Melchionna avalia atuação de governos após catástrofe no RS
Deputada federal do PSOL diz que Melo e Leite ignoraram alertas, negligenciaram investimentos em manutenção e operaram contra a fiscalização ambiental
Foto: Agência Câmara
Dois meses após temporais e cheias atingirem o Rio Grande do Sul, afetando 2,3 milhões de pessoas e matando 179, os impactos da catástrofe ainda são visíveis no dia a dia dos gaúchos. O Estado contabiliza ainda 800 feridos, 34 desaparecidos e cerca de 6,5 mil pessoas seguem desabrigadas.
Pelo menos 80 trechos de estradas ainda estão bloqueados, prejudicando a circulação de pessoas e mercadorias em algumas regiões. O lixo ainda se acumula nas ruas de cidades como Porto Alegre, onde cada chuva é presságio de novas inundações. O impacto socioeconômico é incalculável.
Infelizmente, se não fora evitável, esses efeitos poderiam ser minorados caso os governos do Estado – e de Porto Alegre, em particular – tivessem agido de forma mais responsável no que diz respeito a gestão ambiental e à prevenção de enchentes. É o que observa a deputada federal Fernanda Melchionna.
“O governador Eduardo Leite, por exemplo, só em 2019, alterou mais de 500 normas do código ambiental do RS para se alinhar à política negacionista do então governo Bolsonaro”, diz a parlamentar. ‘Se por um lado é verdade que a enchente foi uma catástrofe nunca vista na nossa história, também sabemos que não veio sem um prenúncio. Ao ver esses sinais nada sutis, os governos neoliberais dos dois, que flertam com o negacionismo climático, não agiram”, avalia.
A destruição do meio ambiente em favor do modelo do agronegócio e da especulação imobiliária, por meio da flexibilização da legislação urbana e ambiental, também tem o dedo da bancada do agro em Brasília, sempre disposta a transformar mato em campo, no entender de Fernanda.
Na entrevista a seguir, confira as avaliações de Fernanda Melchionna sobre a atuação dos políticos após a tragédia de maio, sobre propostas de recuperação do Estado e os efeitos da mobilização popular para encontrar soluções para quem foi vitimado pelo desastre climático.
Revista Movimento – Como a senhora avalia a atuação dos governos Melo e Leite na catástrofe?
Fernanda Melchionna – Além da resposta falha à calamidade, ambos, tanto Melo quanto Leite, tiveram parte da culpa para que a tragédia tomasse a proporção que tomou. O governador Eduardo Leite, por exemplo, só em 2019, alterou mais de 500 normas do código ambiental do RS para se alinhar à política negacionista do então governo Bolsonaro.
Se por um lado é verdade que a enchente foi uma catástrofe nunca vista na nossa história, também sabemos que não veio sem um prenúncio. Ao ver esses sinais nada sutis, os governos neoliberais dos dois, que flertam com o negacionismo climático, não agiram. Várias das bombas, responsáveis por drenar água de Porto Alegre e evitar enchentes, continuaram sem manutenção. Há denúncias, inclusive, de corrupção envolvendo a Bomba Sinos, empresa encarregada da manutenção do sistema de contenção de enchentes, e o governo de Sebastião Melo.
No ano passado, perdemos 75 vidas no Vale do Taquari para uma enchente, com o nível do Guaíba também subindo, em Porto Alegre, acima da cota de inundação. Nada disso fez o governador se mover para investir massivamente no sistema de defesa civil, ou para aparelhar os órgãos públicos, impulsionar ações de prevenção e resiliência climática. Tampouco o prefeito de Porto Alegre se mexeu para estruturar um sistema de alertas ou adaptar a cidade para reagir às intempéries.
Revista Movimento – Melo e Leite costumam se justificar dizendo que a catástrofe era imprevisível…
Fernanda Melchionna – Infelizmente, são políticos de um campo que finge não entender que os eventos climáticos extremos farão cada vez mais parte do nosso cotidiano. A ciência vem nos alertando há anos, eu tenho falado disso pelo menos desde 2010. Quando era vereadora, em Porto Alegre, já alertávamos sobre estudos que davam conta de como o aquecimento global ampliaria a ocorrência de ciclones extratropicais e chuvas intensas no Sul do país, bem como secar no Norte, é isso que estamos vendo acontecer.
Até mesmo nas respostas emergenciais mais simples estamos enfrentando problemas. Chegamos ao cúmulo de precisar representar no Ministério Público contra o prefeito Sebastião Melo, pois a prefeitura sequer enviou os cadastros dentro do prazo das famílias aptas a receber o auxílio de R$ 5,1 mil do Governo Federal. Os recursos já estão disponíveis, a prefeitura só precisava fazer a parte dela e enviar o cadastro no prazo para que as pessoas recebam, mas não fizeram o mínimo.
Os governos estão apáticos, sem capacidade de alertar ou reagir a qualquer nova intempérie, menos ainda de pensar ações de médio e longo prazo para uma reconstrução consistente de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul.
Revista Movimento – O governo Leite inaugurou, recentemente, uma cidade provisória com barracas cedidas pela ONU, em Canoas, e Melo tem o mesmo plano para Porto Alegre. Ao mesmo tempo, estão reprimindo ocupações de imóveis desocupados…
Fernanda Melchionna – Reestabelecer condições dignas de moradia para quem está desabrigado é urgente e prioritário. É claro que o abrigamento temporário é uma necessidade, visto que a recuperação, construção ou aquisição de casas não tem como ser feita de forma imediata. No entanto, abrigos temporários precisam ter condições mínimas sanitárias, de segurança, espaços com menor concentração de pessoas, e serem construídos em diálogo com as pessoas atingidas. É preciso não separar as famílias, não retirá-las de suas bases de apoio, e ter certeza que esse abrigo provisório será, de fato, provisório.
Porto Alegre tem 101 mil imóveis desocupados, servindo à especulação imobiliária e sem função social. É evidente que este é o momento para utilizar esses imóveis para abrigar quem está na rua. Inclusive, especulação imobiliária deveria ser considerada crime num momento como esse. Porto Alegre tem a chance de realizar uma reforma habitacional, colocando imóveis públicos à disposição das famílias atingidas.
Além disso, também há a proposta do nosso vereador Roberto Robaina de usar a rede hoteleira como espaço de transição. Em Porto Alegre há 10 mil vagas, e a prefeitura tem condições de pagar e organizar a distribuição dessas vagas. É uma proposta importante, que além de garantir abrigo emergencial a quem precisa, gera movimento econômico para a rede hoteleira, que neste momento está completamente vazia.
Revista Movimento – Apesar da catástrofe, a direita gaúcha no Congresso não parece ter mudado seu posicionamento negacionista e propondo medidas de destruição ambiental. Quais são os pontos mais perigosos do seu ponto de vista?
Fernanda Melchionna – Mesmo com a água inundando todo o Estado, ainda há entre os congressistas da direita aqueles que seguem dizendo que o aquecimento global ou a crise climática não existem. A direita diz-se preocupada com a situação agora, mas sempre promoveu uma agenda antiambiental, de desregulamentação de legislação de proteção, ataques aos órgão de fiscalização, ao funcionalismo e anistia a desmatadores.
A direita gaúcha sempre esteve alinhada às pautas mais predatórias do agronegócio e da mineração. Sua digital está em todos os projetos que flexibilizam as leis ambientais e aniquilam a capacidade de resposta do Estado, como as privatizações e o sucateamento do serviço público. E seguem fazendo isso, mesmo com a catástrofe no RS, continuam empurrando no Congresso Nacional projetos anti meio-ambiente, defendendo as fake news e a desinformação, que tanto tem atrapalhado os resgates e os esforços de reconstrução.
Para exemplificar: Enquanto lutamos para garantir auxílio emergencial, a isenção de tarifas de água e luz para os atingidos e recursos para a reconstrução, a extrema direita atuou no Congresso para aparecer com pautas que são verdadeiras cortinas de fumaça, como o fantasma da “destruição da família” ou da “redesignação sexual de crianças”, coisa que sequer existe. Ao mesmo tempo, eles articulavam na surdina o avanço da PEC 3, um projeto que trará devastação ao litoral brasileiro, privatizando as praias para garantir o megaempreendimento de Neymar, a “Rota do Caribe”. O resultado dessas políticas nós infelizmente conhecemos bem: novas catástrofes ambientais.
É evidente que, na área ambiental, é nossa tarefa zero acabar com os desmatamentos, com a emissão de gases poluentes, garimpo ilegal, entre tantas outras práticas que contribuem para o aquecimento global, justamente o contráro do pacote da destruição, que segue sendo empurrado pela direita.
Revista Movimento – A Bancada do Agronegócio do RS em Brasília votou contra todos os projetos a favor do meio ambiente. Fale sobre os reflexos dessa postura no Estado.
Fernanda Melchionna – Toda a vez que leis anti meio ambiente são aprovadas o reflexo se dá para todos, de maneira assimétrica, a curto, médio ou longo prazo. A bancada do agro tem sido porta voz das demandas mais retrógradas na política nacional. São os primeiros a sair em defesa da desregulamentação do trabalho e do meio ambiente, também promovem o armamentismo e o fundamentalismo religioso.
Em nome da ilusão de maximizar os lucros na próxima safra, a bancada ruralista se mostrou disposta a impulsionar políticas ecocidas e anti ciência. Porém, a calamidade do Rio Grande do Sul demonstrou, de maneira trágica, que ninguém sairá ileso das consequências da devastação ambiental.
É óbvio que há desigualdade nas consequências da crise climática, quem mora em áreas de risco, com infraestrutura precária, sofre mais, mas mesmo as fazendas monocultoras e lucrativas foram atingidas pelas enchentes. O argumento da parcela mais reacionária do agronegócio, de que o desmonte da legislação ambiental é importante para a economia, literalmente foi por água abaixo.
O Rio Grande do Sul está sendo agora o estado mais atingido. Mas todos vão pagar, ou já estão pagando por essa política ecocida. É preciso desmascarar a bancada ruralista, mostrar ao povo a responsabilidade que eles têm. Não podemos aceitar que eles sigam colocando o lucro acima da vida.
Revista Movimento – O governo Lula teve boa ação responsiva?
Fernanda Melchionna – Embora importantes, as medidas anunciadas pelo governo Federal ainda são insuficientes e, para avançar, e mesmo garantir a efetivação daquilo que foi anunciado, será preciso manter uma forte mobilização social. São uma série de medidas importantes para a reconstrução do RS, desde a criação de um gabinete federal no estado, o auxílio de R$ 5,1 mil por família, a liberação do FGTS, o plano de construção de casas do Minha Casa Minha Vida em três meses e a aquisição de imóveis populares para quem perdeu suas casas.
As pessoas precisarão de auxílio emergencial enquanto durar o período de calamidade para ganharem algum fôlego na reconstrução de suas vidas. O Rio Grande do Sul precisa de vacinas e ampliação de equipes de saúde para enfrentar a escalada da dengue e da leptospirose, além de aumento efetivo de profissionais de todas as áreas, saúde, limpeza, etc.
A questão da dívida do estado com a União é um ponto especialmente preocupante. A suspensão que o Governo anunciou, por três anos, libera um montante significativo de recursos para a reconstrução e é um gesto muito positivo. Mas é preciso dizer que essa é uma dívida ilegítima, que já foi paga e mesmo assim continuou a crescer após as sucessivas renegociações e juros abusivos. Corre-se o risco, e isso é quase certo, que, após o prazo de três anos de suspensão da dívida, o Rio Grande do Sul veja uma explosão de seu endividamento, pelos gastos da reconstrução somados ao término do prazo. Esse endividamento abrirá espaço para planos neoliberais de recuperação fiscal, com privatizações em larga escala, arrocho salarial e cortes em serviços públicos, ficando ameaçados inclusive aqueles responsáveis por evitar e reagir a novas catástrofes.
Revista Movimento – Seu mandato propôs um Plano de Recuperação Socioambiental. Fale-nos um pouco sobre ele.
Fernanda Melchionna – Nosso projeto, o Plano de Recuperação Socioambiental do Rio Grande do Sul (PLP 80/2024), prevê o cancelamento das dívidas do estado com a União, condicionado à implementação de políticas socialmente e ambientalmente sustentáveis. Infelizmente o governo, em nome da austeridade fiscal, tem resistido ao cancelamento da dívida, um equívoco que já tem dado munição para a extrema direita, que está usando isso para desgastar Lula no estado.
A reconstrução do RS se dará a longo prazo, e para acompanhar e atender as demandas, principalmente das pessoas mais vulneráveis, será necessária uma forte presença do Estado, incluindo o governo federal, por um bom período de tempo. Será preciso continuar garantindo recursos e fiscalizando a implementação de políticas. Para isso, será necessário enfrentar a pressão da austeridade e das políticas neoliberais sobre o governo federal. Para que Lula continue agindo de acordo com a gravidade que a situação exige, é indispensável manter e ampliar a pressão popular. O Movimento dos Atingidos Pelas Enchentes, que começou a se organizar recentemente, assim como as manifestações de rua, que estão ocorrendo em múltiplas localidades, são bons exemplos disso.
Revista Movimento – Como a senhora vê as perspectivas do Movimento dos Atingidos pelas Enchentes no RS? Que ganhos essa mobilização pode trazer?
Fernanda Melchionna – A organização e mobilização popular são fundamentais para garantir ações rápidas e eficientes para o povo, além de ser nosso melhor caminho para enfrentar a crise ecológica, e sua expressão na calamidade do RS, sob uma perspectiva ecossocialista.
Estive na assembleia de criação do Movimento de Atingidos pelas Enchentes no RS, que foi um encontro muito potente. Ouvi relatos de pessoas que deixaram suas casas, que estão em abrigos, ou que foram afetadas de alguma forma. Vi muita indignação e disposição de luta nas pessoas. Muita gente que não aceita mais desculpas ou o discurso de que “não é hora de apontar os culpados”.
Os atingidos pelas enchentes, além de tratar das demandas imediatas do povo, para viabilizar mutirões de limpeza, de construção habitacional, para pressionar pela liberação rápida do voucher do governo, também disputam políticas públicas estruturantes. Essa articulação é uma semente indispensável para que no próximo período tenhamos força social para disputar o modelo de reconstrução do nosso estado, para que os trabalhadores e trabalhadoras possam enfrentar esse processo com protagonismo.
Sabemos que os abutres dos grandes negócios estão se organizando, e prontos para lucrar com a tragédia, custe o que custar. Para fazer frente ao poder econômico, que tem responsabilidade pela situação na qual estamos agora, é preciso fortalecer e multiplicar iniciativas como o Movimento dos Atingidos por Enchentes. Movimentos com potencial de massificação, para cobrar respostas às demandas populares e lutar para que a reconstrução do Rio Grande Sul seja consistente no enfrentamento ao colapso do clima, e que encare as desigualdades ao invés de aprofundá-las.