tanto por uma saturação de questões temáticas – que vários analistas chamaram de “fadiga constitucional” – quanto por um forte sentimento de descrédito em relação aos “políticos” em geral. Esse clima foi tão ou mais decisivo do que o próprio conteúdo da nova constituição proposta. Entretanto, é claro que o conteúdo também teve seu papel. Embora o texto contivesse uma série de normas alarmantemente regressivas, como a concessão de hierarquia infraconstitucional aos tratados internacionais de direitos humanos, o debate social se concentrou em algumas normas mais ou menos definidas de forma restrita, das quais as relacionadas às demandas feministas ocuparam o centro do palco.

Entre elas, a norma que consagrava a proteção da vida do nascituro e a norma que consagrava a não apropriabilidade da poupança previdenciária individual pelo Estado foram divulgadas com um particular sentido de alarme. Se a proposta de Constituição fosse aprovada, a primeira dessas normas implicava o risco certo de declarar inconstitucional o aborto por três motivos, que foi revogado em 1989 pela ditadura de Pinochet e somente restabelecido no Chile em 2017. A aprovação da segunda dessas normas implicava o risco certo de que a lei sobre o pagamento efetivo de pensão alimentícia – que entrou em vigor em 2022 -, que dá poderes aos tribunais de família para ordenar o pagamento de pensões devidas a partir da poupança individual de pensão do devedor, fosse inconstitucional.

Ambas as leis profundamente patriarcais, que constituíram um ataque frontal à autonomia econômica, corporal e de projeto de vida das mulheres e das gestantes, foram decisivas para o fracasso da proposta da extrema direita. De fato, o “Contra” à nova Constituição, que venceu por 55,7% dos votos, alcançou 70% dos votos entre as eleitoras com menos de 34 anos de idade. Trata-se de um segmento social cuja experiência de politização foi produzida no calor do ciclo feminista de massas que vem ocorrendo com força desde 2016 no Chile e cujo poder continua a se irradiar nessas conjunturas.

As forças institucionais recentemente apresentaram suas próprias interpretações do resultado. Por um lado, o presidente Gabriel Boric considerou encerrada qualquer nova tentativa de mudança constitucional nos dois anos restantes de seu mandato, alegando que, com o fracasso das duas propostas constitucionais – uma anti-neoliberal e outra neopinochetista -, os cidadãos rejeitaram a polarização e a divisão. Uma leitura perigosa, que tende a equiparar ambas as propostas constitucionais como expressões de “dois extremos”, em circunstâncias nas quais uma delas se conformava com os parâmetros elementares da estrutura internacional de direitos humanos, enquanto a outra os ignorava completamente. Aliás, uma leitura que suprime o caráter de classe que fundamentalmente diferenciou ambos os processos e ambas as propostas constitucionais, em nome de uma pretensa e falaciosa imparcialidade.

Por outro lado, os partidos de direita e de extrema direita foram os grandes perdedores. A extrema direita porque a proposta era deles, redigida por sua maioria. A direita tradicional, porque fez a sua própria proposta e mais uma vez ficou atrás da extrema direita. Juntas, elas tinham todos os recursos econômicos e toda a hegemonia de comunicação para vencer. Eles correram sozinhos e ficaram em segundo lugar. Em sua tentativa de disfarçar a derrota, esboçaram a história de que, nesse último plebiscito, os cidadãos ratificaram a Constituição de Pinochet pela segunda vez, omitindo grosseiramente o fato de que o Chile já havia votado contra a atual Constituição, renovando assim sua ilegitimidade de origem e apoio popular. Esse resultado os ressente. De imediato, os cálculos das alianças eleitorais estão tensos dentro do partido e as chances presidenciais até então invictas do líder da ultradireita, José Antonio Kast, foram prejudicadas.

Na eleição de 17 de dezembro, os setores populares não tinham um projeto a defender, mas tinham a tarefa de resistir ao ataque da direita em um nível institucional de magnitude duradoura e estrutural. Era necessário fazê-los perder, e eles conseguiram. No campo social, o feminismo mais uma vez desempenhou um papel fundamental. Esse fato, por si só, serve para calar a boca dos setores da esquerda e da direita que tentaram atribuir a derrota do plebiscito de 4 de setembro de 2022 aos supostos “excessos identitários” do feminismo devido a normas como a constitucionalização do aborto sem motivo. À direita, temerosos, todos os setores tiveram que mentir publicamente e declarar que sua proposta de Constituição não pretendia revogar o aborto por três motivos. À esquerda, com exceção das organizações feministas e de dissidência sexual e de gênero, pouquíssimos setores sociais tinham a capacidade de implantar e sustentar uma campanha com questões que teriam impacto em segmentos mais ou menos amplos.

Em suma, o encerramento do ciclo constitucional decretado pelo governo não fecha de forma alguma o ciclo de crise política aberto com a revolta social de 2019. Nenhuma das demandas urgentes e sinceras de diversas e amplas camadas da população foi resolvida e atendida até o momento. O cenário de instabilidade estável permanece aberto.


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