O que aconteceu nas eleições presidenciais da Venezuela?
Entrevista com Antonio González Plessmann sobre a fraude nas eleições venezuelanas e suas consequências
Via Viento Sur
Nesta entrevista conduzida por Federico Fuentes, Antonio González Plessmann analisa as eleições presidenciais de 28 de julho e suas consequências sob a perspectiva da esquerda anticapitalista. Plessmann é um ativista venezuelano do coletivo de direitos humanos Surgentes.
Qual é a sua avaliação das eleições presidenciais de 28 de julho?
Essas eleições ocorreram em um contexto de excepcionalidade, com mínimas mediações constitucionais e institucionais do conflito político. A classe política, tanto a oposição quanto os maduristas, atuaram fora da Constituição e da democracia desde 2016, em meio a medidas coercitivas unilaterais dos EUA, que desestabilizaram a economia e agravaram a crise política.
Não foram eleições com plenas garantias para os direitos políticos das organizações postulantes, nem para os candidatos, nem para o povo que deveria escolher. O governo restringiu a oferta eleitoral ao judicializar partidos políticos, tanto da oposição de direita quanto de seus antigos aliados, para controlar suas direções e decisões. O caso mais emblemático no campo da esquerda foi o do Partido Comunista da Venezuela (PCV), que por decisão judicial e sem direito à defesa, foi tirado de seus militantes e entregue a um grupo de militantes do partido do governo que se passaram por membros do PCV. Como consequência disso, nenhum partido de esquerda pôde apresentar candidatos nas eleições de 28 de julho.
Apesar dos obstáculos, o povo tinha uma enorme necessidade de participar eleitoralmente e decidir sobre o futuro do país. Todas as pesquisas prévias ao 28 de julho indicavam que mais de 70% da população tinha intenção de participar. A participação, de fato, foi muito alta. O percentual de participação anunciado oficialmente é de 59%, mas esse dado não contempla os mais de 4 milhões de eleitores fora da Venezuela, que foram impedidos de votar. Assim, se considerarmos apenas os que estavam na Venezuela e podiam votar, a participação foi superior a 70%. O povo venezuelano tem uma grande cultura eleitoral. Particularmente durante o chavismo (1998-2013), os centros de votação foram ampliados, a participação eleitoral aumentou (principalmente dos setores mais pobres) e foi criada uma plataforma eleitoral automatizada com protocolos de transparência e auditabilidade de altíssimo nível e confiabilidade. No chavismo, as eleições foram momentos relevantes de protagonismo popular para decidir sobre a continuidade do processo de mudança e reorientar o conflito político. Infelizmente, no madurismo isso começou a mudar, especialmente a partir de 2017.
O que ocorreu em 28 de julho é que a população votou majoritariamente contra Nicolás Maduro e essa vontade majoritária não foi reconhecida pelas lideranças do Conselho Nacional Eleitoral (CNE). Como o sistema eleitoral automatizado inclui tantos mecanismos de verificação, o CNE, para atingir seu objetivo de ocultar o resultado, teve que omitir as auditorias previstas, ocultar as atas eleitorais, retirar os testemunhos da oposição dos processos de totalização de votos, fingir um ataque cibernético e omitir a publicação dos resultados eleitorais mesa por mesa. Não foi o sistema automatizado que falhou, mas a decisão das lideranças do CNE de não aplicá-lo na fase de totalização de votos, auditoria e transparência.
As maiorias não votaram a favor do programa da oposição, mas como uma punição ao madurismo. Um argumento a favor dessa tese é que três semanas antes da eleição, uma pesquisa nacional perguntava às pessoas se votariam em Chávez em 28 de julho caso ele estivesse vivo, e mais de 50% respondeu afirmativamente. Maduro tem quase uma década desenvolvendo um programa e uma aliança de classes diferente do chavismo, com graves impactos na vida da população. Foi contra isso que a população votou.
Hoje temos um governo fraco, porque na Venezuela todo mundo sabe que ele não ganhou as eleições e, portanto, carece de legitimidade de origem, mas que recorre a governar pelos fuzis: apela à repressão e tenta jogadas institucionais que ocultem a expropriação da soberania popular.
Por que você acha que o CNE e o Governo demoraram para divulgar as atas?
A razão é simples: as atas mostram que Maduro perdeu. Tudo o que fazem são manobras para ocultá-las. O grande problema que eles têm é que o sistema automatizado é muito bom, tem muitos backups e controles que tornam praticamente impossível falsificar as atas. Cada máquina de cada mesa eleitoral produz uma ata com os resultados, que é assinada pelos testemunhos e autoridades de mesa, que tem um código único criptografado. Essa ata produzem cópias para o CNE, para as Forças Armadas, para as testemunhas dos partidos e para eleitores que participaram do processo de escrutínio. Além disso, os dados são transmitidos ao centro de totalização nacional, estão ainda nas memórias de cada máquina e há uma cópia digital que os partidos participantes têm em uma memória móvel. Assim, para manter a fraude, precisam ocultar as atas e omitir as auditorias previstas na lei.
O que você acha da decisão do Tribunal Supremo de Justiça (TSJ)? A decisão muda alguma coisa?
A decisão da Sala Eleitoral do TSJ faz parte da estratégia de opacidade. O TSJ, ao contrário de sua própria jurisprudência, se pronuncia sobre o resultado eleitoral, usurpando assim funções próprias do CNE. O CNE tem obrigações legais que não cumpriu desde 29 de julho: totalizar os dados na presença dos testemunhos dos partidos políticos; realizar uma auditoria telemática, uma auditoria cidadã de 1% das urnas e uma auditoria dos dados eleitorais (base de dados das impressões digitais); publicar os resultados mesa por mesa; receber recursos administrativos dos candidatos que contestam resultados parciais ou totais. Durante duas semanas, não só não cumpriu com tudo isso, mas manteve seus escritórios fechados.
O TSJ, em vez de obrigar o CNE a cumprir suas obrigações legais, diz que fez o trabalho do CNE. Diz que realizou uma auditoria e que as atas correspondem ao resultado anunciado pelo CNE, mas nessa auditoria não participaram os técnicos e testemunhas das organizações políticas, como manda a lei. Ou seja, Maduro continua sem poder demonstrar que ganhou as eleições. A decisão do TSJ diz que é irrecorrível, o que violaria o direito de recorrer de qualquer sentença.
Embora com essa sentença o madurismo tente virar a página do dia eleitoral e concentrar energias na recuperação de alguma legitimidade, a realidade é que não faz mais do que continuar evidenciando que não tem como demonstrar que ganhou. Dentro e fora da Venezuela, continua uma disputa sobre o que ocorreu. Esta sentença só convence aqueles que já estavam convencidos ou aqueles que têm interesses econômicos ou geopolíticos que implicam a permanência do madurismo no governo.
O que você pode nos dizer sobre os protestos que ocorreram após o anúncio do resultado, em relação à sua natureza e composição?
Os protestos ocorreram principalmente em áreas populares do país. Foram em sua maioria uma reação espontânea, de indignação, porque a experiência subjetiva das pessoas diante da máquina de votação não correspondia ao que o CNE anunciava. Em áreas historicamente chavistas, Maduro foi derrotado. Pode-se afirmar, sem dúvida, que uma parte muito importante do povo chavista, ou que veio do chavismo, votou contra Maduro. A indignação nesses lugares foi maior. As pessoas sabiam o que tinha acontecido e reagiram contra a mentira que as autoridades eleitorais estavam dizendo na TV.
Uma organização venezuelana contou 915 protestos em todo o país em apenas dois dias (29 e 30 de julho). A grande maioria dos protestos foi pacífica, mas também houve outros de natureza violenta. Inclusive com tentativas de linchamento de militantes do partido do governo. Desde Surgentes, condenamos essas expressões de violência política contra companheiros das estruturas de base do PSUV [Partido Socialista Unido de Venezuela] e exigimos que sejam investigadas e punidas; ao mesmo tempo que pedimos que sua vida e integridade sejam protegidas. Mas essas expressões de violência não representam a maioria que se mobilizou nos dias 29 e 30. São uma minoria. Há nas redes sociais centenas de vídeos que mostram, em todo o país, o caráter majoritariamente pacífico dos protestos. Esses poucos protestos violentos servem ao Governo como pretexto para criminalizar em bloco o protesto majoritário.
O governo reprimiu essas manifestações tanto com forças de segurança quanto com grupos paramilitares. Após 29 de julho, iniciou-se um processo de detenções seletivas arbitrárias contra políticos opositores, dissidentes, críticos, jornalistas, membros de organizações sociais, funcionários que se recusam a reprimir e até setores religiosos. E, também, um processo de detenções em massa arbitrárias. Maduro informou que 2.229 manifestantes estão privados de liberdade, acusados publicamente de terrorismo. Destes, pelo menos, 126 são adolescentes, 185 são mulheres, 14 são indígenas e 17 são pessoas com deficiência. Esses detidos foram incomunicáveis, impedidos de nomear um advogado de confiança e foram submetidos a acusações coletivas, sem individualizar os fatos e suas responsabilidades.
Dado tudo isso, estamos diante de uma tentativa de golpe de Estado, uma fraude, uma mistura de ambos ou algo diferente?
Uma fraude é uma ação contrária à verdade, uma armadilha. Evidentemente, o anúncio oficial dos resultados é uma fraude, pois pretende desaparecer com a vontade da maioria, fazer armadilha ao direito do povo venezuelano de autodeterminação, de decidir sobre seu futuro. Nesse sentido, poderia ser classificado também como um autogolpe em processo: a transição de um governo constitucional para um de facto. E digo em processo porque o governo de Maduro não terminou de consolidar seu controle: o controle de todos os partidos políticos e organizações sociais que estão fora do PSUV; o controle dos meios de comunicação e da informação; o controle das instituições públicas e dos diferentes níveis do governo; o controle das Forças Armadas e dos poderes coercitivos do Estado; o controle dos territórios e das suas economias informais e ilícitas; e, claro, o controle da economia do país.
Até agora, seu governo é fraco, não tem legitimidade de origem, e não tem nem de longe o nível de controle social e institucional necessário para suprimir o conflito político em curso, com novos atores e novas formas de expressão. Ele só conseguiu a unidade do grande capital, com quem compartilha a condução da economia.
Muitos se perguntam por que, sendo tão evidente o que está acontecendo, Maduro ainda está no poder. Como você responde a isso?
A política externa, de segurança e militar dos Estados Unidos e da União Europeia foi fundamental para consolidar o madurismo, como foi para consolidar a ditadura de Pinochet no Chile. Não são fenômenos comparáveis, mas têm semelhanças. A política dos EUA em relação ao Chile da Guerra Fria consolidou o bloco anticomunista, pinochetista, por medo do avanço da esquerda. No caso da Venezuela, os EUA desde 2017 têm uma política externa, de segurança e militar que resulta em um bloqueio ilegal, ilegítimo e cruel, que impacta terrivelmente na vida cotidiana do povo e não ajuda em nada a resistência ao madurismo. Ao contrário, essa política foi um excelente pretexto para consolidar o madurismo, porque permitiu a unificação do bloco governista contra um inimigo externo muito poderoso. Desde 2018, a guerra na Ucrânia agudizou os conflitos geopolíticos e os EUA tiveram que negociar com a Venezuela por petróleo, oxigenando economicamente o governo Maduro, que foi um dos poucos que não aplicou sanções à Rússia.
Outro fator determinante para a permanência de Maduro no poder é o caráter depredador do capitalismo extrativista no território venezuelano e na Amazônia. Hoje, a Venezuela tem 28% do seu território destinado à extração mineira, inclusive no território dos povos indígenas. Maduro comanda a economia com grandes capitais ilegítimos, alguns ilegais, que têm a maior parte de suas operações na ilegalidade. Isso dificulta o monitoramento e as sanções internacionais.
O terceiro fator é a capacidade do Governo de controlar o sistema eleitoral. O povo não escolheu Maduro, mas o CNE anunciou sua vitória e o TSJ apoiou o CNE. A oposição também tem responsabilidade na consolidação de Maduro. A oposição, durante a última década, se recusou a construir um movimento popular para substituir Maduro. Preferiu permanecer nas instituições que não tinham controle e preferiu acatar a liderança dos EUA e do Grupo de Lima, que propunham sanções e um golpe de Estado. Essas estratégias deram excelentes desculpas ao madurismo para reprimir, perseguir e consolidar seu poder.