Os 60 anos do golpe e a luta contra a extrema direita na América Latina
A memória das ditaduras no continente latinoamericano exige avançar na luta contra a extrema direita nos dias de hoje
Foto: Arquivo Nacional
O fim da Ditadura e o processo de redemocratização do Brasil aconteceu com uma transição pactuada. Não houve uma ruptura pela raiz que tirasse os velhos atores e frações políticas da esfera do poder. Grupos participantes, protagonistas ou apoiadores da ditadura empresarial-militar do Brasil continuaram concentrando poder. Não estamos aqui minimizando o papel decisivo da participação da sociedade civil, com diversas campanhas como a Diretas Já!, greves operárias, destacando-se as de 78 e 79 e demais mobilizações para a queda da ditadura. Obviamente que não! A democracia brasileira (com todos seus limites para a maioria do povo) foi conquistada com muita luta e sangue, e é um avanço em relação ao Regime anterior. Por isso, ainda hoje, é decisivo todos os esforços para que não haja regressão.
Rememorar a ditadura não mexe apenas com setores militares. É importante lembrar que a burguesia, o empresariado de diversos setores do Brasil apoiaram o Golpe de 64 (com auxílio também do Capital Internacional e Imperialismo estadounidense). Muitas dessas famílias continuam parte da elite econômica brasileira, alguns fizeram autocrítica muito tardia, como Rede Globo. Mas, todos preferem se manter no esquecimento ou se colocarem num papel muito coadjuvante da ditadura. Fato é que a ditadura empresarial-militar foi feita para privilegiar o Capital e deter militarmente à ascensão da esquerda. Foi a melhor maneira naquela conjuntura para manter a exploração da classe trabalhadora, manter as opressões existentes.
Rearranjos foram feitos para continuarem se beneficiando em um novo regime político. Conforme pontuou Martina Spohr, no seminário 1964 +60 (realizado na UERJ), o golpe foi:
a favor dos interesses dos grupos dominantes da sociedade e da instituição militar em defesa de um projeto político de poder. Portanto, o objetivo não era apenas derrubar, mas também construir. Construir um regime estável e alinhado ao capital internacional. Para que esse regime pudesse se consolidar, era preciso aumentar o nível de coerção como projeto político. Implementar um aparato repressivo que desce conta do saneamento dos opositores (os antagonistas) ao regime que se estabelece – liderado pelo protagonismo militar – e construir se as bases institucionais sólidas para a implementação e aprofundamento da dinâmica do capital – liderado pelo protagonismo empresarial.
A coerção do Estado viria a atender interesses burgueses. É importante que resgatemos até onde a burguesia está disposta a ir para manter-se no poder. Aos trabalhadores é preciso ter essa nitidez, que a todo custo a burguesia não hesitará em fazer o que preciso for para nos mantermos em condição subalterna e explorada. Obviamente se adequando a melhor tática, dialogando com as mudanças conjunturais.
Todavia, como todo processo histórico, há conservação e rupturas. Mas, o que chamamos atenção é que entre permanências e rupturas, a mudança de regime, consolidado na Nova República e na Constituição de 1988, não significou uma mudança estrutural das classes sociais no poder. Houve rearranjos e novas forças que passariam a protagonizar e dirigir o Brasil no período democrático. De tal forma, a transição abriu espaço para o protagonismo de frações da direita liberal democrática, que tiveram como baluartes Ulisses Guimarães e FHC. E, por outro lado, para a esquerda, sobretudo, o PT liderado por Lula. Ou seja, parte dos conservadores da Ditadura tiveram que ficar em segundo plano. No entanto, frações da burguesia que deram sustentação para a ditadura empresarial-militar continuariam sendo parte da superestrutura do poder.
Por isso, aos trabalhadores interessa reviver essa memória, desnudando aqueles que usurparam dos nossos direitos para enriquecer. Ademais, o Estado Brasileiro tem uma dívida histórica com todos aqueles que lutaram, e mesmo morreram por defender a democracia. Não só pelas suas vítimas, que é necessário romper o silêncio, mas para que possamos caminhar e fortalecer a democracia. Para tanto, o resgate da história é necessário para desmascarar uma memória distorcida que permite a repetição dos mesmos erros do passado.
Retomando a transição pactuada. O processo de transição foi feito com um pacto com os militares. Conforme afirma Jorge Ferreira, no livro “O Brasil Republicano (vol. 5)”, Tancredo firmou com os militares um compromisso de um governo de conciliação que não caminharia para desforra ou vingança. Sarney, não só reafirma o compromisso, mas premiou os militares com reajustes generosos. Francisco Carlos Teixeira, no Seminário “1964: + 60”, também destacou que no nosso processo de transição foi pactuado e não por colapso. Houve uma negociação e, dentro do pacote, estaria: não revisar anistia, não auditar a dívida externa e não processar pela corrupção.
Assim sendo, a democracia brasileira (re)nasce com uma visão de “não olhar para trás”, ou melhor, de não ajustar contas. Não é um exclusivismo desse período histórico uma postura conciliatória que tenta tapar com a peneira as opressões e espoliações de nossa sociedade. Relembremos o mito da democracia racial, no qual forja uma sociedade harmônica que esconde toda a opressão sofrida pela população negra em séculos de escravidão na constituição do povo brasileiro. Olhar para frente sem fazer o balanço correto do passado, sem responsabilizar os culpados e reparar as vítimas nada serve para o avanço de nossa sociedade, pelo contrário, serve para manter o que deveria ter sido superado. E o que é o fenômeno do bolsonarismo senão isto?
O fato, portanto, é que se optou por uma redemocratização que olhasse para frente e esquecesse o passado, em nome de uma pseudo harmonia futura via o método da conciliação. Acontece que esquecer o passado não é nada eficaz para conter os perigos do futuro conforme a história recente do Brasil nos mostra.
Por isso, é necessário atuar no presente para construir melhores condições no futuro, não só do ponto de vista da correlação de forças das frações de classes que lutam pelo poder, mas, igualmente, na disputa político-ideológica da consciência dos trabalhadores e da maioria do povo. Nesse ponto, opinamos que está localizada a maior contradição de Lula envolvendo a luta contra a extrema direita neofascista composta em seu núcleo duro por frações golpistas das Forças Armadas, saudosistas da Ditadura tal como Bolsonaro.
A opção pela conciliação com os golpistas de 64 das Forças Armadas, buscando manter o país em baixa temperatura contra o bolsonarismo e, consequentemente, deixando o papel de protagonismo do enfrentamento nas mãos do STF e de Alexandre Moraes, é um grave erro. Essa é a armação política de Lula e do campo majoritário do PT que “justifica” a injustificável linha de não-convocação de atos contra a extrema direita na passagem da data símbolo dos 60 anos do Golpe de 1964.
Ou seja, Lula vai na contramão das corajosas declarações que deu sobre o genocídio do povo palestino contra o governo fascista de Netanyahu. Esse tipo de contradição não é novidade se tratando de Lula, que invariavelmente concilia para assuntos internos e, na política externa, possui posições de independência e de defesa de povos oprimidos como é o caso da Palestina, se chocando frontalmente contra Israel, EUA, os governos de extrema direita e conservadores no mundo, além do ataque voraz da mídia corporativa nativa e do próprio bolsonarismo.
Portanto, Lula combate a extrema direita fascista de uma forma na política externa. Mas, não há equivalência digna de nota no plano interno. Não é à toa a omissão e a desmobilização consciente em relação a passagem dos 60 anos do Golpe. Além disso, há incongruência no tocante a política externa e interna, sobretudo, no tema da Ditadura empresarial-militar que foi a tônica autoritária das direitas na América Latina e que no tempo presente está tendo sua memória ressuscitada de modo distorcido pelas correntes neofascistas do continente. De tal maneira, é um erro grosseiro desassociar política interna de externa quando o que está em voga é o combate ao fenômeno de expressão mundial e que acaba, por um caminho ou pelo outro, desaguando na disputa política do país. Assim sendo, o presidente que deu um belo exemplo no caso do genocídio do povo palestino condenando o governo terrorista de Israel, deveria fazer o mesmo ao se tratar dos crimes da Ditadura de seu próprio país.
Isto é, na essência, Lula deveria colocar em prática no Brasil que escreveu há menos de 1 ano na passagem dos 50 anos do Golpe de Pinochet no Chile:
“Hoje é dia de celebrar a democracia, homenagear Allende e repudiar qualquer tentativa de golpe – no Chile, no Brasil, na América do Sul, no mundo. E juntos fazermos a nossa história. Uma história de liberdade, de combate à fome e de luta contra todas as formas de desigualdade”.
(…)
“Restaurada a democracia, no Chile, Brasil, Argentina, Uruguai e em todos os países sufocados pelo autoritarismo, nossos povos voltaram a respirar. Como disse Allende, em seu último discurso, no palácio de La Moneda: “A história é nossa, e os povos a fazem”.
Mas, as posturas vacilantes e de conciliação com os militares e apoiadores da Ditadura só acaba colocando água no moinho da extrema direita que busca falsas narrativas sobre as Ditaduras na América Latina. Esse é o caso de Javier Milei na Argentina que completou 100 dias de seu governo sem desligar a motoserra, tendo como resultado imediato da sua estratégia que animou o mercado e os conservadores foi: o aumento agudo da pobreza, que subiu de 49% para 57,4% (os salários perderam valor, a venda das farmácias caiu 45,8% e os planos de saúde subiram 150%); a guerra contra a cultura em plena fratura social; e a relativização da Ditadura argentina, como veremos mais abaixo.
De tal maneira, a postura de esquecer o passado para evitar conflitos não dissipam a ideologia militar da sociedade. Trata-se sim de um enfrentamento que precisa ser feito e atualizado para que a sociedade brasileira não tenha mais dúvida do que foi a Ditadura empresarial-militar. Obviamente esse resgate não interessa a muitos setores, inclusive aqueles que ainda aplaudem a política neoliberal do governo Lula na economia.
O silêncio é de interesse dos militares e, por isso, a todo custo, tentaram manter a régia da transição e impor um silêncio sobre o passado. Não foram eles os únicos agentes do golpe, mas foram aqueles que mostraram a cara. Infelizmente em nosso país não os responsabilizamos pelos crimes cometidos pelo Estado. Diferente, por exemplo, da Argentina, onde parte da cúpula do poder foi condenada judicialmente.
Parece algo inconcebível alguns episódios que ocorreram no Brasil: desde a reivindicação de Ustra, com Bolsonaro ainda parlamentar (sem que isso o levasse a alguma punição) ao golpe de 8/1. Paralelamente, os militares continuam empoderados na pirâmide dos poderes do Estado. Sua ideologia reacionária e golpista mostrou ainda ter muito espaço em parcelas significativas do povo pelo canal do bolsonarismo, que nos últimos cinco anos defendeu abertamente em seus atos o Golpe de Estado e sem reação preventiva, seja, das ruas pela esquerda, seja, pelas instituições da República, acabou se sentindo forte o suficiente para dar um golpe que fracassou.
Naquele momento crucial, Lula recém-empossado, num momento de grande polarização, com frações da burguesia e da opinião pública contrárias ao quebra-quebra do Palácio da Alvorada, perdeu-se uma grande oportunidade para desencadear um processo de depuração nas Forças Armadas como fez Gustavo Petro na Colômbia, começando pela demissão do Ministro da Defesa José Múcio. Lamentavelmente essa janela foi fechada em nome da conciliação e agora, Lula e seu governo, propõem desarmar qualquer tipo de ato pela esquerda de responsabilização da direita sobre a Ditadura de 64 e do golpe de 8/1.
Para tanto, é importante destacar que os episódios dos últimos anos demonstram que a memória acerca da ditadura ainda é um espaço em disputa na nossa sociedade. E a postura omissa do presidente Lula é relegar a outros o protagonismo na construção dessa memória coletiva. Se essa memória ainda está em disputa, cabe disputá-la. E não tirar o time de campo, ainda mais quando se tem condições de vencer.
Esse debate é ainda mais necessário quando há uma disputa em nosso continente sobre a temática da ditadura. O presidente argentino, conforme registra O Globo (23/03/2024), divulgará um vídeo que ressuscita a “Teoria dos Dois demônios”. Essa falsa teoria teve muita força na Argentina, mas que a nosso ver, o Julgamento de 85, ao dar seu veredicto de responsabilizando parte da cúpula do poder daquela Ditadura, não só penaliza ex-ditadores pelos seus atos, mas impõe também um veredicto sobre esse debate: não se tratou de uma guerra. Se tratou do Estado usando seu aparato repressivo para cometer crimes contra seu próprio povo.
No governo do Alfosín, a falsa “Teoria dos dois Demônios” perdeu seu eco na sociedade. Na transição daquele país a cúpula militar, já desgastada, não conseguiu evitar a revisão da luta contra a subversão. Porém daquele momento aos dias atuais houve idas e vindas, com alguns retrocessos (como a Lei do Ponto Final e indulto a chefes militares). Mas agora, Milei, propõe retroceder um debate já superado há décadas, relativizando a ditadura e pior, negando 30 mil desaparecidos políticos no país.
Sabemos que as ditaduras brasileiras e argentinas fizeram parte de uma conjuntura marcada de ditaduras no cone sul. Em 2024, temos então um governo de extrema direita ultraliberal que quer revisar o acúmulo feito até então pela sociedade argentina. De outro lado, temos Lula, um presidente do campo progressista, que derrotou – encabeçando uma frente ampla democrática – Bolsonaro eleitoralmente e pode, a partir da política interna de enfrentamento ao golpismo irradiar seu exemplo para a América Latina pela força internacional que o Brasil possui. Para tanto, a posição de Lula precisa mudar, até mesmo para a sustentação de seu governo (vide as pesquisas de opinião e a baixa adesão dos atos do dia 23/03 convocados por parte da esquerda sem o carimbo de Lula). É importante que ele rememore o golpe de 64 e avance nas políticas de reparação e memória. O silêncio em si e a desmobilização só ajuda o outro lado que pretende regressar ao poder como Trump nos EUA. Ou seja, rememorar 64 nas ruas (o lugar da esquerda) contra a extrema direita, é fundamental para avançarmos numa disputa político-ideológica em curso e fortalecermos um campo democrático antifascista que sustente a prisão de Bolsonaro e o combate sem tréguas a extrema direita.