Uma pesquisa da literatura sobre a Teoria Geral do Direito e Estado (1923)
Um dos primeiros escritos do jurista soviético polemizando com o positivismo jurídico de Hans Kelsen
Imagem: Convergence (Jackson Pollock, 1952)
Nota editorial introdutória do Historical Materialism1
O artigo que se segue oferece o que parece ser o primeiro e mais sustentado engajamento crítico de Pashukanis com a teoria “pura” do direito de Hans Kelsen. Há boas razões para acreditar que Pashukanis estava revisando Das Problem der Souveränität und die Theorie des Völkerrechts (1920) e Der soziologische und der juristische Staatsbegriff (1922) de Kelsen enquanto concluía sua General Theory of Law and Marxism (1924). Nessa famosa obra, Pashukanis rejeita a teoria jurídica de Kelsen como uma teoria que “não explica nada e dá as costas desde o início para os fatos da realidade, ou seja, da vida social, ocupando-se com normas sem estar minimamente interessado em sua origem (uma questão meta-jurídica!)”2. Em outra parte dessa obra, Pashukanis contrasta a teoria de Kelsen com sua própria tentativa teórica de “apresentar uma interpretação sociológica da forma jurídica e das categorias específicas que a expressam”3. Neste artigo, Pashukanis dedica mais tempo a desvendar a estrutura “metajurídica” de Kelsen antes de apontar suas muitas deficiências. Pashukanis também questiona até que ponto Kelsen – um positivista jurídico neokantiano simbólico – oscila entre uma estrutura positivista jurídica e uma naturalista jurídica quando se trata da arena mais ampla do direito internacional, um ponto que recebe menos atenção em The General Theory of Law and Marxism. Kelsen respondeu com uma polêmica contra Pashukanis e outros teóricos jurídicos soviéticos em The Communist Theory of Law (1955). Pashukanis foi fuzilado em 1937 e, portanto, foi privado de sua resposta a Kelsen.
Hans Kelsen, Das Problem der Souveränität und die Theorie des Völkerrechts (1920)
Hans Kelsen, Der soziologische und der juristische Staatsbegriff (1922)
A primeira grande obra de Hans Kelsen – um dos representantes proeminentes da escola normativa ou neoaustríaca de jurisprudência – Hauptprobleme der Staatsrechtslehre, foi publicada recentemente, em 1911. Nas monografias listadas acima, Kelsen continua a desenvolver e aprofundar suas construções metodológicas, não apenas não recuando de seu ponto de vista original, mas, em alguns casos, aprimorando-o ainda mais.
Como costuma acontecer, ao fazer isso, com especial brilhantismo, ele descobre todos os pontos fracos de sua abordagem unilateral e formalista-lógica do assunto. As construções que ele oferece são tão artificiais, paradoxais e, o mais importante, sem vida, que é duvidoso que elas encontrem aplicação até mesmo na esfera estreita do dogmatismo jurídico. Quanto à compreensão científica real do direito e do Estado, o método de Kelsen nos leva diretamente à direção oposta.
Não se deve pensar que a teoria de Kelsen está separada de uma série de outras correntes do pensamento filosófico burguês. Pelo contrário, ela deve ser examinada como uma manifestação, em uma esfera particular, daquela tendência que não pode ser chamada de outra coisa senão uma ruptura com a realidade em nome da pureza lógica do assunto. A “teoria pura do direito” de Kelsen está, sem dúvida, relacionada à “intuição eidética” de [Edmund] Husserl, o que o próprio Kelsen reconhece (Der soziologische und der juristische Staatsbegriff, p. 81). Por outro lado, a teoria de Kelsen também representa, sem dúvida, uma tentativa de levar a uma conclusão lógica as posições defendidas pelos representantes do chamado positivismo jurídico. Essa é a ironia do destino ou, mais precisamente, da dialética da razão humana. O positivismo jurídico amadureceu na luta contra o direito natural e viu como sua principal tarefa a destruição dos últimos resquícios dessa doutrina. Kelsen, que se considera o sucessor e o completador dessa luta pelo positivismo do direito [positivismo jurídico], em suas conclusões, desce até o mesmo direito natural que foi reduzido a pó inúmeras vezes. Juntamente com Kelsen, o pensamento jurídico burguês, tendo completado um ciclo, retorna ao seu ponto de partida – metodologicamente sofisticado, mas politicamente inofensivo. Se Carlos I tentou perseguir Hugo Grotius por proclamar o princípio da liberdade dos mares, então Kelsen, pedindo um retorno ao jus naturale gentium, não é ameaçado por ninguém.
As construções metodológicas de Kelsen são essencialmente o desenvolvimento posterior das ideias que já podemos encontrar em [Paul] Laband e [Georg] Jellinek. Em particular, neste último (ver System der subjektive Rechte, cap. 3) encontramos quase a totalidade das principais razões a partir das quais Kelsen procede. O mérito de Kelsen está apenas na excepcional consistência e energia com que ele segue um princípio, uma vez que ele é aceito, não parando diante das conclusões mais paradoxais. Seu ponto de partida é a contraposição entre o raciocínio normativo do jurista e o raciocínio explicativo do sociólogo, do historiador e do cientista natural. Enquanto estes últimos lidam com fenômenos que ocorrem devido a uma necessidade natural, em virtude de uma relação causal, o jurista lida apenas com tipos específicos de obrigações. Apoiando-se em [Wilhelm] Windelband e, em parte, em [Georg] Simmel, Kelsen escava um verdadeiro abismo lógico entre o ser e o dever, e fecha ao jurista qualquer acesso ao mundo da realidade além do mundo das normas. Ao submeter os principais conceitos jurídicos a uma análise minuciosa, ele diligentemente exclui deles todos os elementos psicológicos e sociológicos – qualquer resíduo do factual. Assim, por exemplo, depois de examinar o conceito de vontade, que desempenha um papel tão importante na teoria jurídica, Kelsen chega à conclusão de que as experiências mentais reais não são, de forma alguma, o que se quer dizer aqui – que elas são imateriais e irrelevantes, que a vontade jurídica existe como uma construção atributiva específica; isto é, mais uma vez, como uma combinação de normas, direcionando em quais casos uma ou outra ação deve ser atribuída ou “imputada” a esta ou àquela pessoa.
Da mesma forma, a própria noção de “persona”, de acordo com Kelsen, não tem nada em comum com o entendimento biológico ou psicológico da personalidade. Juridicamente, a “persona” nada mais é do que a personificação das normas relacionadas a ela. Desenvolvendo suas premissas iniciais com coerência lógica, Kelsen chega a identificar totalmente o Estado com a ordem normativa como um todo. Não se pode objetar a ele que não é assim na realidade, pois, como jurista “puro”, ele não deseja ter nada em comum com a realidade. Do ponto de vista normativo, o poder do Estado só pode ser “concebido” como o Estado de Direito. Kelsen vai ainda mais longe: enquanto Jellinek considera possível formular uma compreensão sociológica do Estado juntamente com a jurídica, Kelsen insiste que o Estado, como um conceito, formulado na ordem normativa, não existe de forma alguma para a sociologia. O próprio conceito de poder supremo para uma determinada comunidade só pode ser entendido normativamente. Na ordem real dos fenômenos, o poder supremo é tão impossível de ser descoberto quanto uma causa primeira. Defendendo a objetividade puramente mental – pode-se dizer transcendente – do Estado, Kelsen também se afasta das objeções que identificam o Estado com a ideologia do Estado, entendida como um fenômeno psicológico. Para ele, as experiências concretas das pessoas, sujeitas à lei da causalidade, estão separadas por um abismo lógico da ordem normativa e de sua própria regularidade interna.
Pouco deve ser dito sobre a piedade com que Kelsen fala das pessoas “ingênuas e míopes”, que, seguindo Lassalle, pensam no Estado em conexão com coisas corpóreas-reais, como canhões, fortalezas, instrumentos de produção e assim por diante. Pois essas coisas não passam de coisas inertes e indiferentes, argumenta nosso professor; elas recebem seu significado social somente em conexão com as ações das pessoas – e as ações das pessoas podem ser examinadas “juridicamente” como ações do Estado somente quando coincidem com a ordem normativa concebida idealmente. Portanto, o poder do Estado é o poder do Estado de Direito. Aqui está uma amostra do pensamento professoral verdadeiramente perspicaz.
Mas pode-se perguntar: o que constitui essa notória legalidade interna da ordem normativa – isto é da ordem legal? Kelsen responde: cada norma jurídica específica é derivada de uma norma mais geral, que, por sua vez, é derivada de uma norma ainda mais geral, até chegarmos à norma básica ou, como se diz, à norma original ou hipótese jurídica (Ursprunghypotese). Essa norma básica determina a autoridade suprema de estabelecimento de normas em uma determinada sociedade. Kelsen se apressa em esclarecer que a obrigação que consiste nessa norma, como em todas as obrigações legais, é relativa e condicional; no entanto, o jurista não pode ir além dessa forma, pois somente com ela começa a esfera da lei. Aparentemente, mais adiante se encontram aqueles “vazios legais” (Rechtsleerer Raum) sobre os quais Bergbaum já havia escrito.
Mas em que se deve guiar ao escolher essa hipótese inicial, que, segundo Kelsen, veda e, ao mesmo tempo, carrega sobre si toda a ordem normativa? O autor responde a isso de forma perfeitamente razoável: “Do ponto de vista jurídico, a seleção da premissa básica, da qual se deduz toda a ordem jurídica positiva, parece arbitrária” (Das problem der Souveränität, p. 97). Mais adiante, na mesma obra, Kelsen esclarece que não se pode provar, com base em fundamentos jurídicos, a falta de sentido de tal avaliação jurídica das relações da França moderna, na qual o antigo regime seria assumido como uma ordem jurídica “funcional”. Como vemos, o método puramente jurídico teria sido bastante útil para os moradores da casa amarela4.
No entanto, Kelsen retorna mais uma vez a essa mesma questão em uma monografia diferente, publicada em 1922. Tomando o exemplo da Revolução Russa, dessa vez ele tenta conciliar o “senso jurídico” com o senso comum. Por essa razão, ele é forçado a observar que “a uma regularidade normativa específica no sistema ideal do estado e do direito deve, de alguma forma (itálico meu, E.P.), ser anexada (zugordnet) uma fatia da vida real, ocorrendo de fato pela necessidade causal do comportamento humano (Der soziologische und der justistiche Staatsbegriff, p. 96). E mais adiante: “a tensão entre normas e fatos não deve exceder um máximo conhecido”.
O venerável jurista decidiu descer das alturas de seu normativismo sobrenatural. De certa forma, outro sucesso da Revolução Russa.
Como é sabido, ao enfatizar a natureza formal da lei, o positivismo jurídico travou uma luta persistente contra os direitos “naturais e inatos” do homem, defendidos pela burguesia no momento revolucionário de sua própria história como classe.
Kelsen continua essa abordagem com excepcional determinação e consistência. Ele explica que o próprio conceito de direitos subjetivos introduz um dualismo completamente desnecessário; que a única e suficiente premissa de um sistema jurídico é a norma que estabelece a obrigação legal. Na medida em que o Estado “transmite” a qualidade de uma “pessoa” ao estabelecer direitos e obrigações, ele também pode rescindi-la: “A introdução da escravidão como uma instituição legal está inteiramente dentro do escopo da possibilidade da ordem legal ou do estado” (Das problem der Souveränität, p. 45). No mínimo, não se pode dizer que essa declaração não seja corajosa. Mas Kelsen vai ainda mais longe. Sua compreensão formal do direito é suficientemente ampla para incluir não apenas a escravidão, mas também formas extremas de despotismo. Pois se apenas o que é essencial para a norma jurídica é sua conexão com uma norma superior e básica da qual ela é derivada – enquanto o conteúdo em si é irrelevante -, então, “juridicamente”, o despotismo mais extremo aparece inquestionavelmente como um regime jurídico; pois para conceber juridicamente as ordens de um monarca, também temos que gerá-las a partir de uma norma superior: “todos devem fazer o que o monarca deseja” (Das problem der Souveränität, p. 25).
Tautologias vazias desse tipo são apresentadas como a mais profunda das descobertas. Com isso, Kelsen está condescendentemente pronto para admitir que, “é claro que, psicologicamente, esse momento de coerência formal por meio da mediação da norma básica fica em segundo plano em comparação com a arbitrariedade material”. Raciocínios desse tipo são naturalmente interessantes, como uma curiosidade. Mas ele mostra claramente como a compreensão normativa do direito leva a um deserto estéril de escolasticismo. Aqui a inaptidão do método normativo, mesmo para os objetivos estreitos da jurisprudência dogmática, é claramente visível. Mesmo que todas as operações lógicas dessa última fossem de fato limitadas a consistir na ascendência da norma à fonte original, ainda assim nenhum sistema de direito seria possível. Os fios lógicos traçados a partir de normas específicas até sua fonte original, por si só, não podem proporcionar a unidade de normas que compõem as várias instituições jurídicas. A jurisprudência dogmática desenvolveu-se em um sistema somente porque tomou como base as relações factuais abstratas entre pessoas que se opõem umas às outras como produtores de mercadorias. As normas que regulam a propriedade se transformam em uma instituição de propriedade porque sua base está na apropriação privada como um fato econômico. A doutrina dos contratos representa uma ideia lógica unificada porque em sua base está a troca como um fato econômico, e assim por diante.
As categorias necessárias por meio das quais essa jurisprudência capta essas relações – como o conceito de sujeito ou pessoa, a vontade em um sentido jurídico e o direito subjetivo – são todos conceitos derivados ou expressões dos diferentes lados de um único e mesmo substrato da realidade – um sujeito econômico privado.
Tendo liberado a jurisprudência dogmática desses conceitos “substancialistas” e transformado-a na lógica do dever jurídico, Kelsen removeu seu propósito vital e a transformou em um tipo de escolasticismo semelhante à teologia medieval. Na verdade, ele foi forçado a admitir isso, dedicando o capítulo final de Der soziologische und der juristische Staatsbegriff ao paralelo entre o Estado e a lei, Deus e a natureza.
As leis imanentes da lógica jurídica mostraram totalmente sua influência assim que Kelsen mudou para o direito internacional. Diante dele havia um dilema: aceitar a proposição “Deus, assim como o direito, está sempre com os batalhões mais fortes” ou, na busca da norma básica da ordem internacional, seguir o caminho da escola do direito natural. Ele foi impedido de ocupar um espaço em algum lugar entre o direito e o fato por sua própria estrutura metodológica. E assim, desvinculando-se fortemente dos estudiosos alemães que, sucumbindo à influência excessivamente unilateral dos sucessos de 1870-71, proclamaram “a guerra vitoriosa como a norma que decide de que lado está o direito”, Kelsen ancorou-se com segurança nas águas pacíficas da doutrina do direito natural. A formulação fundamental e suprema que ele toma emprestada de [Christian] Wolff proclama uma “comunidade jurídica na qual a liberdade dos sujeitos (estados) é limitada por sua igualdade em princípio”. Em um só passo, Kelsen salta do entendimento estatista formal e oficial do direito para um entendimento de direito natural. O entendimento “substancialista” dos sujeitos (especialmente os “livres e iguais”) que ele destruiu tão diligentemente reaparece de forma completamente inesperada na própria fórmula básica. Todo o esforço metodológico de Kelsen acabou sendo em vão.
O velho Grotius entendeu as coisas de forma muito mais clara quando, ao listar as condições para o desenvolvimento do comércio pacífico dentro de um Estado (que ele identifica com as condições de existência do próprio Estado), como a segurança e a liberdade de propriedade, o uso igualitário dos meios de comunicação e a liberdade de comércio, fez uma pergunta à sociedade burguesa emergente: como é possível, fora dessas condições, garantir o comércio internacional?
Com isso, ele mostrou claramente que a chamada “ideia de lei” nada mais é do que a expressão unilateral e abstrata de uma das relações da sociedade burguesa – a saber, a relação de proprietários independentes e iguais – que é o pré-requisito “natural” para o ato de troca.
(Editado e traduzido em conjunto por Rafael Khachaturian e Igor Shoikhedbrod)
Notas
- Originalmente publicado com o mesmo título em Vestnik Sotsialisticheskoi Akademii [Boletim da Academia Socialista], Vol. 5, agosto-setembro de 1923, pp. 227-232); republicado em E.B. Pashukanis, Selected Works on the General Theory of Law and State, (Moscou: Nauka, 1980), pp. 230-236. Nossas intervenções editoriais são designadas com colchetes e/ou “Ed”. Gostaríamos de expressar nossa gratidão à equipe editorial da Kritika Prava por transcrever este ensaio e disponibilizá-lo em russo em seu site. ↩︎
- Evgeny Pashukanis, The General Theory of Law and Marxism, traduzido por Barbara Einhorn (Londres: InkLinks, 1978), p.52. Veja a tradução da obra em português em Teoria geral do direito e marxismo (Boitempo, 2017) ↩︎
- Ibid., p.107 ↩︎
- Pashukanis possivelmente está se referindo ao Palácio de Versalhes. ↩︎