Morte em clínica reacende debate sobre as comunidade terapêuticas
Unidades de tratamento de dependentes químicos ligadas a igrejas são alvos de denúncias de tortura, sequestro, cárcere privado e trabalho forçado
Foto: Andre Borges/Agência Brasília
Após uma série de vistorias, um relatório do Ministério Público Federal (MPF) revelou que 28 comunidades terapêuticas de 11 estados violavam os direitos humanos de pacientes em reabilitação. Foram encontradas evidências de tortura, sequestro, cárcere privado e trabalho forçado. Curiosamente, 82% delas seriam entidades de caráter privado e filantrópico, de natureza religiosa fundamentalista, onde a leitura da Bíblia é uma atividade diária e a participação em cultos e cerimônias é obrigatória.
Foi num estabelecimento como esse que Jarmo Celestino de Santana, 55 anos, morreu na última segunda-feira (8). Ontem, um funcionário da Comunidade Terapêutica Efata, Matheus de Camargo Pinto, 24 anos, confessou o crime em uma delegacia de Cotia (SP). .
A vítima, que era paciente da clínica, foi filmada após uma aparente sessão de tortura. O vídeo, que viralizou nas redes sociais, mostra Jarmo amarrado em uma cadeira após uma sessão de tortura. O funcionário também confirmou tê-lo agredido em uma mensagem de voz.
“Cobri no cacete, cobri… chegou aqui na unidade… pagar de brabo… cobri no pau. Tô com a mão toda inchada”, diz Matheus no áudio.
Segundo ele, Jarmo chegou à clínica “transtornado psicologicamente” e teve de ser contido com o uso de força. No dia seguinte, o paciente teria tido um novo surto, ameaçado outros internos e que, para contê-lo, o funcionário disse ter entrado em “luta corporal com ele”. As agressões se estenderam ao longo do final de semana . Na segunda-feira, ele oi encontrado desacordado e foi levado para o hospital em Vargem Grande Paulista, onde sua morte foi confirmada. Segundo os médicos, o paciente apresentava lesões compatíveis com agressões físicas.
A polícia investiga se outras pessoas tiveram envolvimento direta ou indireta na tortura e na morte de Jarmo, uma vez que no vídeos que viralizou na internet mostrava outras pessoas próximas a Jarmo, rindo da situação.
“Apuramos se mais alguém participou diretamente das agressões ou foi omisso ao não impedir que elas acontecessem”, afirmou o delegado Adair Marques Correa Junior, da Delegacia Central de Cotia, que aguarda o laudo da autópsia, que determinará a causa da morte. “A vítima foi dopada por medicamentos. Essa medicação em excesso pode ter sido a causa da morte da vítima”, disse o delegado.
Desmonte nos RAPS
No ano passado, ainda no início do governo Lula, os deputados do PSOL Sâmia Bomfim (SP), Glauber Braga (RJ) e Pastor Henrique Vieira (RJ) estiveram reunidos com Sônia Barros, diretora do Departamento de Saúde Mental do Ministério da Saúde. A pauta foi o aumento das comunidades terapêuticas no Brasil concomitante com o desmonte da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), reflexos da péssima administração do SUS sob a gestão bolsonarista. Os parlamentares demonstraram preocupação com as violações aos direitos humanos, ausência de profissionais capacitados, estruturas precárias e práticas antiquadas em total desacordo com a política antimanicomial estabelecida no país após décadas de luta.
Sâmia, inclusive, apresentou um Projeto de Decreto Legislativo (PDL) para que o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) não financiasse mais essas comunidades terapêuticas – o que foi acatado em abril de 2024. A intenção era fortalecer a saúde pública via RAPS, pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
No entanto, como se vê, essa é uma discussão que, na prática, avançou pouco. Com carência do serviço profissional do Estado, as comunidades terapêuticas viram a alternativa de famílias desesperadas com a dependência de seus entes queridos, que acabam sendo submetidos a vários tipos de abuso, como observa a vereadora Luana Alves (PSOL-SP).
“Infelizmente, a história do Sr. Jarmo não é novidade. As comunidades terapêuticas são um absurdo legalizado no nosso país. Espaços que recebem dinheiro do SUS, e ainda cobram dinheiro de familiares desesperados por alguma alternativa de tratamento para quem tem uma relação prejudicial com drogas. Comandadas geralmente por pastores mal intencionados, são verdadeiros manicômios da atualidade. Se beneficiam do desmonte das políticas públicas de saúde mental, como os CAPS, os Ceccos, e outros equipamentos de gestão direta do SUS”, diz. ‘É inadmissível que ainda se repasse dinheiro público para comunidades terapêuticas. É revoltante que todos os governos – da esfera federal, às municipais, banquem esses espaços, enquanto os CAPS são negligenciados. Fim das comunidades terapêuticas, já!’