A África estava no centro da obra de Lênin
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A África estava no centro da obra de Lênin

Uma crítica às denúncias de eurocentrismo no pensamento de Lênin

Joe Pateman 26 jul 2024, 10:00

Via ROAPE

Dizem que o marxismo é eurocêntrico e perdeu muito de seu apelo aos olhos de muitos acadêmicos e ativistas. Alguns até denunciaram o marxismo como uma teoria racista, irrelevante para o estudo da África. Vladimir Lênin está envolvido nessa crítica. Em um estudo abrangente das ideias de Lênin, Joe Pateman argumenta que Lênin colocou a África no centro de sua análise do imperialismo e do capitalismo contemporâneo. Aqui, o autor reflete sobre os principais aspectos de sua análise. (ROAPE)


Vladimir Ilyich Lenin, o pai do bolchevismo, nunca pisou na África, mas sua influência sobre o continente foi tremenda. Juntamente com as ideias de Karl Marx e Frederick Engels, as teorias revolucionárias de Lênin forneceram a estrutura para toda uma geração de socialistas africanos durante o século XX. Com base nos escritos de Lênin, além da experiência prática da Revolução Socialista de Outubro, milhões de lutadores pela liberdade na África conseguiram esmagar os grilhões do imperialismo ocidental e, ao fazê-lo, cortaram alguns dos tentáculos mais longos do capitalismo ocidental parasitário.

Embora, atualmente, muitos socialistas hesitem em defender o bolchevismo e a União Soviética, os líderes do socialismo africano do século XX não tinham vergonha de reconhecer sua dívida intelectual com Lênin, bem como as conquistas do primeiro Estado operário do mundo. Muitos desses líderes se anunciavam orgulhosamente como discípulos africanos de Lênin e como leninistas africanos, contribuindo para a luta global pela liberdade humana, igualdade e socialismo. Os governos socialistas africanos demonstraram sua herança leninista, entre outras coisas, colocando retratos gigantescos, bustos e estátuas de Lênin nos salões do poder tomados dos colonialistas europeus.

A presença de Lênin foi especialmente proeminente na Gana pós-revolucionária, onde o líder marxista Kwame Nkrumah se retratou como um Lênin africano. Como parte de sua campanha para honrar o legado de Lênin, Nkrumah dedicou seu estudo pioneiro Neo-imperialism: The Highest Stage of Imperialism (Neo-imperialismo: O estágio superior do imperialismo), à obra seminal da teoria marxista de Lênin, Imperialismo: Fase Superior do Capitalismo. A análise penetrante desse livro sobre o capitalismo global continua tão relevante hoje quanto quando Lênin o publicou em 1917. O Imperialismo proporcionou percepções especialmente profundas para os estudiosos da economia política africana.

Nos últimos anos, no entanto, alguns questionaram a relevância do legado de Lênin para o estudo da África. Essa contestação faz parte de um esforço conjunto e coordenado para denunciar o marxismo como uma doutrina eurocêntrica, que marginaliza e não compreende a história dos povos não ocidentais. Lênin, ao lado de Marx e Engels, foi marcado com esse rótulo. Muitos estudiosos usaram o eurocentrismo como uma arma para desacreditar as ideias marxistas.

O conceito de eurocentrismo encontrou sua expressão mais famosa no livro Orientalismo de Edward Said, que causou comoção entre os acadêmicos ocidentais racistas quando foi publicado em 1978. Nesse livro, Said usou o termo Orientalismo para descrever a representação comumente desdenhosa do Ocidente sobre o “Oriente” “oriental” ou, em outras palavras, as sociedades e os povos da Ásia, do norte da África e do Oriente Médio. O orientalismo construiu um forte contraste entre um “nós” ocidental de pele branca e um “outro” oriental não branco, afirmando que o Ocidente era racial, política, social, econômica e culturalmente superior. Essa distinção enfatizava a perpetuação de estereótipos racistas nos estudos ocidentais sobre os povos orientais, já que o orientalismo os julgava de acordo com os padrões da civilização ocidental branca “superior”.

Na disciplina de economia política internacional (IPE), a concepção de Said sobre o orientalismo foi reformulada como eurocentrismo ou centrismo ocidental. Muitos acadêmicos denunciaram as principais teorias da IPE como eurocêntricas. John Hobson, um proeminente defensor dessa visão, identificou quatro características ou estágios no desenvolvimento do eurocentrismo: 1) a divisão do Oriente e do Ocidente em duas entidades separadas e autoconstituídas; 2) a avaliação do Ocidente como superior ao Oriente, no sentido de que o Ocidente é dotado de características racionais, incluindo a democracia liberal e o capitalismo, enquanto o Oriente é dotado de características irracionais, como a barbárie e a escravidão; 3) a “teoria eurocêntrica do Big Bang”, que concede o monopólio da agência de desenvolvimento global ao Ocidente; e 4) uma política imperialista, na qual o imperialismo é i) ignorado ou apresentado como uma missão civilizatória benigna; ou ii) o império é criticado (imperialismo direto), mas o universalismo ocidental da teoria torna sua política uma forma de imperialismo indireto (ver Hobson 2013).

Hobson acusou o próprio Marx de endossar essas quatro características do eurocentrismo. Ao fazer isso, ele e muitos outros ecoaram os sentimentos de Cedric Robinson, que apresentou uma defesa detalhada dessa narrativa em seu livro Marxismo Negro. Quando foi publicado originalmente, em 1983, o estudo de Robinson não causou alvoroço. Nos últimos anos, entretanto, o marxismo negro forneceu a base para a crítica renovada do marxismo eurocêntrico. As ideias de Robinson estão na moda hoje em dia, e os acadêmicos rotineiramente endossam sua alegação de que o marxismo interpreta mal a história dos povos negros e africanos. Como resultado desses esforços concentrados, o marxismo perdeu muito de seu apelo aos olhos de muitos estudiosos da economia política africana. Alguns denunciaram o marxismo como uma teoria racista, irrelevante para o estudo da África, enquanto outros afirmam que o marxismo precisa de uma reconstrução fundamental para eliminar suas suposições eurocêntricas. É claro que as ideias de Lênin estão implicadas nessa crítica ao marxismo.

Os estudiosos voltaram a enfatizar a base eurocêntrica do marxismo desde o surgimento do Black Lives Matter, um movimento que destacou a natureza sistêmica do racismo contra os negros nas sociedades capitalistas desenvolvidas. Da mesma forma, a campanha global para descolonizar o meio acadêmico, expondo e denunciando figuras e teorias eurocêntricas, fortaleceu ainda mais a crítica ao marxismo como uma abordagem fundamentalmente ocidental. Não é exagero dizer que esses ataques – que vieram tanto de anticomunistas quanto de autoproclamados “marxistas” – constituem um ataque total às premissas fundamentais do comunismo e do marxismo. Mais uma vez, a teoria revolucionária da classe trabalhadora em luta está sendo demonizada.

Nem todos entraram nessa onda, apesar de isso ter sido um método eficaz de conseguir publicações e avançar na carreira acadêmica. Nem todos os acadêmicos de esquerda se venderam e se juntaram à caça às bruxas do marxismo eurocêntrico. Alguns resistiram à maré e procuraram destacar as bases fundamentalmente não eurocêntricas do comunismo científico. Uma dessas pessoas é Biko Agozino, que em 2014 publicou um artigo extremamente importante na ROAPE, The African paradigm in Capital: the debts of Karl Marx to people of African descent (O paradigma africano em O Capital: as dívidas de Karl Marx com as pessoas de ascendência africana). Nesse artigo, que ele resumiu em uma postagem de blog para o roape.net em 2020, Agozino derruba a alegação de Robinson de que Marx ignorou e entendeu mal a África e seus povos. Agozino mostra que Marx deu à África um lugar importante em O Capital, sua obra magna, fazendo centenas de referências ao continente e ao “negro”.

Em meu próprio artigo, publicado na ROAPE e que pode ser lido gratuitamente, apresento uma continuação da contribuição de Agozino, fazendo um comentário semelhante sobre Lênin, uma figura cuja influência sobre os estudos africanos foi igualmente significativa. Ao contrário das opiniões de Robinson e seus seguidores, Lênin demonstrou uma profunda preocupação com a África. De fato, ele colocou a África no centro de sua teoria do imperialismo, e essa teoria é fundamentalmente não eurocêntrica.

Por um lado, Lênin foi um analista astuto do colonialismo na África desde os primeiros estágios de seu desenvolvimento intelectual. Já em O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia, publicado em 1899, Lenin comparou a exploração colonial russa de suas nacionalidades minoritárias com as colônias africanas da Alemanha. Em ambos os casos, observou ele, um núcleo explorador buscava drenar os recursos de uma periferia explorada. Avançando para 1912, Lênin denunciou a invasão colonial da Líbia pela Itália, incluindo os massacres brutais de mulheres e crianças indefesas. Essas ações demonstraram a fraude da alegação da Itália de ser uma nação civilizada. Lênin argumentou que a tomada predatória do território líbio pela Itália foi alimentada pela ganância capitalista. O capitalismo italiano precisava de novos territórios para explorar a fim de sobreviver. Ao mesmo tempo, Lênin observou a bravura das ferozes tribos árabes, que continuavam lutando e nunca se rendiam, não importava o custo.

De 1915 a 1916, Lênin realizou uma grande quantidade de pesquisas sobre a África em preparação para seu futuro livro sobre o imperialismo. A União Soviética publicou suas anotações no volume 39 de suas Obras Coletadas, sob o título Cadernos sobre o Imperialismo. Nesses cadernos, que têm 768 páginas, Lênin fez comentários e observações sobre centenas de livros acadêmicos sobre imperialismo, muitos dos quais focados na África. Lênin acumulou uma grande quantidade de dados estatísticos sobre as atividades coloniais da Europa na África, incluindo o montante de capital investido e a extensão das ferrovias construídas no continente. Ele estudou meticulosamente os vários tratados e acordos assinados entre as potências imperialistas sobre a divisão da África a partir do final do século XIX. Ao fazer isso, Lênin adquiriu uma visão geral detalhada da posição do continente sob o imperialismo, baseada em evidências empíricas. Mais importante ainda, ele observou repetidamente que o colonialismo na África estava no centro do imperialismo e não era apenas um fenômeno de importância marginal.

Lênin não ofereceu apenas descrição e análise. Ele foi crítico em todos os cadernos, oferecendo descrições contundentes dos apologistas chauvinistas do imperialismo africano, bem como dos próprios líderes coloniais. Além disso, Lênin fez observações sobre a resistência dos povos africanos, como as revoltas dos hotentotes e dos herreros, que foram violentamente esmagadas pelas tropas coloniais. Ao contrário do que Robinson argumenta em Marxismo Negro, Lênin tinha plena consciência da “tradição radical negra”.

Com base em seus Cadernos sobre o Imperialismo, Lênin colocou a África no centro de sua análise em seu livro Imperialismo: Fase Superior do Capitalismo. A centralidade da África nesse trabalho não foi suficientemente reconhecida na literatura, mas é essencial reconhecê-la, pois ela enfraquece a alegação de que Lênin era eurocêntrico.

Para começar, Lênin argumentou que a conquista colonial da África anunciava o surgimento do imperialismo, que ele definiu como um novo estágio do capitalismo caracterizado pelo conflito militar por território. O imperialismo exigia a subordinação da África para prosperar. Em segundo lugar, Lênin argumentou que a repartição da África era o conteúdo objetivo da Grande Guerra. As potências europeias beligerantes – e a Alemanha em particular – estavam lutando principalmente por fatias maiores do bolo africano. Ao fazer essas duas observações, Lênin estabeleceu que a África era um continente de importância geopolítica sem igual. Enquanto a África fosse colonizada, o imperialismo seria capaz de suprimir o socialismo europeu, mas se a África conseguisse sua libertação, o movimento socialista europeu alcançaria um aumento dramático de poder. O destino do socialismo global e do capitalismo global dependia da liberdade da África.

Durante a Grande Guerra, Lênin tornou-se um dos principais críticos do colonialismo europeu e um defensor intransigente da independência africana. Ele julgava os socialistas de acordo com sua posição sobre essas questões. Lênin denunciou os oportunistas chauvinistas da Europa que abandonaram suas lutas anticapitalistas para apoiar seus esforços nacionais de guerra. Lênin insistiu que a guerra era um conflito imperialista e um sintoma do capitalismo moribundo. Era dever dos socialistas se oporem à guerra e demonstrarem solidariedade aos seus irmãos e irmãs africanos. Lênin abandonou a Segunda Internacional e fundou a Terceira Internacional justamente porque a primeira não se opôs à pilhagem colonial da África e à guerra predatória travada contra ela. Sob a liderança de Lênin, a Terceira Internacional tornou o anticolonialismo uma condição de filiação e identificou a independência da África como parte indispensável da revolução proletária global (veja a análise de Matt Swagler aqui e aqui).

No entanto, Lênin não era um santo. Ele viveu em uma época em que o pensamento europeu sobre a África era predominantemente racista. Ao contrário de muitos de seus contemporâneos, Lênin não era um racista científico, embora tenha expressado, muito raramente, a visão amplamente promovida de que os povos e as sociedades africanas eram “primitivos”, “selvagens” e subdesenvolvidos, mais ainda no centro do continente. É importante reconhecer que essas observações eram marginais no pensamento de Lênin e não moldaram sua estrutura teórica. Lênin passou muito mais tempo expondo a natureza bárbara da civilização europeia do que comentando sobre o suposto atraso da África.

Por esse motivo, há pouca base para a opinião de que Lênin era eurocêntrico. Essa visão ignora a grande quantidade de evidências em contrário, incluindo o histórico de Lenin na defesa da luta pela libertação da África. Tanto na teoria quanto na prática, o fundador do comunismo soviético evitou as quatro características do eurocentrismo de Hobson. Primeiro, Lênin não separou o Ocidente da África. Ele imaginava o imperialismo como um sistema global, que conectava intimamente os povos europeus e africanos. Em segundo lugar, Lênin não via o Ocidente como superior à África. Embora não fosse totalmente consistente, ele frequentemente retratava os africanos como mais civilizados do que os imperialistas europeus, que demonstravam níveis mais altos de barbárie violenta. Terceiro, Lênin não endossou a teoria do “Big Bang” do desenvolvimento europeu. Ele reconheceu que o capitalismo ocidental dependia da subjugação da África para sua expansão. Por fim, Lênin não apoiava o imperialismo.

Em contraste com os chauvinistas de sua época, Lênin era um defensor constante da independência africana. Dessa forma, o legado de Lênin continua relevante para o estudo da África hoje. Seu livro sobre o imperialismo continuará a fornecer percepções profundas tanto para o estudo da economia política africana quanto para as lutas socialistas dos povos africanos.


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