Em defesa da Escola
Pedimos atenção e compromisso da sociedade e dos poderes constituídos para retomar princípios da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, a fim de fortalecê-la e consolidá-la
Foto: Agência Brasil
Os princípios da Educação Inclusiva como afirmados pela atual Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva/PNEEPEI (2008) têm sido alvo de sucessivas tentativas de retrocesso: projetos de Lei se avolumam país afora visando implementar a figura de um assistente terapêutico (AT) nas escolas, somado à indicação compulsória da abordagem ABA (Análise do Comportamento Aplicada) nas práticas pedagógicas e educativas.
Mais recentemente, no Estado de São Paulo, foi promulgado o Decreto 68415/2024 que autoriza, inclusive, a entrada nas escolas de acompanhantes/assistentes privados (pagos pelas famílias) ou, até mesmo. os próprios familiares, para ocuparem a função de cuidado dos estudantes com deficiência. Revelando ainda mais, uma direção de soluções privadas e individuais, para questões que são coletivas, e, portanto, deveriam ser assumidas pelas políticas públicas.
Estas iniciativas se baseiam na perspectiva do controle de comportamentos considerados desafiadores aos ideais normofuncionais, impondo intervenção terapêutica na Educação desconsiderando que comportamento e aprendizagem são produções coletivas e culturais, e devem ser abordadas pelo campo pedagógico e educativo.
O discurso alarmista sobre a necessidade de incluir novos profissionais nas redes de ensino, que atuem a partir de abordagens clínicas, desrespeita a Constituição Federal e o Estatuto da Pessoa com Deficiência, que definem o modelo social de deficiência como paradigma para a implantação de políticas públicas, reconhecendo a pluralidade dos modos de ser e estar no mundo.
Sabemos que a relação entre Educação e Saúde pressupõe parceria primordial, mas sem a intencionalidade de inserir na escola um funcionamento de instituição totalizadora. Ao contrário, essa articulação deve garantir que a vida de pessoas com deficiência e suas comunidades prospere, com respeito aos marcos legais, princípios e diretrizes que orientam os mandatos de cada um dos campos.
Defender a hipótese de que o assistente terapêutico teria competência diferenciada para lidar com estudantes com deficiência degrada a institucionalidade da escola, buscando transformá-la num espaço de clínica-escola, a serviço de interesses privados e corporativistas, destituindo crianças com deficiência de seu lugar de estudante para impor a elas o lugar de paciente. A escola não deve ser ocupada por funções periciais e de rastreamento de comportamentos ditos desviantes, nem se ocupar do controle dos corpos, a fim de homogeneizá-los e normalizá-los.
Alertamos que o cuidar faz parte do mandato da Educação, sendo atribuição educativa no espaço escolar. E, para além dos cuidados já oferecidos aos demais estudantes, o arcabouço normativo que compõe a PNEEPEI, já prevê o Serviço do Profissional de Apoio para estudantes que possuem necessidades específicas relacionadas à alimentação, higiene, locomoção e comunicação. Além de prever o Serviço de Atendimento Educacional Especializado para todos os estudantes com deficiência, autistas e altas habilidades.
Cumpre-nos ainda alertar que, a despeito da produção acadêmica investigando a abordagem ABA, os contextos, as populações e os desfechos testados são muito diferentes da realidade concreta da vida dos estudantes com e sem deficiência no Brasil, de modo que é impossível transpor suas evidências como base para que seja a única ou principal abordagem a ser utilizada nacionalmente. As abordagens comportamentais podem compor uma gama de recursos e metodologias já ofertadas pelas redes de atenção e saúde no Brasil, desde que observem os princípios éticos.
A própria Associação Médica Americana, por meio da Resolução 706 (A-23), fez extenso bibliográfico sobre ABA e denunciou efeitos nocivos e consequências danosas de longo prazo. O caráter ‘normalizador’ de algumas abordagens comportamentais produz ainda mais exclusão e sofrimento para crianças e adolescentes com deficiências no ambiente escolar, ao invés de proporcionar pertencimento e protagonismo. Nesta mesma direção caminha a Nota Técnica 98378/2022, do Conselho Nacional de Justiça, que concluiu que os estudos que apontam a eficácia da ABA são de baixa ou muito baixa qualidade metodológica, e não é possível estabelecer a sua superioridade em relação a abordagens, como as terapias já oferecidas por nosso sistema de saúde.
Por tudo isso, pedimos atenção e compromisso de toda sociedade e dos poderes constituídos, no sentido de retomar os princípios da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, a fim de fortalecê-la e consolidá-la em todo o território nacional, e conter as ameaças de retrocesso e de exploração econômica da deficiência.
Assinam:
Bruna Lidia Taño, terapeuta ocupacional e pesquisadora, integrante da Rede Nacional de Pesquisa em Saúde Mental de Crianças e Adolescentes.
Cláudia Mascarenhas, psicóloga, integrante do Instituto Viva Infância.
Fernanda Santana, mulher autista, integrante da ABRAÇA – Associação Brasileira para Ação pelos Direitos das Pessoas Autistas.
Nathália Meneghine, professora da rede pública na Educação Básica, integrante do Instituto Cáue – Redes de Inclusão.
Ricardo Lugon, médico psiquiatra e pesquisador, integrante da Rede Nacional de Pesquisa em Saúde Mental de Crianças e Adolescentes.