Fala sobre doações expõe miopia de Eduardo Leite
Com 70% das empresas fora de operação, governador do RS disse que donativos atrasam a recuperação do comércio gaúcho. Teve que se retratar
Foto: Marinha do Brasil/Divulgação
O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), causou constrangimento a si próprio em entrevista à Band News, na terça-feira (14), ao relacionar uma possível demora no “reerguimento do comércio” à quantidade de doações remetidas de todo o Brasil para amparar a população gaúcha. Atingido por chuvas desde o final de abril, o Estado registrou enchentes e desabamentos que deixaram 80 mil desabrigados e provocaram 149 mortes.
“Pedi à nossa equipe aqui que ajude a estruturar ferramentas e canais para que aquelas pessoas que queiram fazer doações possam fazer essas doações também ajudando o comércio local, que está impactado. Na verdade, quando você tem um volume tão grande de doações físicas chegando ao estado, há um receio sobre o impacto que isso terá no comércio local. O reerguimento desse comércio fica dificultado na medida em que você tem uma série de itens que estão vindo de outros lugares do país”, comentou à rádio.
A declaração foi um dos temas mais comentados da manhã desta quarta-feira (15) nas redes sociais, e Leite foi tão criticado que acabou publicando um vídeo de retratação.
“Em nenhum momento, eu tive a menor intenção de inibir ou desprezar as inúmeras doações que o Brasil e o mundo estão fazendo para ajudar nosso Rio Grande do Sul numa grande reconstrução. Entre tantas preocupações que a tragédia nos traz, traz também a situação dos nossos pequenos comerciantes”, disse.
Como comprar?
É evidente que o cenário de desastre climático do Rio Grande do Sul trouxe impactos gigantescos para a indústria e o comércio gaúchos, mas colocar as doações externas no balanço das perdas demonstra certa miopia cognitiva de um governante enamorado pelas grandes empresas. No mínimo, é infantil.
Em primeiro lugar, porque quase 95% dos municípios gaúchos sofrem os efeitos das chuvas e em muitos, a atividade comercial e industrial, hoje, é inexistente. Em segundo, porque a população que ainda tem poder de compra destina seus recursos a bens essenciais, como água potável, alimentos e pilhas – cujos preços inflacionaram de forma significativa. Em Porto Alegre, na semana passada, um pacote de velas podia ser encontrado à venda por R$ 15. Quem não quer ficar no escuro, economiza dinheiro para ter o item em casa
Mesmo em Porto Alegre, onde parte do comércio segue operando, as perdas de faturamento eram estimadas em mais de R$ 585 milhões apenas na primeira semana da inundação. O número, certamente, já foi ultrapassado. No Estado, um levantamento feito com 900 mil estabelecimentos de 18 setores apontou queda de 15,7%, contra um recuo nacional de 3,2%. Vestuário e restaurantes foram os ramos mais afetados, com perdas acima de 35%.
Onde comprar?
O desejo externalizado por Eduardo Leite de reverter esse quadro só com a boa vontade do consumidor gaúcho é uma utopia. Conforme a Federação das Associações Gaúchas do Varejo (FAGV), sete em cada dez empresas do ramo – o que mais emprega no Rio Grande do Sul – foram afetadas pelas enchentes. Segundo o presidente da entidade, Vilson Noer, 430 mil trabalhadores do varejo estão impossibilitados de atuar por terem sido atingidos pelas chuvas ou por não conseguirem ir até os postos de trabalho, a maior parte deles, alagados.
“É um prejuízo gigantesco. Se formos colocar em termos de empregabilidade, 70% das empresas não estão trabalhando no Estado. A logística está destroçada”, afirmou Noer ao Estadão.
Impacto profundo
A Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul prevê uma “década perdida” para o estado. Conforme a entidade, as enchentes impactaram 94,3% da atividade econômica. Nos próximos anos, o setor terá de enfrentar destruição de instalações, perda de estoque e dificuldades logísticas. Mesmo com a oferta de crédito do governo federal e incentivos do governo do Estado, nem todas as empresas sobreviverão, dizem os especialistas.
Desse modo, o comentário infeliz do governador gaúcho na BandNews expõe sua falta de visão – já antevista em oportunidades recentes, como na decisão de destinar auxílio emergencial de R$ 2 mil para famílias atingidas pelas cheias, limitando o recebimento do recurso (proveniente das doações via Pix) àquelas com renda de até três salários mínimos.
E ainda que o valor fosse maior, o Rio Grande do Sul vive um momento tão dramático que mesmo que esse recurso caísse hoje na conta dessas famílias elas teriam de esperar a água baixar e a situação alcançar um nível mínimo de normalidade para irem às compras. Por enquanto, elas precisam ter onde ficar, fazer refeições e se proteger do frio e da água com o mínimo de decência. E nas últimas duas semanas foram as doações vindas de todas as partes do país que garantiram sua sobrevivência.
Por isso, contribua como puder. Água, cobertores, agasalhos, artigos de higiene pessoal, fraldas. Doe dinheiro. Doe seu tempo. Um Estado inteiro agradece.