O homem que entendia Joyce 
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O homem que entendia Joyce 

Num 28 de fevereiro como esse, o intenso coração uruguaio e cosmopolita de Enrique Morales parou de funcionar. Sua vida não deixou de ser uma odisseia

Israel Dutra 28 fev 2024, 13:15

Foto: Arquivo pessoal

Há nove anos, nos deixava Enrique Morales. Sempre que podemos recordamos a Enrique: dirigente e fundador do MES, primeiro presidente do PSOL-DF, respeitado por diversas organizações, internacionalista. No ano que marcou as duas décadas do MES, fizemos uma bela e justa homenagem ao uruguaio de Melo, brasileiro por adoção. Um homem da dialética, tal qual aquele que julgava seu mestre maior, Vladimir Ilich Ulianov, aliás, Lenin. 

Na dialética, ia da pequena e rural Bagé às mais altas escalas da luta política, discutindo política internacional ou as táticas do Congresso Nacional. Batia no peito para afirmar sua identidade: era um comunista. 

Com todo esse repertório, não quero aqui recordar apenas o engajamento político de Enrique, sua atividade principal. Quero trazer o homem que amava as letras, a cultura, as conversas. Um homem que lutava e se encantava por ideias. E cultivava suas amizades nesse caldo. 

Se interessava pela cultura do povo. Amante do candombe uruguaio, dos Olimarenhos e de Ruben Rada, não deixava de admirar o requinte de gênios como Miles Davis. 

Contudo, há algo que marcou definitivamente meus anos de formação, na política e na literatura.

Uma noite, após uma reunião de estudantes secundaristas, encontrei um livro no gabinete da deputada estadual Luciana Genro. Um livro grande e enigmático. Pesado e pouco convidativo. Um pouco mais que adolescente, fui apresentado a James Joyce e sua obra maior, “Ulisses”. 

A edição parecia antiga. Era da Civilização Brasileira, com a tradução de Antonio Houaiss. Estava ao lado de diversos panfletos e jornais. Vivíamos uma etapa de turbulência, após a ocupação da Assembleia Legislativa contra a privatização da CEEE. Confesso que foi com curiosidade e admiração que encontrei aquele livro grosso em cima da mesa das reuniões. 

Surpresa maior foi ligar o livro ao dono, que o tinha esquecido após extenuante jornada de reuniões e articulações, à época com a esquerda do PT avançando no interior profundo do Estado, com nossa organização aproximando vereadores de Bagé, Cruz Alta, São Luiz Gonzaga, para citar apenas algumas conquistas de então. Já tinha visto Enrique em reuniões, orador exímio e criativo, que chamava a atenção dos jovens sedentos de ideias como eu e os colegas da geração dos secundaristas do final dos anos noventa. 

Levei muito anos para encarar Ulisses. Cheguei a Joyce por livros mais “leves”, como “Dublinenses”  e “Retrato do artista quando jovem”.  Ao ler o difícil “Ulisses”, vi Enrique nas passagens da tormentosa Dublin, sob os olhos de Leopold Bloom (aliás, Enrique utilizava “Bloom” em seu correio eletrônico, aludindo ao herói de Joyce). 

Entendi um pouco mais sobre Enrique, sobre sua paixão por Lenin como expressão dialética – de ser um “duro” na política, ríspido e tenaz; sendo abrangente e plástico nas artes. Ousar lançar-se com a combinação habitual, porém complexa: flexibilidade para a ação prática, intransigência nos princípios estratégicos. E sua relação com a literatura em geral e com Ulisses em particular não era um elemento acessório. Era algo fundante do seu modo de vida. 

Assim, se entende sua atividade intelectual noturna, tal qual a dos poetas parisienses. Só que no teatro de operações da Cidade Baixa, em Porto Alegre, zona boêmia e vermelha (“gauche”), a um só tempo. Eram noites de debates. De pedras e poemas. Encantador. 

A literatura singular de Joyce nos traslada a uma Dublin enigmática, tal qual a vida e as apostas da vida. 

Num 28 de fevereiro como esse, o intenso coração uruguaio e cosmopolita de Enrique parou de funcionar.  Sua vida não deixou de ser uma odisseia. Ele entendeu Joyce, a seu modo. 


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