As mulheres argentinas serão tsunami: um relato do 8M em Buenos Aires
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As mulheres argentinas serão tsunami: um relato do 8M em Buenos Aires

Dirigentes feministas do MES/PSOL e do coletivo Juntas! acompanharam a manifestação feminista contra Milei

“Se fomos maré, agora seremos tsunami”, assim diziam as mulheres argentinas na esteira do grandioso 8 de março na última sexta-feira. A importante delegação da Setorial de Mulheres do PSOL, que, em um gesto de solidariedade internacional feminista, se moveu até Buenos Aires, estava presente desde cedo no ponto de concentração do ato. Com a convocatória marcada para as 16 horas na Praça do Congresso argentino, milhares de mulheres foram aos poucos chegando. Nem o calor escaldante e tampouco as ameaças e provocações da extrema-direita impactaram o tamanho, o colorido e a espontaneidade do ato. Partidos, sindicatos, coletivos, assembleias de bairro e meninas indo com colegas e amigas se misturavam nesse ato unitário. As colunas mobilizadas pelas organizações tais como a marcha dos partidos da esquerda radical se misturavam com cartazes produzidos artesanalmente em cartolinas ou papelão. Jovens, adolescentes, idosas, mães com suas filhas e meninas se misturavam nesta marcha que reuniu centenas de milhares. Os panos verdes, da Campanha em Defesa do Aborto Legal eram predominantes, mas o roxo da Campanha Ni Uma Menos lá estava presentes. 

Até a possibilidade de repressão foi esvaziada pela dimensão do ato e o símbolo pesado para o governo de extrema-direita que seria reprimir um ato de mulheres. Quando a Polícia ensaiou fazer um cordão perto do local que seria lida a carta assinada pelas organizações, as jovens começaram a cantar “Milei, basura, vos sois la dictadura” [Milei, lixo, você é a ditadura], cântico esse que embalou boa parte das colunas, junto com cartazes que diziam “Tirem as motosserras dos nossos direitos”, “E ao final, a casta éramos nós” [Y al final la casta éramos nosotras], “Quero voltar para casa e que minha mãe me felicite, não que me identifique” [Quiero regresar y que mi mama me felicite no que me identifique] e com faixas espalhadas pelas ruas da capital exigindo um plano de lutas e greve geral para derrotar Milei.

O 8 de março foi a demonstração de força do feminismo na Argentina, com suas longas trajetórias de encontros anuais que reúnem todas organizações feministas do país, com construção pela base e mobilização desde a década de 70, e os impactos da nova onda de lutas das mulheres que presenciamos e militamos desde o início dos anos 2010. É inegável o peso e a importância que teve e segue tendo a campanha Ni Una Menos, lançada em 2015 na Argentina e que produziu  mobilizações enormes no país e se espalhou inclusive para outros países da região, bem como a convocatória da greve internacional das mulheres em 2017. Sobretudo é notável a potência da maré verde mostrou que segue viva e forte, mesmo após a aprovação da legalização do aborto. A força que teve a maré verde quando na primeira petição em 2018 perdeu a votação no Parlamento era já estrondosa, mas ganhou ainda mais força e condições de contra-atacar em dezembro de 2020, com mobilizações ainda maiores, mesmo em meio à pandemia, e conquistou a legalização do aborto. 

Desde então, não víamos nas ruas essa potência que seguia latente como se demonstrou neste 8 de março. É fato que a crise econômica, a alta dos preços, o desemprego impactam ainda mais as mulheres. A Argentina amarga com 27 milhões de pessoas na pobreza e atingiu os 57,4% de índice de pobreza já sob o governo Milei, aprofundando os anteriores 44,7%, alcançados no terceiro trimestre de 2023 sob o governo Fernandes. Sabemos que a extrema-direita segue à espreita, se vendendo como antissistema e galvanizando votos diante da crise multidimensional do capitalismo e frente às agendas neoliberais e de austeridade aplicadas pela esquerda que é parte do regime. 

Assim como a eleição de Milei é parte deste processo, ela condensa a tentativa de aprofundar a agenda econômica neoliberal com a supressão das liberdades democráticas. Na Argentina, a Lei Omnibus combinada com o protocolo anti-protesto de Patrícia Bullrich é a exemplificação dessa combinação. O primeiro PL reunia cerca de 600 artigos desregulamentando quase tudo o que podia das leis trabalhistas em vários ramos, prevendo privatizações e atacando várias áreas. O segundo refere-se a um protocolo de criminalização de protestos sem precedentes na história recente, que foi parcialmente derrubado graças a uma ação do MST.

Como apostávamos, o movimento de trabalhadores entrou em cena com a convocatória da greve geral realizada em 24 de janeiro. Foi uma greve enorme que se desdobrou em atos subsequentes em frente ao Congresso enquanto era votada a lei e em prisões arbitrárias e repressão dos protestos. Se em um primeiro momento, a lei foi aprovada na Câmara, na hora de decidir se seria a votação artigo por artigo, o movimento de massas logrou uma grande vitória: a lei voltou para a estaca zero, o que foi uma derrota enorme para o governo. Desdobraram-se greves de vários setores, como docentes, saúde, paralisação de bancários, atos em defesa das Aerolíneas Argentinas, para dar alguns exemplos da efervescência lá. Fato é que não só o movimento de mulheres se somou nessa dinâmica como mostrou que segue vivo e com a moral de quem conquistou vitórias no passado recente e sabe que a luta das mulheres passa pela derrota da extrema-direita. Assim como presenciamos com Bolsonaro aqui, com Trump nos EUA, os neofascistas miram nos direitos das mulheres, atacam o feminismo e tentam retroceder nas nossas conquistas. O governo argentino já revogou a linguagem neutra e anunciou acabar com as políticas de gênero em seu governo. Milei e seu partido anunciaram que iam propor um projeto de lei revogando a legalização do aborto na Argentina. Depois tiveram que recuar, dizendo que não era bem isso, deputadas da direita negando sua assinatura nessa peça e coisas do gênero. Ficaram com medo de jogar combustível na luta das mulheres, mas já era tarde. Assembleias lotadas apontaram para a luta e todas organizações chamaram o 8 de março de maneira unitária, o que não ocorria há alguns anos, e a carta de reivindicações foi assinada por quase a totalidade das organizações.  

            Mesmo recuando da tentativa de revogar a lei do aborto, o 8 de março começou com um provocação simbólica por parte de Milei: a mudança do nome do Salão das Mulheres do Bicentenário da Casa Rosada para o Salão dos Heróis e terminou com Milei em suas redes sociais tentando ridicularizar o ato. Não colou, mesmo a imprensa burguesa teve reconhecer o tamanho do 8 de março em Buenos Aires e a capilaridade das mobilizações em várias cidades do país. Agora o movimento aponta para a construção de um massivo 24 de março, data tradicional de luta do povo argentino que lembra os horrores da ditadura, que deve colocar milhões para marchar em Buenos Aires e dar ainda mais fôlego para uma possível nova data de greve geral em abril.

Assim como nos EUA com a histórica marcha das mulheres contra Trump e a Ele Não no Brasil, ficou claro que a resistência a extrema-direita na Argentina será também feminista. E se ontem as mulheres argentinas construíram a maré, no dia 8 de março começou o tsunami.


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Pedro Micussi