Em semana gelada, Porto Alegre registra primeira ocupação de atingidos por enchente
Moradores da zona norte decidiram fazer sua própria revolução e tomar hotel extinto do Centro Histórico
Foto: Tatiana Py Dutra/Revista Movimento
O Rio Grande do Sul não tem um minuto de paz. Ao menos no que diz respeito ao clima. Como se não bastassem as chuvas que causam cheias históricas desde o fim de abril, houve deslizamentos, desabamentos e mortes. O Estado contabiliza 169 óbitos em sua mais recente e devastadora catástrofe climática. Pelo menos 469 municípios foram atingidos pelas enchentes, que deixaram 581 mil desabrigados. O Estado ainda vive sob a espada de um ciclone costeiro e de dias gelados, com neve. Não tá fácil ser gaúcho.
Em Porto Alegre, porém, um grupo de moradores de zonas isoladas na zona norte decidiu fazer sua própria revolução: ocupar um prédio abandonado no Centro Histórico da cidade, que consta entre os metros quadrados mais caros da Capital.
Pelo menos 60 famílias hoje habitam um prédio de apart hotéis da Rua Fernando Machado. Nem eles sabem quantos apartamentos tem o imóvel, que cruza a quadra e tem saída na Rua Demétrio Ribeiro, na reta seguinte. Os espaços estão sendo aproveitados por emergentes dos mais de 100 mil moradores da Zona Norte – como Humaitá, Sarandi e Ilhas -, primeira região a ser alagada na Capital, que segue submersa após quase 30 dias. A Revista Movimento também encontrou moradores de Canoas, na Região Metropolitana, reiniciando a vida em um dos bairros mais antigos da cidade.
“Vim eu e meu irmão com as famílias. São três filhos, dois netos e mais dois casais”, conta um funcionário da construção que relata ter perdido uma Belina heroica dos anos 1970 na enchente. Além de todo o resto.
O grupo viu no prédio vazio uma chance de escapar da instabilidade dos abrigos provisórios, bem como do plano da prefeitura de fazer uma cidade de lona, também provisória, no Porto Seco.
“Casa tem que ter parede. Ainda mais no inverno”, comentou um rapaz da ocupação, que preferiu não se identificar, revelando-se preocupado com o inverno antecipado no RS e com a possibilidade de morar em barracas.
Chegando
Conforme o grupo, na chuvosa sexta-feira (26), o prédio estava acessível e sem trancas. Eles entraram. A Brigada Militar os visitou, mas só recomendou tranquilidade após a averiguação. Paz. Quem foi chegando, foi chamando familiares asilados em abrigos há quase 30 dias ou ilhados no mesmo período. Há pelo menos 30 apês ocupados. São simples, sem luxo e com marcas de abandono.
O brilho de lanternas começou a ser avistado pela vizinhança entre os sete andares, antes mortos, no fim da tarde. Muitos moradores da vizinhança levaram donativos. Os ocupantes buscaram fontes de água e luz, mas seguem às escuras. Organizaram uma incipiente cozinha comunitária e uma creche, mas continuam vulneráveis à escuridão e à ameaça de reintegração, que não se sabem se virá.
Enquanto isso, esperam informações sobre a liberação de recursos do Estado e da União para refazerem suas vidas.
“Temos aqui crianças, meninos e meninas, mulheres grávidas, pessoas idosas. Queremos dar segurança a elas, porque perdemos tudo. Tudo a água levou”, comentou um ocupante.
O prédio
Segundo vizinhos, o Arvoredo Apart Hotel foi erguido nos anos 2000 e chegou a funcionar no período da Copa do Mundo de 2014. A operação não resistiu muito além disso. Consta que o proprietário morreu e que o espólio – que inclui esse e outros imóveis – está em disputa pelos herdeiros. Ante os anos de imbróglio, o prédio definhou, alegrado por um ou outro morador de rua ou um eventual segurança. Nada mais.
Direito à moradia
O vereador Roberto Robaina (PSOL) visitou a ocupação na tarde de terça (29) para prestar solidariedade e apoio à comunidade crescente. Na chegada, foi recebido por um militante da extrema direita revoltosa, que parece rondar o lugar.
“Quando cheguei, fui provocado por um direitoso, que prefere ver as pessoas na rua ou em barracões. Estava tentando intimidar e constranger as famílias. Mas nossa chegada fez ele sair rápido. Com os moradores, uma ótima conversa. Muitos vizinhos já apoiam a causa dessas famílias”, relatou.
Em conversa com os ocupantes, o vereador valorizou o movimento espontâneo pela luta por direito à moradia.
“Estive lá para prestar solidariedade e dar meu apoio, e também ressaltar que temos uma luta histórica para que prédios vazios sem utilização social se tornem moradia popular”, disse Robaina. “É preciso, urgentemente, uma reforma habitacional, uma reforma urbana. Não é mais possível que nós tenhamos imóveis vazios, sem utilização social, quanto temos milhares de pessoas sem moradia. É uma luta que deve ser encarada como de todos nós”, disse Robaina.