Uma greve histórica
Pedro Fuentes

Uma greve histórica

49 anos depois, tribunal argentino julga os crimes de lesa humanidade cometidos pelo governo e pelos poderosos contra os trabalhadores metalúrgicos de Villa Constitución

Pedro Fuentes 27 fev 2024, 11:00

Foto: Instagram/Reprodução

Tive a sorte de reviver momentos históricos. Com velhos companheiros do PST, entre eles Pacho Juarez, líder da greve e do PST, o torneiro mecânico José Moya e outros líderes operários do Comitê de Greve, como Zenón, somos autores dessa ação promovida por esses e outros líderes e parentes das vítimas da greve, que julga nada mais nada menos do que o terrorismo de Estado praticado pelo governo de Isabel Perón na greve de Villa Constitución. Compartilhei com eles, com Carlos Carcione, ativistas de direitos humanos e militantes do MST uma rica conversa em uma sede do MST em Rosario. Mais tarde, também dei meu depoimento perante o juiz. A ação está sendo conduzida por dois advogados jovens e entusiasmados, dois lutadores pela verdade e pela justiça, Federico e Julia, e promovido pelos parentes de Villa e por uma comissão de ex-trabalhadores.

Visto de agora, 49 anos depois, acredito que essa greve entrará para a história das grandes epopeias dos trabalhadores argentinos, como as da Patagônia Rebelde e das Oficinas Vasena na chamada semana trágica.  

A ação militar em Villa

Na noite de 19 de março de 1975, 100 carros à paisana sem placas, cheios de policiais e paramilitares membros da Liga Anticomunista Argentina, chegaram à cidade de Villa Constitución (de aproximadamente 35.000 habitantes) e seus arredores, quebrando as portas das casas, intimidando, espancando com armas longas e fazendo prisioneiros mais de 300 companheiros de diferentes fábricas do complexo siderúrgico, entre eles a maioria da direção classista da Unión Obrera Metalúrgica daquela localidade. 

Para levar a cabo essa tremenda ação repressiva, convenientemente apoiada por veículos de assalto que praticamente ocuparam a cidade, o governo de Isabel Perón e López Rega alegou que havia um complô na região cujo objetivo era paralisar toda a cadeia de fábricas de mais de 100 km ao longo do rio Paraná. Eles disseram que havia uma cobra com a cabeça vermelha em Villa Constitución que era dirigida pelos grupos guerrilheiros.  Portanto, era preciso acabar com ela. 

Uma autêntica direção classista

Acontece que a direção de Villa havia surgido das bases; tratava-se de uma nova direção como muitas outras que surgiram na Argentina como resultado das grandes semi-insurreições do Cordobazo, Rosariazo e Mendozazo. O classismo argentino foi o produto mais genuíno no país das revoluções de 68 que varreram o mundo (o Maio francês, a Primavera de Praga, a resposta à Guerra do Vietnã tanto pela luta armada naquele país quanto pelo movimento antiguerra nos EUA)

O governo tinha que reprimir

A crise econômica estava começando a atingir o país naquela época, e o governo de Isabelita precisava fazer um duro plano de ajuste. Para isso, precisava se livrar das novas direções que haviam surgido. Daí a história do complô. Ele já havia começado a fazer isso com algumas fábricas que foram derrotadas, como a Renault Córdoba, porém, o classismo se mantinha e ressurgia. 

E para enfrentar esse plano, na direção do PST, sugerimos a construção de uma coordenação nacional que, sem substituir a CGT, assumiria a tarefa de coordenar as fábricas que praticavam a democracia sindical e não eram conciliatórias com os patrões. Com a direção dos trabalhadores da Villa, concordamos em convocá-la em abril de 1974, mas ela contou com a participação de pequenos sindicatos do PC e de setores dirigidos pelo ERP que se opunham à sua formação e que a direção da Villa, infelizmente, conciliou. Perdeu-se a oportunidade de avançar em direção a um poder embrionário independente do governo, dos paramilitares e da burocracia sindical.

A greve, a organização de moradores e a solidariedade 

Uma vez que se soube da repressão, todas as fábricas do complexo foram fechadas e ocupadas por quatro dias. Surgiram novos dirigentes eleitos e entramos em contato com nossos companheiros Juarez e Kalauz, que haviam sido eleitos como representantes de sua fábrica METCON para o Comitê de Greve. Como responsável pelo trabalho sindical do PST, fui até a região e, com a direção do partido, sugerimos que a melhor coisa a fazer era deixar as fábricas e resistir com uma longa greve, porque toda a área estava dominada pela gendarmaria e pelas forças especializadas e elas estavam prontas para invadir e ir até as últimas consequências da repressão. Assim, os trabalhadores de todas as fábricas, que haviam se reunido, se retiraram para iniciar a longa greve.

Os 60 dias de greve somam uma história de luta, sacrifício, solidariedade e coragem por parte dos trabalhadores e de seus apoiadores. No primeiro mês, apesar da intimidação e da repressão (a explosão de um depósito onde eram armazenadas as mercadorias recebidas de bairros e cidades), a solidariedade foi enorme. Vários caminhões de solidariedade vieram de fábricas metalúrgicas de Buenos Aires.

O papel do PST

O PST, fortemente comprometido com a greve, ajudou a formar a inter-barrial, composto por um delegado entre os moradores, de bairro por bairro, que se reunia clandestinamente. Em cada bairro importante havia um militante do PST que colaborava com a distribuição do Boletim de Greve (foram publicadas 21 edições).  Médicos e enfermeiros vieram de Rosário para cuidar de pessoas doentes e trazer medicamentos em quantidades. Psicólogos atendiam crianças traumatizadas pela prisão dos pais ou pela repressão, quando se ouviam tiros de metralhadora à noite. 

No dia 22 de abril, uma grande mobilização foi organizada na praça de Villa com o objetivo de que uma demonstração de força mudasse a política repressiva seguida pelo governo. Marchamos em três colunas com os membros do Comitê de Luta e nós mesmos à frente. Três quadras antes de convergirmos para a praça, a repressão apareceu. Veículos de assalto dispararam balas de borracha e das outras, e helicópteros em uma operação do tipo “apocalipse now” atiraram em nossas cabeças. Resistimos o quanto pudemos, mas tivemos que nos dispersar. A polícia nos individualizava e nos perseguindo. Pulei uma cerca e acabei passando a noite em uma casa de adobe com um casal de idosos que estava tremendo de medo. A partir de então, todos os bairros passaram a ser vigiados quarteirão por quarteirão pelos carros civis da Triple A.

Morto e desaparecido

Poucos dias depois, Julio Mancini, um trabalhador de 23 anos e membro do PST, foi encontrado baleado no porta-malas de seu carro, que havia sido incendiado. Ele não foi o primeiro. Mais cedo, em uma reunião em solidariedade à greve, a tripla A metralhou e matou dois companheiros que apoiavam a greve. Mais tarde, apareceram mais pessoas mortas. Calcula-se que foram dez durante o conflito e mais 60 entre os presos e desaparecidos.  

A aliança entre os patrões, a Triple AAA governamental e a burocracia sindical

As tentativas de negociações não tiveram êxito e fecharam todas as portas para o diálogo. A operação de guerra montada foi apoiada por três pernas. Uma delas era o governo e a Triple AAA, que queriam acabar com o classismo. Outra era a burocracia sindical que defendia seus interesses burocráticos e queria voltar ao sindicato. E os patrões também faziam parte disso. Toda a operação de registro de ativistas, batidas etc. foi realizada graças aos patrões, que também forneceu alojamento, de seus funcionários hierárquicos, para abrigar a tripla AAA e a gendarmaria. Os patrões tinham a visão mais estratégica. Enquanto o governo e a burocracia queriam acabar com o classismo para continuar governando, os patrões já estavam trabalhando a longo prazo, em uma futura substituição pela ditadura militar. O diretor da fábrica Acindar (a mais importante) durante a greve, Martinez de Hoz, era o Ministro da Economia da ditadura militar, responsável pelo ajuste feroz sofrido pelos trabalhadores e pelos 30 mil desaparecidos. 

Vale ressaltar que a Triple A, como braço paramilitar do governo e também ligada à burocracia sindical, atuou na Argentina durante todo o governo de Isabel Peron até o golpe de março de 76. Eles estavam encarregados da repressão seletiva fora de qualquer controle legal. O PST foi brutalmente atacado por eles. Mais de 20 locais (sedes) foram destruídas ou danificadas por suas bombas e mais de 25 foram assassinados ou desapareceram, entre eles dirigentes dos trabalhadores. 

O fim da greve e nosso sequestro

O cansaço causado pela repressão, pela falta de pagamento de salários e pelo fracasso de todas as negociações estava desgastando o moral dos trabalhadores. Os telegramas de intimidação para voltar ao trabalho se tornaram mais frequentes e, nesse contexto, uma última assembleia foi realizada no estado de “La Ribera”, onde foi decidido dar poder ao Comitê de Luta para encerrar a greve. 

Juntamente com outros líderes do PST, Juarez e Kalauz, do Comitê de Greve, estávamos a caminho de fazer uma avaliação da assembleia quando fomos trancados no prédio em que estávamos por homens com armas longas, mal vestidos, alguns com bonés e óculos escuros. É claro que eles não tinham nenhum mandado, nenhum mandado de busca e nenhuma identificação. Passamos quatro ou cinco horas pensando no pior, até que eles decidiram nos obrigar a sair do apartamento. Resistimos a sair um a um, ou todos juntos ou não nos moveríamos com Silvia Diaz, gritando nossa exigência.

Por fim, eles decidiram parar um ônibus, fizeram os passageiros descerem e nos levaram a todos. O destino foi um grande alívio: a sede da polícia em Rosário. Lá, passamos mais de uma semana sem sermos registrados, até que uma grande operação policial nos levou em um avião da Aerolineas Argentinas para Buenos Aires. Conseguimos informar, com um guardanapo, aos companheiros do PST. Só então souberam que estávamos vivos, e toda semana recebíamos visitas de parentes até que, depois de um mês ou mais, fomos liberados. Mas não sem antes passar pela Casa Rosada, onde o subsecretário do Ministro do Interior nos advertiu que “não poderíamos mais nos envolver em conflitos de trabalhadores. Somente em eleições”. É claro que o PST continuou na luta de classes e a repressão também continuou a atacar. Lojas foram invadidas, explodidas por bombas e mais companheiros desapareceram. 

A importância do julgamento agora

As últimas palavras que eu disse – em mais de uma hora e meia de depoimento perante o juiz – foram “que o julgamento deste caso é, acima de tudo, a condenação dos métodos de repressão usados por esta tríplice aliança, e que isso é muito atual em um momento em que o poder estatal está tentando usar métodos repressivos semelhantes contra as mobilizações dos trabalhadores”. 

E, para concluir, repito uma última frase que também disse em uma palestra para jovens, representantes dos direitos humanos, ex-dirigentes da Villa Constitución e militantes do MST: 

“Este conservatório representativo expressa com grande entusiasmo o valor do julgamento para o que a Villa Constitución foi e significa, e que também é importante levar essa história ao Brasil para nossos militantes e lutadores trabalhadores, para que eles saibam mais e aprendam mais sobre a luta de classes e se tornem mais internacionalistas. Também para que eles reconheçam toda a nossa corrente histórica que foi o Morenismo, que não se trata de repetir como um livro, mas de manter viva essa tradição, de paixão pela luta de classes, paixão pela organização de profissionais, paixão pelo estudo do marxismo, paixão pela ação”.


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