Primárias no Uruguai: transição à esquerda
As recentes eleições primárias no Uruguai representaram um revés para a extrema direita e a direita tradicional no país
Foto: Christian Macías
No último domingo, 30 de junho, os uruguaios foram às urnas, em participação não obrigatória, do processo de eleições primárias, conhecidas como “internas” que habilitam os partidos e definem as fórmulas para a próxima eleição presidencial, prevista para outubro.
Temos feito um esforço de acompanhar o Uruguai, tomando contato com setores sociais e políticos de esquerda, reestabelecendo pontes e relações que outrora eram mais ativas. O pano de fundo para retomada do contato veio junto a confirmação de uma nutrida delegação Uruguaia para participar da I Conferência Internacional Antifascista, que seria realizada em 16,17 e 18 de maio em Porto Alegre. Como é sabido, a catástrofe climática que arrasou o Rio Grande do Sul em maio obrigou a postergação de tal evento, que estava alcançando uma importante proporção no plano internacional. Contudo, voltar a observar com mais atenção o país vizinho e trocar com uma esquerda com tradição democrática e combativa como a uruguaia é uma tarefa que nos toca.
Como estamos em um ano eleitoral, a hipótese que vinhamos desenvolvendo – a partir da exitosa campanha de coleta de assinaturas que assegurou a realização do plebiscito sobre a seguridade social (expressa em artigo anterior) – de que o governo Lacalle Pou caminha para uma derrota política e eleitoral se confirma nas eleições primárias. Há um desgaste do projeto neoliberal de Lacalle Pou que indica uma possível vitória da oposição frenteamplista nas eleições de outubro, num indicativo que o Uruguai está se inclinando – tendencialmente – à esquerda.
Apesar de pequeno, o Uruguai tem uma importância chave por sua localização- vizinho ao Brasil e a Argentina – nesses tempos em que a política nacional se conecta cada vez com as tendências internacionais. Há uma luta feroz entre projetos, que ora se expressa em pugnas eleitorais e políticas- vejamos a recente vitória de Claudia Sheinbaum, da centro-esquerda mexicana; a disputa de projeto que faz Javier Milei, a atuante oposição golpista no Brasil, entre distintos exemplos, da qual a maior condicionante é a eleição estadunidense que já marca a situação.
Lacalle Pou é uma representação da direita tradicional, filho do ex-presidente Luis Alberto Lacalle, ligados ao Partido Nacional, se referenciando numa corrente neoliberal, de caráter elitista, mas não sendo parte da família internacional da nova extrema direita. O governo foi questionado no âmbito popular, com uma remontada do papel dos movimentos sociais, especialmente a central sindical PIT-CNT e a luta ambientalista. A rejeição, movida por greves gerais, como a recente greve do funcionalismo público, denúncias de esquemas de corrupção, cresceu a um ponto de colocar a oposição como favorita. Ao contrário de outros processos, o desgaste da direita tradicional não reforçou de imediato o polo da extrema-direita. Como se evidencia na trajetória do militar Manini Rios, que surpreendeu nas últimas eleições, lançando o partido ultradireitista Cabildo Aberto e chegando a 11, 2% dos votos. Nos últimos quatro anos, Rios teve defecções e perdeu espaço político e eleitoral, tema que foi confirmado nas primárias de domingo, com um retrocesso de Cabildo Aberto.
O resultado das primárias, portanto, indicam a derrota do governo dos partidos de direita, Nacional e Colorado, e um declínio da extrema direita de Rios. Na esteira desse resultado, houve o fortalecimento da Frente Ampla, como expressão da oposição ao governo, que confirmou com altíssima participação, a fórmula Yamandu Orsi presidente com Carolina Cosse, de vice.
Vejamos os dados mais de perto. O nível de votação foi historicamente baixo, chegando a 35, 3 % do eleitorado apto. Nas primárias de 2019, a título de comparação, a participação chegou a 40%. E esse declínio resultou da perda de votos dos dois partidos de direita, o governista Nacional e a o Partido Colorado, no pior resultado de ambas as agremiações nos últimos vinte e cinco anos. A Frente Ampla, contrastando com a queda geral de votos, chegou a 410 mil votos, num aumento de 140 mil votos em relação a 2019.
O Partido Nacional, principal expressão da burguesia e da continuidade do governo Lacalle Pou caiu cerca de 142 mil votos, chegando a 342 mil no total, tendo que moderar seu discurso no que diz respeito ao ajuste. Sagrou vencedor na interna e irá competir em outubro, Alvaro Delgado, que surpreendeu ao final da jornada ao anunciar sua candidata a vice-presidente, a ex- sindicalista Valéria Ripoll. Além da debilidade anunciada, demonstra uma perspectiva de cobrir-se no campo “social” anunciando uma ex-sindicalista como companheira de fórmula, outro indicativo do ambiente geral da disputa política. Capítulo à parte, o Partido Colorado, expressão da crise estrutural do setor da burguesia “Batllista” ou histórica, perdeu quase metade dos votos, ficando com cerca de 98 mil, indicando Andres Ojeda para a disputa de outubro. Como já citado, Manini Rios e seu partido ligado a extrema direita militar, reduziu sua votação a um terço, em comparativo com as últimas eleições internas, alcançando a modesta cifra de 16 mil votos. Num cenário onde muitos países conhecem uma escala eleitoral da extrema-direita, chama atenção a queda brusca de Manini Rios.
Como grande vencedora da jornada, a Frente Ampla ampliou sua votação em quase um terço, capitalizando o sentimento de crítica ao governo e a disputa renhida que polarizou a coalizão nos últimos meses. Internamente os resultados foram de 60% para Yamandu Orsi; 37% para Carolina Cossio e 3% para Andres Lima.
É importante compreender a topografia interna da FA. Orsi venceu contando com uma aliança entre o setor majoritário da FA, que orbita ao redor do MPP (ex-Tupamaros) e tem como figuras de proa Lucia Topolanski e José Mujica e o setor de Bergara, herdeiro de Danilo Astori, abertamente social-liberal, que configura a ala mais moderada da FA. Orsi se perfila como favorito assumindo uma série de compromissos “pró-mercado”, sobretudo no que diz respeito a temas polêmicos que estão se abrindo no debate sobre a previdência pública e a seguridade social. A campanha de Carolina Cossio, ex-prefeita de Montevideu logrou unificar o PCU (segunda maior força da FA) dialogando com setores mais à esquerda e combativos da Coalizão, como os agrupados ao redor do PVP e mesmo das alas sindicais do PC que assumiram com força a bandeira do plebiscito.
O “voto útil” na Frente Ampla, nas primárias, desidratou as perspectivas dos setores mais radicais de esquerda, como a Unidade Popular, que teve uma votação aquém do esperado, apesar de garantir a quantidade mínima de votos para concorrer em outubro.
O debate político que se abre é complexo, porém interessante. A vitória da ala mais moderada da Frente Ampla indica uma posição dúbia sobre o plebiscito de outubro; a composição da vice, que votou e apoiou o plebiscito, mostra que essa contradição será desenvolvida ao longo da campanha e que a própria base frenteamplista concedeu assinaturas para garantir a legalidade do plesbicito. Curiosamente são números aproximados os 410 mil votantes nas internas da FA e os 430 mil uruguaios que firmaram a favor do plebiscito. A burguesia e seus porta-vozes vão querer explorar essa contradição como forma de esconder o fracasso de seu projeto sob a gestão de Lacalle Pou.
Há que celebrar o ambiente político e social uruguaio, reforçando o acompanhamento político da dinâmica dos próximos meses, quando em outubro as urnas vão falar. O mesmo outubro das eleições municipais no Brasil e prévio à reta final da campanha nos Estados Unidos.
A esquerda radical aposta na disputa de cadeiras no parlamento, espaço que já foi ocupado entre 2014-2019 por Eduardo Rubio, com um mandato exemplar a serviço das lutas.
Em tempos onde a extrema direita tem pautado o centro da agenda política em inúmeros lugares, anima a ampla gama do ativismo antifascista, a transição à esquerda que vive nosso vizinho Uruguai e os debates de estratégia e projeto que aí derivam.