Revolução Russa, Educação e Psicanálise
Os primeiros anos da União Soviética presenciaram diversas experiências revolucionárias na pedagogia e na psicologia
Imagem: CompositionIV/Wassily Kandinsky
Uma única vez na história um partido marxista foi capaz de organizar uma intervenção de massas e tomar o poder. Antes disso, Rússia Imperial reunia uma ampla diversidade de povos e religiões em uma grande dimensão geográfica. Assim, a combinação entre capitalismo e feudalismo acentuavam a contradição econômica e política do Império, que em fevereiro de 1917 caiu por sua insustentabilidade diante do povo russo. Nesse contexto, há 106 anos a Revolução abriu a possibilidade para diversas novas experiências de educação e organização social. Hoje queremos apresentar aqui um pouco de uma dessas experiências: a prática da psicanálise para além da clássica relação entre duas pessoas em uma sala fechada. A Revolução Russa também contribuiu para marcar para sempre os rumos da História e da classe trabalhadora, concretizando em Outubro sob a direção de Vladimir Lênin no Partido Bolchevique a ideia de que classe trabalhadora pode tomar o poder da burguesia.
Lenin compreendia a cultura e a educação como elementos muito importantes para o sucesso da revolução na Rússia, e com o apoio de Trotsky implementou uma política educacional calcada nesses princípios por todo o país , composto nesse momento pela população de maioria analfabeta. Em 1920, Lênin faz essa afirmação em um congresso da juventude, dizendo da importância dos diferentes campos de estudo para a elaboração do materialismo histórico e dialético:
‘’O marxismo é um exemplo que mostra como o comunismo surgiu da soma dos conhecimentos humanos’’ discursou Lênin em um Congresso da Juventude (1920) como uma importante crítica ao dogmatismo como método no marxismo. Também em seu artigo “As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo” , Lênin define a origem histórica e teórica do materialismo histórico e dialético, método de Karl Marx para construir sua ciência. Ou seja, não haveria marxismo se não houvesse antes o Socialismo Francês, a Economia Inglesa e a Filosofia Alemã.
Educação e prática psicanálitica depois de 1917
Este contexto foi fundamental para a implementação de outros métodos pedagógicos que partiam da concepção de uma educação marxista, de caráter emancipatório e sendo assim, o que se revelou na prática como o fim de escolas com caráter único de memorização de conteúdos, nacionalismo e elementos religiosos.
Dessa forma, o ambiente da Rússia Soviética, com todas as suas contradições, permitiu que Vera Schmidt, pedagoga e psicanalista russa, e o movimento psicanalítico russo fundassem a Casa das Crianças em Moscou, que recebia crianças de diferentes origens para uma processo educativo de socialização menos opressivo, principalmente em relação à sexualidade infantil.
Segundo Vera Schmidt, haviam três tarefas: ‘’adaptação gradual das crianças às exigências da realidade, controle das funções excretoras e a facilitação da sublimação das tendências pulsionais infantis’’ (essa tendencias pulsionais é como se fossem as vontades da criança de tocar, ou olhar, comer, colocar coisas na boca – como os bebes fazem -, as vontades que tem relação com o encontro do corpo com objetos externos e outras pessoas). A partir do conceito do inconsciente, o educador possuia o papel de ajudar a criança a dominar as tendências que provêm do seu inconsciente sem reprimi-las. Outra tarefa do educador na Casa das Crianças, segundo Vera Schmidt, era ajudar a criança a substituir o ‘’princípio do prazer’’ pelo ‘’princípio da realidade’’.
Esses são os dois princípios que governam a vida psíquica e a criança é totalmente dominada pelo princípio do prazer, de acordo com o Relatório sobre o Laboratório Casa das Crianças de Moscou (1924). A terceira tarefa do educador é não assumir postura repressiva à expressão da sexualidade infantil, podendo entretanto desviar a energia sexual para atividades criativas e motoras. Para Vera, ‘’O Educador deve, primeiramente, libertar-se dos preconceitos que a própria educação lhe legou através de um trabalho de análise sobre si mesmo’’ com o objetivo de ‘’conseguir considerar as manifestações sexuais infantis sem repulsa ou desgosto’’. Entender a sexualidade, o corpo, como elementos constitutivos dos sujeitos é parte importante da construção da emancipação, e ter a possibilidade de trabalhar isso na educação é oferecer espaço a existência de algo que foi – e ainda é – a muito tempo negado como elemento digno da vivência humana. Essa experiência é importante pois coloca em prática princípios freudianos e marxistas, trabalhando liberdades sociais e individuais.
Neste momento também era oferecido o espaço de análise a qualquer cidadão russo, uma prática que tinha como objetivo oferecer acesso a análise para as massas. Essa era inclusive uma das críticas feitas por Wilhelm Reich – psicanalista, discípulo de Freud e militante atuante do partido comunista alemão – que defendia a importância do acesso da população a análise, tendo em vista a sua leitura de que a política e a sexualidade estão interligadas e são indissociáveis.
Para Reich, a psicanálise deveria existir e ser acessível à classe trabalhadora. Em Psicologia de Massas do Fascismo(1933) ele argumenta ‘’Mas a estrutura do caráter do homem atuante, o chamado ‘fator subjetivo da história’, no sentido marxista, não foi investigada porque Marx era sociólogo e não psicólogo, e porque, na sua época, não havia uma psicologia científica. Deste modo, não se estudaram os motivos porque há milênios os homens aceitam a exploração e a humilhação moral, porque numa palavra, se submeteram a escravidão; só se averiguou o processo econômico da sociedade e o mecanismo da exploração econômica’’. Assim Reich apresenta uma falta na teoria de Marx, mas também confirma a origem do marxismo ao se propor unir a psicanálise com o marxismo fazendo assim uma combinação dos pensamentos desenvolvidos pela própria humanidade. Para ele, os partidos comunistas e seus dirigentes não deixavam espaço para encontrar a vida emocional como parte da política e tratavam a leitura da vida do povo a partir do terreno árido da economia pura. A partir dessa crítica, Reich destaca a importância do inconsciente e do consciente como elementos que também fazem parte da vida do povo trabalhador.
Freud também acreditava que a psicanálise devia ser acessível às massas, e atuava na policlínica psicanalítica de Viena onde eram oferecidos tratamentos terapêuticos a população que não tinha condições de pagar, foi lá que Reich atendeu como aprendiz e discípulo de Freud. Entretanto, a Rússia Soviética ofereceu o contexto necessário para avançar um pouco nessa proposta e desenvolver essa ideia recebendo subsídio Estatal para a sua prática. Para a comunidade psicanalítica russa, a psicanálise ‘’é um antídoto ao pensamento burguês’’.
A chegada de Stalin e o fim da Casa das Crianças
Apesar de famosa na Rússia, essa experiência foi curta à medida que Stalin burocratizava o sentido da Revolução e as organizações psicanalíticas foram banidas no país. Falsas polêmicas conservadoras vindas de parte dos psicólogos russos motivaram o encerramento da Casa. Mesmo sendo escasso o material dessa experiência, Georgina Maniakas relatou em ‘’A psicanálise nos primeiros tempos da Rússia Soviética’’, que a psicanálise também aconteceu em fábricas e nas ruas, se mostrando fiel ao traço fundacional do seu fundador Sigmund Freud : a ousadia.
Freud escolheu ouvir as mulheres que eram jogadas em tratamentos de banho gelado se consideradas loucas, e trabalha como tema principal de sua teoria a sexualidade humana em toda a sua dimensão para alem da moralidade constituída do século XIX. A psicanálise encarou a sexualidade e hoje ainda segue nesse esforço. A livre circulação da palavra é elemento fundacional e fundamental desta teoria, prática essa que vai na contramão de regimes autoritários como o stalinismo.
A Casa das Crianças, como citado acima, entendia a sexualidade para além do sexo, reconhecia o inconsciente e aceitava a sexualidade infantil com o objetivo de preparar as crianças para a realidade. Essa é uma leitura diretamente conflitante com o posicionamento repressivo de Stalin, que operava o estado a partir da lógica de dominação dos sujeitos fomentando insegurança, dúvida e medo frente aquilo que era diferente. Aquele que age por fora das convenções sociais estabelecidas, por fora da ordem ditada, era entendido como um desafiante do poder e da autoridade estatal. O contato com o externo, com aquilo que era diferente ao universo da União Soviética, feito por cientistas, pensadores ou militantes era encarado como ameaça, e foi assim também que bolcheviques foram perseguidos e assassinados.
Em Psicologia de Massas do Fascismo, Wilhelm Reich caracteriza o lugar de repressão sexual nas sociedades, principalmente seu surgimento entrelaçado ao Patriarcado. Para Reich, a repressão dos desejos do indivíduo é necessária na economia sexual da sociedade, tendo a Igreja como importante instituição para essa tarefa. Assim, uma sociedade autoritária depende da família autoritária para existir. Mais uma vez, são compreensíveis ( mas inaceitáveis) o caminho do stalinismo rumo a repressão sexual, proibindo a homossexualidade e a prática da psicanálise. A burocracia soviética precisava da obediência religiosa do povo, mesmo que para isso fosse necessária a defesa da estrutura sexual familiar fundacional do Estado Capitalista.
É verdade que com a morte de Lênin e a burocratização da União Soviética, inumeráveis ideias e ações foram feitas em nome de um marxismo imutável e que abandonou a luta internacional contra a burguesia. A defesa do Socialismo em um só país e o rechaço a psicanálise com o argumento simplista de que “a psicanálise seria uma ideologia burguesa” são evidentes atos de abandono do pensamento dialético e revolucionário. A busca stalinista pela conservação do poder afastou a União Soviética de características fundamentais de seu processo revolucionário: a abertura para a construção de outra organização social que possibilitou e valorizava a produção de conhecimento.
Nesse sentido, é evidentemente sintomático como o stalinismo se afastou do conhecimento humano, da mesma forma que se opôs à luta pela revolução socialista mundial, ambos os fatos pelo mesmo motivo, a busca por conservação do poder.
Referências
O camarada de um amor sem nome: medo e desejo na União Soviética (1917-1934)
(Diego Santos Vieira de Jesus)
https://seer.ufu.br/index.php/neguem/article/view/7511/7080
Psicologia de massas do fascismo (Wilhelm Reich)
A psicanálise nos primeiros tempos da Rússia Soviética (Georgina Faneco Maniakas)
https://www.revistas.usp.br/discurso/article/view/159306
As três fontes e as três partes constitutivas do marxismo (Vladimir Lênin)
As tarefas das uniões das juventudes (V. Lênin)