Ana Cristina Cesar, poetisa das galáxias
A poetisa Ana C. é considerada um dos principais nomes da poesia marginal dos anos 1970
Foto: IMC/Acervo
A poesia de Ana Cristina Cesar parece incrivelmente atual. Me pergunto como seria o encaixe dessa personagem de uma literatura “indômita” nos dias de hoje.
Ainda que sua trajetória seria meteórica e trágica, a vivência fugaz não remete ao sentimentalismo da geração “mal do século” para citar um exemplo comparativo. É n’outra chave que se pode definir o papel de Ana C., como era habitualmente chamada. Da intensidade e da enorme pulsão da expressividade plena, a serviço de um conjunto de manifestações que podem ser enquadradas- com certo cuidado e pluralidade- na poesia marginal.
Se utilizamos a premissa integradora da visão marxista da realidade, destacando um enfoque na cultura, devemos retomar o fio com Ana C., sua atualidade e como inseri-la como pioneira de uma visão de contra-cultura, sua forma de aposta melancólica, e sua antecipação de temas que seriam presentes nas décadas seguintes, como fontes da expressão do que há de humano na arte.
Herdeiros da tradição da crítica literária de Mario Pedrosa, nossa responsabilidade, sem o rigor formal da crítica, mas unindo a forma disruptiva de Ana C. e o contexto histórico de sua geração, é recuperar e difundir sua obra e legado. E essa aposta deve ser considerada como quem vê a miríade das expressões culturais no Brasil como diversa e não una. A literatura marginal, de Ana C. e outros, também chamada de “geração mimeógrafo” deixou marcas indeléveis na cultura nacional.
Efêmera, e
Ana C. teve uma trajetória veloz. Nascida em 1952, chegou à vida consciente nos anos de chumbo no Brasil, onde a repressão era uma realidade nos diferentes âmbitos da vida social. Fez intercâmbio na Europa, nos turbulentos anos imediatamente pós-68; tomou contanto em Londres com pérolas da literatura em língua inglesa, como Katherine Mansfield, se especializando como talentosa tradutora.
Sua obra principal, “A teus pés”, foi publicada em 1982, quando chegava aos 30 anos, num Brasil em movimento. Antes tinha debutado numa coletânea organizada por Heloisa Buarque de Hollanda, “26 poetas hoje”, voltada à revelar novas e jovens expressões da poesia nacional.
Seus últimos anos de vida foram no Rio de Janeiro, associada à vanguarda intelectual que sobrevivia entre duas gerações. De algum modo, por óbvio, Ana C. foi efêmera, ao morrer com 31 anos, em Copacabana. Dois anos e alguns quilomêtros a separaram do RioCentro, para ficarmos num momento emblemático, onde os estertores da ditadura começavam a se fazer notar. Eis o “cenário” de despedida de Ana C. E diria efêmera menos sobre o legado- que julgo teve e tem uma permanência além do seu tempo, e mais pela intensidade vivida e produzida na brevíssima trajetória de uma poetisa tanto “intensa” quanto “imensa”.
Singular
A poesia de Ana C. é marcada pela singularidade. Antes de Ana C., não havia uma prédica tão sistematizada de apostas e recusas na poesia contemporânea, muitas vezes marcadas por vozes masculinas. Recusa à mediocridade, à caretice e a defesa da liberdade e do desejo.
Como se mostra de corpo inteiro no poema “Um Beijo”:
Um beijo
que tivesse um blue.
Isto é
imitasse feliz a delicadeza, a sua,
assim como um tropeço
que mergulha surdamente
no reino expresso
do prazer.
A ruptura com a caretice se dá nos marcos das referências LGBTQI+ no começo dos anos 80, muito antes das conquistas e definições do tempo presente; mas com coragem de romper os padrões mesmo na vanguarda artística, a serviço da liberdade.
Parte disso são as maravilhosas cartas trocadas com Caio Fernando Abreu, outro “maldito” dessa geração. Esse encontro, tardio e fugaz, ocorrido em 1982, resultou em correspondências como a seguinte, onde Ana C. ilustra o clima da época:
Tem dado certo, semana que vem leio eu entre outro, mas no geral nenhuma mundanidade me atrai. Só fui a uma festa do PT e ao aniversário da Clare (você conhece?) onde quis tanto escrachar que ficou de propósito demais. Arre, só falo em mim. Vê se acha a Folha com Loyola te lendo. Alguns livros sobre a mesa que atualmente, no vendaval, só folheio: o peruano César Vallejo, o português Carlos de Oliveira, o paulista [Roberto] Piva, o fundamental Rimbaud, e, à espera, Conrad de Heart of Darkness.[5] Mas cadê que eu paro? Ai que desejo de grande ordem, nem que fosse ao preço da certa aridez. Mas o amor…”
Essa correspondência muito bem poderia ser vista em trocas de mensagem pelas redes sociais, pelo WhatsApp nos dias de hoje, demonstrando a linguagem inovadora já presente na escrita de Ana C.
Marginal?
Afinal, o que foi a chamada “literatura marginal”? A já citada “geração mimeógrafo” – termo cunhado por sua informalidade, criada num ambiente de mimeógrafo, misturado às universidades, panfletos e outras formas de expressão que burlavam as publicações oficiais.
Essa literatura se destacou num momento transitório, foi refúgio de muitos após as derrotas repetidas- primeiro do golpe de 1964, depois a repressão escalada em 1968, quando a vanguarda que se levantou nas universidades, fábricas e na intelectualidade foi derrotada e esmagada pelo regime militar.
Enquanto o projeto dos que abraçaram a luta armada se desvanecia, a atividade criadora do movimento de massas ficaria interditada por quase uma década- apenas na segunda metade dos 70 mobilizações estudantis e operárias romperiam o cerco da ditadura, a contracultura dava espaço para a angústia reinante. As mentes mais inquietas, influenciadas pelas vanguardas potentes, surgidas por todo lado, identificadas com a grande revolução que significou o maio de 1968, “sublimaram” o ambiente de desencanto nacional para desaguar na contracultura. Sua forma literária se desenvolveu sob a égide do que foi convencionado chamar de literatura marginal, com nomes de destaque como Chacal, Cacaso, Leminski e Torquato Neto.
O desencanto ganhou formas de experimentalismo. Em voga, além da expressão pela arte, a busca pelo ocultismo, misticismo e outras vias “metafísicas”: a ufologia, um novo auge da astrologia, figuras messiânicas como Osho ganharam peso; outra “rota de fuga” presente nessa etapa foi a busca por experiências mais intimistas como novas drogas lisérgicas, diversas terapias ocidentais e orientais, além de abertura para “inovações” como a psicanálise. A ruptura de temas comportamentais como a diversidade sexual, o amor livre e a crítica à monogamia eram aspectos muito progressivos, que chocava e se chocava com os setores mais conservadores da “esquerda careta”.
Tal cenário chegou a ser encarado como uma “literatura do desbunde”, usando o termo pejorativo que se encarava a desistência ou rendição, sobretudo nas opções de luta armada.
Ana C é uma expressão tardia, ou da segunda geração, desse cenário.
Devolvemos Caio F, na contracapa da primeira edição de “Aos Teus Pés”(1982):
Fascinada por cartas, diários íntimos ou o que ela chama de ‘cadernos terapêuticos’, Ana C. concede ao leitor aquele delicioso prazer meio proibido de espiar a intimidade alheia pelo buraco da fechadura. Intimidade às vezes atrevida, mas sempre elegantíssima. Intimidade dentro de um espaço literário particular, onde não há diferença entre poesia e prosa, entre dramático e irônico, culto e emocional, cerebral e sensível. A Teus Pés, releva finalmente, para um grupo maior, uma dos escritos mais originais, talentosos, envolventes e inteligentes surgidos ultimamente na literatura brasileira”
Aos teus pés, Ana C. O tempo está sempre se refazendo, em poesia e impermanência. Deixamos às galáxias.